Opinião

Nova Lei do Carf e multas qualificadas: criamos um gato de Schrödinger?

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11 de outubro de 2023, 13h18

A Lei nº 14.689/2023, a nova Lei do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), em vigor desde setembro de 2023, estabeleceu a exclusão das multas nas situações em que aplicado o voto de qualidade, que é o voto favorável à Fazenda Pública, no caso de empate no julgamento. Sendo um órgão julgador composto por oito conselheiros, quatro indicados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (SRFB) e quatro indicados pelas confederações das empresas, o empate é algo relativamente recorrente.

Não vamos aqui debater as inconsistências da lei, fruto de pressões que possuem raízes históricas. Essas disfunções existirão enquanto tivermos um tribunal com número par e formado por representantes das próprias categorias autuadas. Mas esse não é o foco deste debate.

Nosso interesse se volta a uma situação na qual a lei parece ter criado um desafio à lógica formal aristotélica, em especial o princípio da não-contradição, segundo o qual uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo.

A nova Lei do Carf deu a seguinte redação ao artigo 25 do Decreto-Lei 70.235/1972:

"§ 9º-A. Ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para os fins penais de que trata o art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º deste artigo."

Em suma, quando houver empate, o julgamento deve ser favorável à Fazenda Pública, mas deve ser excluída a multa. O que acontece, então, quando no julgamento houver aplicação do voto de qualidade (empate favorável à Fazenda) justamente no capítulo do julgamento referente à qualificação da multa, que agora pode ser de 100% ou 150%?

Para quem não está familiarizado com os processos administrativos fiscais, cabe uma explicação. Muitas vezes a Turma julgadora decide o mérito por unanimidade ou por maioria, mantendo o lançamento do tributo. Em um segundo momento, porém, passa a julgar, com nova tomada de votos, se a multa de ofício merece ou não ser qualificada pela ocorrência de sonegação, fraude ou conluio.

Nesse caso, a aplicação do dispositivo do desempate parece gerar um "bug" no sistema, pois o julgamento favorável à Fazenda Pública não convive logicamente com a exclusão da multa, gerando um paradoxo parecido com aquele pensando pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, em sua experiência de superposição ou emaranhamento quântico, em que o gato pode estar vivo ou morto ao mesmo tempo: o famoso gato de Schrödinger.

Seria possível ter um julgamento favorável à Fazenda Pública, mantendo "viva" a multa qualificada, ao mesmo tempo em que exclui as multas, ou seja, "matando" essa parte do lançamento? As ciências exatas podem conviver bem com esses paradoxos. As ciências sociais, porém, precisam apresentar soluções aos problemas da vida real, não podendo conviver com questões insolúveis ou especulações.

Do ponto de vista lógico, o Decreto-Lei nº 70.235/72 estabelece o seguinte: Se houver empate (A), então: o julgamento é favorável à Fazenda Pública (B) e são excluídas as multas (C). A fórmula de implicação ou condicional é: Se A, então B e C.

Agora vamos imaginar três cenários para o julgamento da multa qualificada, aplicada em situações de sonegação, fraude ou conluio, quando decidida por voto de qualidade (empate).

1ª hipótese: a primeira possibilidade seria a de manter a multa qualificada, pois houve empate, o que induz a um resultado favorável à Fazenda Pública. Caso isso ocorra, parece que está sendo descumprida a determinação (C), pois houve empate, mas não se fez exclusão de multa.

2ª hipótese: poderíamos fazer uma posição média, mantendo a multa, mas excluindo a qualificadora, ou seja, mantendo só a multa de ofício em 75%. Nesse caso, descumprimos (B) e (C), pois houve empate para manter a multa qualificada, mas não se julgou favoravelmente à Fazenda e nem se excluiu as multas. Seria um "ganhou, mas não levou" para a Fazenda Pública.

3ª hipótese: essa seria a situação mais teratológica, em que há o julgamento por voto de qualidade para manter a multa qualificada, mas diante do empate se exclui a multa inteira, para se cumprir à risca o que contido em (C). Nessa hipótese, há claro descumprimento de B, pois apesar de haver o empate, não houve qualquer julgamento favorável à Fazenda Pública. Pelo contrário, a Fazenda saiu pior do que entrou. Aliás, essa hipótese seria tão disfuncional, que seria melhor para a Fazenda concordar com a exclusão de todas as multas qualificadas, em todos os processos, desistindo de contestar, para não correr o risco de excluir toda a multa e causar um estrago maior no crédito público.

Como se vê, em todas as situações (B) ou (C) são descumpridos. O que fazer, então, nesse caso, se em uma lógica proposicional não é possível resolver a questão? Entendemos que precisamos nos servir de outros elementos hermenêuticos, como o princípio da unidade, que estabelece que uma norma não deve conter contradições internas.

Sob uma análise teleológica, podemos dizer que há uma relação de consequencialidade entre (B) o julgamento favorável à Fazenda Pública e (C) exclusão da multa. A exclusão da multa, inclusive na negociação política que envolveu o acordo para a edição da Lei nº 14.689/2023, veio como uma "compensação" pelo retorno do voto de qualidade. Parece bem claro que o julgamento favorável à Fazenda é o resultado primário do voto de qualidade, enquanto a exclusão da multa é o resultado secundário, consequencial. Não se criou o voto de qualidade para a exclusão de multas ou para se conceder benefícios de parcelamento sem juros, mas sim para resolver a grande questão que é a definição de um veredicto em órgão julgador de composição par, que sempre demanda uma regra para os casos de empate.

Seguindo o princípio hermenêutico da concordância prática, ou da harmonização, quando houver conflito de normas (como o conflito de (B) e (C), multicitado), sempre analisado em situação concreta (método tópico-problemático), deve-se evitar o sacrifício dos direitos em colisão, buscando uma otimização. O caso da multa qualificada, porém, não permite essa harmonização, pois vimos que em todas as hipóteses possíveis os elementos (B) ou (C) são sacrificados. Diante da impossibilidade lógica de otimização, um dos dois precisa ser priorizado e outro sacrificado.

A necessidade de se ponderar direitos em caso de conflitos não é nenhuma novidade no Direito. Até o direito à vida, tido como o mais essencial dos direitos, é sacrificado em algumas hipóteses de conflitos (homogêneos ou heterogêneos, a depender da natureza dos direitos envolvidos). É o caso do aborto necessário, da pena de morte em caso de guerra declarada, da legítima defesa e do estado de necessidade, por exemplo. A conclusão a que se chega é a de que não existe direito que não possa ser suprimido quando um conflito aparente de normas não admita uma harmonização.

Sendo assim, entendemos que na hipótese de julgamento por voto de qualidade do capítulo relativo à qualificação da multa, deve ser mantida a multa de ofício qualificada, com voto favorável à Fazenda Pública, sem o efeito secundário e consequencial (C), já que ele entra em confronto direto com o efeito primário (B), sendo impossível a coexistência das duas normas contidas no dispositivo.

O resultado seria: quando houver empate (A), o julgamento é favorável à Fazenda (B) e é excluída a multa (C), se e somente se (C) não anular (B). Em escrita lógica, temos:

(A → (B C)) (C → ¬B)

Precisando escolher entre Schrödinger e Aristóteles, deixamos o austríaco com a Física e o grego com o Direito.

A questão da multa qualificada, que aqui abordamos, é a ponta de um iceberg, que exige uma definição clara quanto ao tipo de decisão que atrai a exclusão da multa nos casos de empate. Esse iceberg vai emergir, agora que a norma será aplicada a todo vapor pelas Turmas de julgamento, trazendo implicações em questões complexas, como no caso dos julgamentos ilíquidos ou de responsabilização solidária. Mas isso fica para um outro momento.

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