Opinião

Novo Guia de Dosimetria de Multas de Cartel: despreocupação com pessoa física

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12 de outubro de 2023, 6h02

O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) publicou último no dia 12 de setembro o Guia de Dosimetria de Multas de Cartel com o objetivo de possibilitar que "os representados e toda a sociedade entendam melhor como são estabelecidas as sanções impostas em condenações de cartel pela autoridade antitruste brasileira" [1].

Apesar de apresentar de forma pormenorizada as etapas de definição da multa destinada a pessoas jurídicas, o Guia de Dosimetria deixou de dispor sobre uma metodologia clara e isonômica para o cálculo da multa em face de pessoas físicas, tema que, inclusive, é objeto de preocupação do presidente Alexandre Cordeiro e dos conselheiros Victor Fernandes e Gustavo Augusto, que farão parte da composição do Tribunal Administrativo do Cade pelos próximos anos.

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Segundo as recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) [2], a publicação de guias pelo Cade é de extrema importância para conferir maior transparência às ações e decisões da autarquia, uma vez que tais documentos proporcionam relevantes diretrizes quanto a temas centrais do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) à medida que representam interpretação institucionalizada do panorama jurídico-normativo concorrencial.

Ainda que não apresentem caráter propriamente vinculante, os guias consolidam as melhores práticas e a jurisprudência do Cade, de forma que constituem segura referência sobre paradigmas decisórios da autoridade antitruste brasileira, com o objetivo de apontar suas preocupações mais fundamentais, bem como aquelas que se avizinham, com a devida sinalização ao mercado. Assim, fornecem maior clareza no foco de aplicação da lei de defesa de concorrência e norteiam toda a comunidade antitruste, conferindo padrões de segurança jurídica e previsibilidade.

Diante desse cenário, o Guia de Dosimetria buscou apresentar a metodologia que vem sendo utilizada nas condenações do Tribunal do Cade por meio da consolidação e da análise da jurisprudência das multas aplicadas pelo órgão de janeiro de 2012 a dezembro de 2022. Nesse sentido, o documento: (1) tratou especificamente sobre as etapas do procedimento de definição da multa destinada a pessoas jurídicas; (2) apresentou informações sobre penas alternativas àquelas com viés pecuniário, previstas na legislação antitruste; (3) dispôs sobre esclarecimentos acerca da apresentação de informações de faturamento por empresas representadas em processos administrativos perante o Cade.

No entanto, no que tange à dosimetria de multas aplicadas a pessoas naturais, o guia limitou-se a informar que "a jurisprudência indica que as multas imputadas a PFs [pessoas físicas] administradoras pelo Cade possuem como base de cálculo a multa imposta à empresa a que essa pessoa esteve vinculada durante a conduta" [3]. Além disso, dispôs que a metodologia de aplicação de alíquota sobre a multa das empresas às quais estas pessoas físicas estejam ou tenham sido vinculadas à época da conduta deve respeitar o grau de participação no cartel, definindo que quanto mais relevante for a participação da pessoa física, maior deve ser a alíquota aplicada.

Note-se, portanto, que o guia não abordou preocupações fundamentais expressadas pelo próprio Tribunal do Cade em precedentes recentes quanto à necessidade de clareza e sistematicidade na definição de multas em face de pessoas físicas condenadas por cartel, bem como preocupações da comunidade antitruste acerca de possível efeito confiscatório ou desproporcionalidade dessas multas com relação à sua capacidade financeira da pessoa natural, abrindo espaço para a perpetuação da insegurança jurídica e imprevisibilidade das decisões do Cade sobre a matéria, bem como para possíveis argumentações quanto à existência de "dois pesos e duas medidas" na aplicação de sanções destinadas a pessoas físicas e jurídicas na legislação concorrencial brasileira.

Isso porque, de um lado, a empresa é sancionada de acordo com um critério que, em alguma medida, leva em consideração sua capacidade financeira, já que consiste em uma porcentagem do seu faturamento bruto, com um limite de 20%. De outro, a pessoa física administradora é sancionada, não de acordo com seus rendimentos ou patrimônio, mas sim com base no faturamento da empresa a que ela está relacionada, o qual pode estar completamente alheio à remuneração do administrador, resultando em pesado ônus a esse indivíduo, que pode ser obrigado a pagar multas em valores que superam em várias vezes a sua remuneração anual completa, gerando um efeito confiscatório à multa. Já para pessoas físicas não administradoras, o caráter amplo e discricionário dos parâmetros legais e a ausência de análise da capacidade financeira no cálculo da multa gera insegurança jurídica, bem como possíveis penalidades desproporcionais e confiscatórias [4].

No mesmo relatório de revisão pelos pares em que orientou a publicação de novos guias pelo Cade ressaltado acima, a OCDE chamou atenção justamente para a problemática das multas aplicáveis a pessoas físicas, em especial, o administrador, uma vez que "possuem como base de cálculo a multa imposta à empresa a que essa pessoa esteve vinculada durante a conduta". Isso porque, por se tratar de uma variável do faturamento da empresa, e não dos rendimentos do administrador ou de sua capacidade financeira, a multa aplicada pode ser extremamente pesada e desproporcional, considerando sua ability to pay. Assim, a OCDE recomendou ao Cade que as multas aplicadas a pessoas físicas tivessem relação com o seu salário ou o seu patrimônio. Vejamos:

"10.4.3. (…) O cálculo do valor da multa que pode ser aplicada a um administrador considerado responsável, por culpa ou dolo, pela infração baseia-se no faturamento da empresa. Trata-se de previsão incomum, uma vez que, geralmente, não há relação entre o faturamento da empresa e a renda ou o patrimônio do seu administrador. Não está claro qual efeito dissuasivo tal multa teria sobre os administradores das empresas. Ao extremo, é possível que tais pessoas físicas sejam oneradas com multas extremamente pesadas, o que aumenta o risco de a decisão condenatória do Cade ser revogada pelo Judiciário. As multas aplicadas a pessoas físicas devem estar relacionadas ao salário ou ao patrimônio das respectivas pessoas físicas" [5].

A necessidade de sistematização da aplicação de multas a pessoas naturais em casos de condenação por cartel já foi objeto de debate no Tribunal do Cade em algumas ocasiões, hipóteses em que foi levada em consideração a importância da adequação dos valores à capacidade econômica do infrator como meio de cumprir o efeito dissuasório da pena pecuniária, considerando justamente uma aproximação com os padrões de dosimetria de multas utilizados em outras jurisdições.

Em seu voto no julgamento do cartel dos tubos e conexões, o conselheiro Luiz Hoffmann, relator do caso, abordou em tópico próprio os critérios de dosimetria utilizados em jurisdições estrangeiras, identificando alguns padrões utilizados em outros países sobre o aumento das penas pecuniárias, notadamente em relação às pessoas físicas, por sua capacidade econômica no Reino Unido [6].

Nesse mesmo contexto, mas já buscando uma sistematização da aplicação de multa às pessoas físicas, o conselheiro Sérgio Ravagnani propôs, no âmbito do cartel de filtros automotivos e do cartel de distribuidoras e revendedoras de combustíveis em Joinville (SC) [7], a valoração da condição econômica atual do infrator a partir de dados concretos obtidos por meio da Receita Federal do Brasil. Assim, com o objetivo de garantir que a multa aplicada ao infrator não fosse sub ou superdimensionada, o conselheiro apontou em seu voto-relator no Processo Administrativo nº 08700.003340/2017-63 [8] que:

"256. A partir do julgamento do PA nº 08700.009879/2015-64 (cartel de distribuidoras e revendedoras de combustíveis em Joinville/SC), adoto a postura de requisitar informações sobre renda e patrimônio dos administradores à RFB para valorar a condição prevista no inc. VII do art. 45 da Lei nº 12.529/11, qual seja, a condição econômica do infrator, a fim de que o valor da pena de multa ao administrador não seja subdimensionada a ponto de enfraquecer o enforcement do Cade na repressão das infrações contra a ordem econômica, e nem sobredimensionada, ferindo garantias do administrador como a dignidade da pessoa humana e a individualização da pena (art. 1º, inc. III, e art. 5º, inc. XLVI, ambos da Constituição Federal).
257. Naquele julgamento, propus um limite máximo para o valor da pena de multa a administrador, qual seja, o maior valor entre (i) 25% dos rendimentos declarados à RFB no último exercício e (ii) 10% do patrimônio informado a RFB no mesmo período."

Extrapolando o "projeto" de sistematização acima destacada, tem-se decisão mais recente do Cade no julgamento do processo administrativo que investigou a formação de cartel em licitações da Infraero por cafeterias, que se tornou verdadeiro leading case da metodologia proposta pelo conselheiro Gustavo Augusto [9].

Em seu voto-vogal, embora tenha verificado a iniciativa na sistematização de definição de multas para as pessoas físicas, o conselheiro esclareceu inexistir uma metodologia específica, razão pela qual entendeu ser relevante esboçar uma metodologia para determinação da dosimetria da multa, pela qual "o julgamento final deve ter a liberdade suficiente para permitir que este Tribunal considere as questões específicas do caso, devendo a eventual condenação e respectiva dosimetria considerar critérios de proporcionalidade, isonomia, equidade, moralidade administrativa e razoabilidade", sendo certo que "a multa dever ser proporcional, exequível e apta a ser efetivamente cobrada pelos meios de execução legalmente disponíveis, considerando o quadro financeiro do representado e sua situação patrimonial. E essa aplicabilidade deve ser determinada de forma simples e previsível" e "[p]ara isso, deve haver regras claras que permitam que o julgador encontre o ponto de equilíbrio em relação ao binômio ‘aplicabilidade- efeito dissuasório" [10].

O método apresentado pelo conselheiro possui duas fases. Na primeira, verifica-se a circunstância da conduta para fixação da alíquota da multa entre 0,1% e 20%. Na segunda, com base na declaração de imposto de renda ou outros elementos fáticos relevantes, é feita a análise sobre a compatibilidade da multa (verificação do ability to pay), ou seja, se o infrator tem capacidade de pagar e, ao mesmo tempo, se a multa não é excessivamente baixa, nos termos do artigo 45, inciso VII, da Lei nº 12.529/2011 ("situação econômica do infrator").

O presidente do Cade, Alexandre Cordeiro, seguiu o voto do conselheiro Gustavo Augusto, destacando a importância de a autoridade observar a proporcionalidade das multas e a capacidade de pagamento dos envolvidos. A proposta também foi endossada pelo conselheiro Victor Fernandes, que frisou que se trata de proposição, e não imposição, de metodologia, com vistas a conferir maiores racionalidade, sistematicidade, previsibilidade e segurança jurídica aos julgados do conselho, que não retira a liberdade concedida pelo ordenamento jurídico aos conselheiros do Cade de empregar outras metodologias, de acordo as circunstâncias específicas de cada caso concreto, desde que dentro dos parâmetros legais [11].

Em caso posterior, que investigou cartel em licitações públicas para obras e serviços de engenharia em unidades escolares do município de Juazeiro do Norte (CE), a metodologia proposta pelo conselheiro Gustavo Augusto foi devidamente aplicada pelo Tribunal do Cade, porém frisou-se que "a verificação da situação econômica, e consequente análise do ability to pay, somente são aplicáveis se o representado apresenta, ou se consta dos autos, elementos fidedignos que permitam avaliar a sua real situação econômica", isto é, na hipótese de inexistência de "valores idôneos nem do patrimônio, nem da renda do infrator, ou havendo indícios de ocultação ou tentativa de ocultação de patrimônio ou de rendimento, ou de enganosidade dos dados apresentados, entendo não ser o caso de se aplicar qualquer limitação relativa à situação econômica do infrator" [12].

A metodologia de aplicação de multas a pessoas físicas que leva em consideração a capacidade financeira do investigado reflete uma modernização nos padrões de análise e punição de cartéis pelo Cade, demonstrando uma tendência de busca pelo caráter essencialmente dissuasório da multa — de modo que, segundo Posner, a pena seja equivalente ao custo gerado pela prática anticoncorrencial na sociedade, não de uma maneira que remeta a lex talionis, gerando efeito confiscatório, mas meramente como um conceito de eficiência [13] , bem como de respeito às diferenças existentes entre as realidades das pessoas físicas e das pessoas jurídicas no contexto dos processos administrativos envolvendo cartéis enfraquecendo a possibilidade de argumentação de existência de tratamento distinto de pessoas físicas e jurídicas na aplicação de penas pecuniárias pelo Cade através da aplicação da verificação da capacidade financeira de maneira indistinta a todos os investigados.

No entanto, o Guia de Dosimetria deixou de registrar tal metodologia como, no mínimo, uma proposição não vinculante de método de cálculo de multas destinadas a pessoas físicas, como também perdeu a oportunidade de, ao menos, apontar as preocupações fundamentais frequentemente levantadas em julgamentos pelo Tribunal do Cade quanto à necessidade de clareza e sistematicidade na definição dessas multas.

Levando em conta os tradicionais desafios no sentido de uma maior convergência de entendimentos e consolidação da jurisprudência sobre dosimetria das penas, elevados pelo término do mandato de quatro conselheiros da atual formação do Tribunal do Cade que, por sua vez, estava atenta à problemática em destaque , pode-se argumentar que o conselho foi omisso nesse ponto do guia, falhando em conferir melhores padrões de segurança jurídica e previsibilidade e maiores clareza e transparência às suas decisões garantido por meio do processo administrativo sancionador com critérios objetivos certos, isonômicos e, de maneira transparente, previamente definidos [14] ao não apresentar uma referência sobre um paradigma decisório de relevância para a comunidade antitruste brasileira.

Contudo, diante das recentes manifestações do presidente Alexandre Cordeiro e dos conselheiros Victor Fernandes e Gustavo Augusto, que farão parte da composição do Tribunal Administrativo do Cade pelos próximos anos, vislumbra-se uma tendência de consolidação da sistematização do cálculo de multas destinadas a pessoas físicas investigadas por cartel na jurisprudência do conselho, levando em conta a capacidade financeira à luz dos princípios constitucionais da proporcionalidade, razoabilidade e vedação ao confisco.

 

 


[1] CADE. Guia Dosimetria de Multas de Cartel. 2023, p. 5. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/Guia-dosimetria-de-multas-de-cartel.pdf. Acesso em: 06.10.2023.

[2] OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Revisões por Pares da OCDE sobre Legislação e Política de Concorrência: Brasil. 2019. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/revisoes-por-pares-da-ocde-sobre-legislacao-e-politica-de-concorrencia-brasil-2019-web.pdf. Acesso em: 06.10.2023.

[3] CADE. Guia Dosimetria de Multas de Cartel. 2023, p. 29. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/Guia-dosimetria-de-multas-de-cartel.pdf. Acesso em: 06.10.2023.

[4] FIGUEIREDO, Natália de Lima. Dois pesos, duas medidas: a problemática da dosimetria da multa para pessoas físicas no âmbito do Cade. In: Revista do Ibrac, vol. 1, 2021, p. 146-147. Disponível em: https://ibrac.org.br/UPLOADS/PDF/RevistadoIBRAC/Revista_do_IBRAC_n_1_2021.pdf. Acesso em: 06.10.2023.

[5] OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Revisões por Pares da OCDE sobre Legislação e Política de Concorrência: Brasil. 2019, p. 194-195. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/revisoes-por-pares-da-ocde-sobre-legislacao-e-politica-de-concorrencia-brasil-2019-web.pdf.

[6] Vide Voto Relator do conselheiro Luiz Hoffmann (SEI 0974145) nos autos do Processo Administrativo nº 08700.003390/2016-60.

[7] Processos Administrativos nº 08700.003340/2017-63 e nº 08700.009879/2015-64, respectivamente.

[8] SEI 0974596.

[9] Processo Administrativo nº 08700.007278/2015-17.

[10] Vide Voto-vogal do conselheiro Gustavo Augusto Lima (SEI 1100178) nos autos do Processo Administrativo nº 08700.007278/2015-17.

[11] Vide Voto-vogal do conselheiro Victor Fernandes (SEI 1100732) nos autos do Processo Administrativo nº 08700.007278/2015-17.

[12] Vide Voto-relator do conselheiro Gustavo Augusto Lima (SEI 1202605) nos autos do Processo Administrativo nº 08700.000269/2018-48.

[13] POSNER, Richard. Antitrust Law – An Economic Perspective. 2. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 2001, p. 266-267.

[14] WATANABE, Doshin. Interpretação e aplicação dos critérios para fixação das multas às infrações econômicas. Revista de Defesa da Concorrência, v. 5, nº 1, p. 178-204, maio 2017.

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