Opinião

Reflexos da EC 131/2023 para o direito à nacionalidade

Autores

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

  • Tatiana Bruhn Parmeggiani Gomes

    é advogada professora de Direito Internacional Privado e Direito Internacional Público no Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) de Brasília coordenadora do Grupo de Estudos em Direito Internacional Privado e União Europeia na mesma instituição. mestre e doutora em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora do livro Cidadania da União Europeia no Processo de Europeização: em Defesa da Cidadania Pós-nacional (Arraes Editores).

14 de outubro de 2023, 9h18

No último dia 3 de outubro foi aprovada a Emenda Constitucional nº 131, a qual trouxe alterações importantes para o direito à nacionalidade constante no artigo 12 da Carta Magna pátria. O texto, agora devidamente incorporado à Constituição, tem como objetivo suprimir a perda da nacionalidade brasileira em razão da mera aquisição de outra nacionalidade, a não ser que a parte assim requeira.

Trata-se de uma medida importantíssima em virtude de diversas situações de perda de nacionalidade às quais brasileiros estavam potencialmente submetidos quando vinham a adquirir outra nacionalidade por livre e espontânea vontade (também conhecida como nacionalidade secundária ou naturalização). Relembre-se de algumas situações.

A primeira, e mais notória, é o caso de Claudia Sobral (também conhecida como Claudia Hoerig — seu nome de casada), brasileira, nascida no Rio de Janeiro, que adquiriu nacionalidade estadunidense em 1999, após contrair matrimônio com um cidadão estadunidense (tal como admite a lei daquele Estado [1]), de quem se divorciou anos depois, passando a residir com ele naquele país. Outrossim, casou-se novamente com um ex-soldado americano em 2005. Ocorre que Claudia foi acusada de ter assassinado o seu então esposo em 2007, motivo pelo qual ela retornou ao Brasil, resguardando-se de qualquer pedido de extradição estadunidense em virtude da regra contida no artigo 5, inciso LI, a qual proíbe que brasileiros natos sejam extraditados [2].

Apesar disso, após pressão promovida por Tim Ryan, deputado estadunidense, de advogar pela limitação de concessão de vistos para brasileiros no caso do pedido de extradição feito ser negado e a visita do então presidente Barack Obama ao Brasil em 2011, iniciou-se um processo administrativo junto ao Ministério da Justiça de perda de nacionalidade brasileira haja vista ela ter adquirido a nacionalidade estadunidense em 1999. Muito embora ela tenha alegado tanto no processo administrativo quanto perante a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que estava analisando o pedido de extradição formulado pelos Estados Unidos, que a sua nacionalidade americana lhe permitia "o exercício de direitos civis", isto é, que recaia na exceção da antiga redação do Artigo 12, §4º, inciso II, alínea b, logo, não podendo perder a nacionalidade brasileira, a sua tese não prosperou [3].

O Supremo, ao rechaçá-la por 3 votos a 2, sustentou que, na prática, enquanto representante da comunidade brasileira no exterior, ela apenas estaria exercendo seus direitos políticos – e não civis. Ademais, que a obtenção de um posto trabalho, apesar de mais dificultosa, não depende da naturalização [4]. Logo, que a perda decretada no plano administrativo estaria correta e que, uma vez que suprimida a sua nacionalidade em 4/7/2013, ela poderia ser extraditada para os Estados Unidos [5], tal como sucedeu em janeiro de 2018, após negativa do pedido administrativo perante o Ministério da Justiça de reaquisição de nacionalidade realizada pela defesa de Claudia em 2017 [6].

Ainda, há o caso de Carlos Wanzeler, cofundador da Telexfree, que responde a diversas ações no Brasil e nos Estados Unidos por esquemas de pirâmide financeira, fraude e lavagem de dinheiro. O brasileiro nato, no caso, adquiriu a nacionalidade estadunidense em 2009. Outrossim, em 2018 após processo administrativo perante o Ministério da Justiça, decretou-se a perda de sua nacionalidade, a qual foi mantida por 8 a 3 após o Supremo analisar uma ação rescisória proposta por ele buscando rever a perda de sua nacionalidade sob o argumento de que teria adquirido a nacionalidade dos Estados Unidos para gozar de seus direitos civis, mais especificamente, para gozar do convívio de sua filha, órfã de mãe [7].

Já a terceira, mais recente, diz respeito à perda, em fevereiro de 2023, da nacionalidade brasileira de Ana Cristina do Valle, ex-mulher do ex-presidente Jair Bolsonaro, em razão da aquisição voluntária igualmente por via matrimonial da nacionalidade norueguesa em 2011 [8]. No caso em apreço, o que provocou uma averiguação mais atenta por conta do Ministério da Justiça foi a intenção de Ana Cristina em concorrer as últimas eleições como deputada distrital no DF, não triunfando, ao final, no pleito.

Com a exceção deste último, de se notar que o argumento foi basicamente o mesmo em todos os casos: a manutenção da nacionalidade pátria adviria da necessidade de obter outra para o gozo de direitos civis. Acerca disso, cabe citar Mirtô Fraga, jurista com passagem pelo Ministério da Justiça, o qual afirma: "para cursar determinada Universidade, a lei estrangeira exige que o candidato seja nacional desse Estado, o brasileiro pode naturalizar-se, devendo, porém, exercer esse direito, inscrevendo-se para o exame de seleção e a ele se submetendo" [9]. Note-se, assim, a existência de uma sutileza no argumento, que por vezes passava desapercebida pelos brasileiros que adquiriam a nacionalidade estrangeira, qual seja, a de não ser válida a naturalização para o exercício, em tese, de direitos civis lato sensu; o que a Constituição exigia era a naturalização como condição para o exercício de direitos civis, os quais devem ser certos, determinados e concretos [10].

Todas essas situações demonstram a problemática que envolvia o componente volitivo para uma aquisição de nacionalidade derivada estrangeira existente no texto constitucional até então, a qual poderia culminar na perda de nacionalidade originária brasileira, uma vez que a perda não era/é automática, em que pese tampouco haja uma troca de informações entre os países quando da outorga, do reconhecimento ou da aquisição de nacionalidade. Os casos, ao se tornarem conhecidos, é que geravam imbróglios. Afinal, é sabido que milhares de brasileiros convivem com a dupla nacionalidade, sendo esta uma condição cada dia mais comum [11].

Assim, ao ter-se a aprovação da PEC 131/2023, essa situação resta resolvida, pois, agora, tem-se que apenas será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que "fizer pedido expresso de perda da nacionalidade brasileira perante autoridade brasileira competente, ressalvadas situações que acarretem apatridia" (Artigo 12, §4º, inc. II). Ou seja, na prática, os brasileiros poderão adquirir nacionalidade forasteiras não apenas do tipo originário (como por ius sanguinis ou ius solis), como também derivado (naturalização), onde os problemas apontados acima emergiam.

Além disso, vale pontuar a inserção do §5º no mesmo Art. 12. Este prescreve que "a renúncia da nacionalidade, nos termos do inciso II do §4º deste artigo, não impede o interessado de readquirir sua nacionalidade brasileira originária, nos termos da lei", abrindo a possibilidade para que, por exemplo, Claudia Sobral, Carlos Wanzeler e Ana Cristina do Valle iniciem procedimentos administrativos perante o Ministério da Justiça para reaver a nacionalidade brasileira que lhes foi retirada.

Ademais, importa salientar a relevância da menção ao tipo de nacionalidade que se readquire – a originária. Diversos eram os debates acerca dessa questão na medida em que não havia um regramento claro que determinasse o tipo de nacionalidade que se obteria a partir do citado procedimento, agora alçado à direito fundamental [12]. Inclusive, pode-se dizer que tal menção é igualmente relevante para os debates em torno de outras zonas cinzentas do direito à nacionalidade, tal como aquela que advém da aquisição de nacionalidade brasileira por criança forasteira adotada por brasileiros [13].

 

 


[1] Ressalte-se que a lei estadunidense é distinta da brasileira, haja vista esta não entender que o matrimônio permite automaticamente a requisição de nacionalidade pátria, mas apenas diminui o tempo em que o requerente de naturalização terá de residir no Brasil, no caso, para um ano (em detrimento de quatro, como estipula o art. 65 da Lei de Migrações de 2017), como aponta o Art. 66, inc. II, da Lei de Migrações de 2017.

[2] SQUEFF, Tatiana Cardoso; WEIMER, Sarah Francieli. A Extradição de brasileiro pela perda de nacionalidade originária: uma discussão a partir da extradição 1462/EUA. In: FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; CARVALHO, Thiago Ribeiro (Orgs.). Questões Atuais do Direito Brasileiro e a Jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 293-345. Disponível em: https://www.academia.edu/38501985/A_extradi%C3%A7%C3%A3o_de_brasileiro_pela_perda_de_nacionalidade_origin%C3%A1ria_uma_discuss%C3%A3o_a_partir_da_extradi%C3%A7%C3%A3o_1462_EUA. Acesso em: 04.10.2023.

[3] Idem.

[4] Salienta-se que o argumento em torno da naturalização para fins de exercício pleno de uma profissão foi arguido noutro caso de perda de nacionalidade famoso no Brasil, de Heloisa Guimarães Rapaport. Esta queria exercer o cargo de Promotora Pública Federal dos Estados Unidos, o qual não poderia caso fosse estrangeira. Cf. ROCHA, Juçia Aparecida; FIRMAN, Mariana; LOPES, Patrícia. Perda e Reaquisição da Nacionalidade brasileira: os efeitos do caso Claudia Hoerig. Rio de Janeiro: PUC-Rio, s/d. Disponível em: https://www.puc-rio.br/ensinopesq/ccpg/pibic/relatorio_resumo2019/download/relatorios/CCS/DIR/DIR-Julia%20Aparecida%20Soares%20da%20Rocha,%20Mariana%20De%20Grossi%20Firman,%20Patricia%20Andrade.pdf. Acesso em: 04.10.2023

[5] Este, aliás, é um ponto que há divergência na doutrina. Luis Renato Vedovato, por exemplo, argumenta no seguinte sentido: "Não é o que acontece no caso de se declarar a perda da nacionalidade, o que indica que o a portaria não teria efeito retroativo. Sendo assim, o desafio é saber se o art. 5º, inc. LI, da CF/88, permite a extradição de alguém relativo ao fato cometido enquanto seria detentora da nacionalidade brasileira, deixando claro que para o caso de brasileiro naturalizado, a existência da nacionalidade brasileira no momento do fato é obstáculo intransponível para extradição, que convive com uma única exceção, o caso de comprovado envolvimento com tráfico de entorpecentes. Dessa forma, extraditar alguém por fato ocorrido enquanto detentor da nacionalidade brasileira pode ser um tratamento desigual entre brasileiro nato e naturalizado, já que esse último não poderia ser entregue a soberania estrangeira caso o crime que lhe é imputado tiver sido cometido enquanto detentor da nacionalidade brasileira". Cf. VEDOVATO, Luís Renato. A Perda da Nacionalidade Brasileira e seus Efeitos em Casos de Extradição. Revista da Faculdade de Direito (UFU), Uberlândia, v. 48, pp. 16-37, 2020.

[6] Salienta-se que quando da sua extradição, ainda estavam em curso ações no Supremo (ação rescisória) e no Superior Tribunal de Justiça (acerca do indeferimento do pedido administrativo de reaquisição de nacionalidade). Cf. MARTINS, Helena. Brasileira que perdeu nacionalidade é extraditada e já está presa nos EUA. Agência Brasil, notícia veiculada em 18 de janeiro de 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-01/brasileira-que-perdeu-nacionalidade-e-extraditada-e-ja-esta-presa. Acesso em: 04.10.2023

[7] CONJUR. STF nega rescisória de Carlos Wanzeler e mantém sua perda de nacionalidade. Consultor Jurídico, publicação de 9 de outubro de 2021.

[8] CARMO, Wendal. Ex-mulher de Bolsonaro perde a nacionalidade brasileira. Carta Capital, notícia veiculada em 07 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/ex-mulher-de-bolsonaro-perde-a-nacionalidade-brasileira/. Acesso em: 04.10.2023.

[9] FRAGA, Mirtô. A dupla nacionalidade no Direito Brasileiro, de acordo com a Emenda Constitucional de Revisão n. 3 de 1994. Justitia, São Paulo 57 (171), jul./set., 1995, p. 56.

[10] Idem.

[11] Cf. PARMEGGIANI GOMES, Tatiana B. Dupla nacionalidade no Brasil: acordes afetivos na construção do entendimento. Consultor Jurídico, publicação de 03 de maio de 2021.

[12] Antes, essa regra era apenas prevista no plano infraconstitucional, mais especificamente, no art. 76 da Lei de Migrações, em que pese não trazer o tipo de nacionalidade que se readquiriria. Inclusive, a doutrina mostrava-se preocupada "no sentido da lei de migrações (não) fazer [menos] brasileiro o nacional originário que venha a se tornar nacional de outro país". Cf. VEDOVATO, op. cit., p. 24-25.

[13] A favor do entendimento de que deveria ser a nacionalidade originária, v. CARDOSO, Tatiana de A F R; FLORES, Mariane C.; SILVEIRA, Camila B. A Questão da Nacionalidade na Adoção Internacional. In: ROSA, Conrado Paulino. (Org.). Família e Sucessões: Novos temas e discussões. 1ed.Porto Alegre: RJR, 2015, v. 1, pp. 5-21.

Autores

  • é professora de Direito Internacional e Direito do Consumidor da UFRGS e professora do PPGD/UFU e do PPGRI/UFSM, mestre pela Unisinos. Doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, membro da ILA-Brasil e do Brasilcon.

  • é advogada com experiência em questões de nacionalidade, professora de Direito Internacional Privado e Direito Internacional Público no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília), líder do Grupo de Estudos em Direito Internacional Privado e União Europeia na mesma instituição, professora convidada do curso de especialização "O Novo Direito Internacional" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutoranda e mestre em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora do livro "Cidadania da União Europeia no processo de europeização: em defesa da cidadania pós-nacional", publicado pela Arraes Editores.

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