Anuário da Justiça

De cada 4 ações nas Justiças Estadual e Federal, uma é de consumo

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11 de outubro de 2023, 10h46

*Reportagem publicada na 1ª edição do Anuário da Justiça Direito Empresarial. A versão online é gratuita (clique aqui para ler) e a versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui para comprar).

De cada quatro ações distribuídas nas Justiças estadual e federal, entre 2018 e 2022, uma tinha como tema o Direito do Consumidor. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, os tribunais brasileiros receberam 24,6 milhões de novos processos por ano, em média, nesse período. Destes, 5,1 milhões dizem respeito a demandas de consumidores contra fornecedores.

Enquanto isso o Sindec, Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor, que engloba todos os Procons do país e que foi criado para atender as queixas dos consumidores na esfera extrajudicial, registrou, entre 2018 e 2022, a média anual de 1,9 milhão de reclamações consumeristas.

Instituído pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990, art. 105) como um auxiliar do Judiciário, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) é formado pela Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon), em âmbito federal, e pelo Programa de Proteção e Defesa do Consumidor, mais conhecido como Procon. O SNDC congrega ainda o Ministério Público, a Defensoria Pública e entidades civis de defesa do consumidor.

Órgãos mais próximos do consumidor, os Procons estão presentes em cada um dos estados brasileiros, no Distrito Federal e em 858 municípios, de acordo com dados do Sindec. Nos dizeres do Procon do Rio de Janeiro, o Procon é o “órgão do Poder Executivo municipal ou estadual destinado à proteção e defesa dos direitos e interesses dos consumidores. Cumpre-lhe basicamente as funções de acompanhamento e fiscalização das relações de consumo ocorridas entre fornecedores e consumidores”.

Especialistas ouvidos pelo Anuário da Justiça são unânimes: a inobservância ao Código de Defesa do Consumidor e demais leis consumeristas pode trazer problemas que vão do surgimento de avaliações negativas a campanhas de boicotes em meio à cultura do cancelamento crescente nas redes sociais, passando pelo risco de multas vultosas por parte dos órgãos da administração que atuam em defesa do consumidor, chegando a condenações nos casos em que o conflito é judicializado. Todas as situações têm impacto sobre o orçamento da empresa.

Empresas respondem, em média por ano, a 4,5 milhões de ações judiciais com reclamações dos consumidoresFeepik

A esse cenário hostil, soma-se o fenômeno da chamada advocacia predatória, em que ações judiciais em massa, especialmente na área do consumo, são propostas por meio de petições padronizadas e pedidos genéricos. Para os especialistas, a gestão adequada do passivo e a adoção de medidas de prevenção são os caminhos possíveis para neutralizar essas ameaças aos negócios.

O advogado Thiago Vezzi, do escritório Vezzi Lapolla Mesquita Advogados – que atende empresas de grande porte de ramos como o varejo, saúde, transporte aéreo e alimentos – explica que a gestão do passivo consumerista, principalmente pelas grandes organizações, costuma ser terceirizada.

“O core business da empresa não é o serviço jurídico. Não faz muito sentido uma empresa do varejo, por exemplo, ter um departamento jurídico especializado em áreas como a trabalhista, consumidor e cível, que é a forma de organização dos escritórios de advocacia. Em regra, a maioria das empresas trabalha com a terceirização e tem, em suas equipes, advogados para fazer a gestão junto com esses escritórios”, explica.

A engrenagem envolvida na defesa chama a atenção. Em cada uma das milhares de demandas judiciais, o departamento jurídico interno levanta informações que vão da identificação do consumidor até as reclamações que ele tenha feito junto ao SAC, o Serviço de Atendimento ao Cliente da empresa, ou a órgãos de proteção. Esses dados são compilados e repassados ao escritório para instruir a defesa.

Vezzi destaca, no entanto, que o custo dessa gestão vai além do processo. “Muitas empresas têm capital aberto. Seus relatórios de contingência e provisionamento, que são encaminhados para auditoria, precisam prever essas demandas. E isso, naturalmente, afeta o valor das ações e da companhia em si. Há uma série de custos que não enxergamos no processo judicial e que a empresa muitas vezes arca”, afirma.

A gestão mais eficiente desse passivo tem alavancado o mercado das legaltechs – empresas de tecnologia jurídica. O advogado Klaus Riffel, CEO da DOC 9, explica que organizações como bancos chegam a ter centenas de escritórios de advocacia contratados para dar conta da defesa das causas que respondem Brasil afora. Segundo ele, a maior parte dessas demandas é repetitiva e pode ser gerida por robôs. “Esse número tende a cair em um futuro próximo. Como tem jurisprudência consolidada nos tribunais, tendem a ser tocados por ferramentas de inteligência artificial e machine learning. O que vai sobrar para os escritórios serão os casos mais específicos e estratégicos”, afirma.

Segundo Riffel, a DOC 9 atende empresas do setor financeiro que já têm 20% da carteira administrada por robôs. “De acordo com a análise do caso e sendo este repetitivo, eles encaixam as melhores peças processuais sem precisar de advogados, evitando todo o custo que haveria ao se repassar isso para os escritórios parceiros. Alguns já experimentaram a redução de 60% na quantidade de escritórios contratados. Um banco que tinha 320 escritórios conta hoje com 120 porque boa parte de suas demandas está sendo tocada por ferramentas tecnológicas”, conta.

O advogado Francisco Fragata Jr., do escritório Fragata e Antunes Advogados, também especializado em Direito do Consumidor, ressalta que as empresas, principalmente as de grande porte, têm uma estrutura criada para entender e aplicar a legislação consumerista. “Temos milhares de empresas, com muitas condutas, mas as grandes tentam seguir o Código de Defesa do Consumidor”, afirma.

Problemas, no entanto, continuarão ocorrendo, sobretudo em uma sociedade de consumo de massa. E a tendência é que continuem a desembocar na Justiça, em parte impulsionados pela chamada indústria do dano moral.

Dados do CNJ mostram que a indenização por violações à honra e dignidade é o principal assunto das ações consumeristas. Dentre os 5,8 milhões de processos distribuídos em 2022, 1,2 milhão pediam esse tipo de reparação – 21% do total. O índice segue a tendência apresentada ao longo de 2021: quando 20,7% das ações relacionadas a Direito do Consumidor pediam indenização por danos morais.

“O Judiciário costuma dar o dano moral com muita frequência. Situações em que dificilmente se teria um abalo moral, acabam levando. Dano moral tem que ser visto com parcimônia, não é para um desconforto ou insatisfação”, frisa Fragata.

O advogado também chama a atenção para as indenizações por dano moral a título de punição exemplar, que têm ganhado espaço na Justiça. “O agravamento da indenização por dano moral para que a empresa não cometa outros desvios se dá em ação coletiva, para que ela aprenda a lição. Não há previsão para isso na legislação, mas o Judiciário acolhe. Não é intenção das empresas prejudicar seus consumidores. O Judiciário teria que ser mais rigoroso com relação a essa questão, pois pode ser uma alavanca para a judicialização”, avalia.

O desembargador Cesar Cury, TJ-RJ, vê a questão de forma diferente. “O dano moral, assim como o material e o estético, se estiver configurado, tem que ser pago. Se é incentivo ou contra-incentivo ao uso do Judiciário, não é assunto que diga respeito ao juiz. O juiz não pode ser consequencialista. O material que o juiz usa são as provas do processo, a Constituição, as leis, a jurisprudência e os precedentes”, pontua.

Diante desse cenário, o Poder Judiciário tem buscado o equilíbrio. É o caso do STJ, destino final da maior parte dos recursos consumeristas, que criou o método bifásico para definir a quantia das indenizações por dano moral. Nesse modelo, um valor básico para a reparação é analisado considerando-se o interesse jurídico lesado e os precedentes. Depois, é feita a avaliação das circunstâncias do caso para a fixação definitiva da reparação. O objetivo não é onerar, mas ser justo.

Em paralelo a toda essa discussão, verifica-se ainda o surgimento de outro fenômeno: a chamada advocacia predatória, que tem levado um número expressivo de ações de consumo aos tribunais. Não raro, esses processos são constituídos por pedidos genéricos, incluindo a reparação por danos de natureza moral.

O advogado Thiago Vezzi alerta que já há empresas respondendo a um volume considerável de processos desse tipo. “Temos visto nos últimos anos que o Judiciário tem se tornado porta de entrada para ações não tão fundamentadas. Temos segmentos de mercado hoje no Brasil com 40% de seus processos sem qualquer fundamento. Muitos com documentos adulterados, falsificados ou sem o conhecimento exato do autor da ação”, destaca.

Seja uma microempresa ou uma grande corporação, o olhar para as relações de consumo deve envolver todas as áreas da organização e etapas do negócio, afirma a advogada Fabíola Meira, sócia do escritório Meira Breseghello Advogados, especializado em relações de consumo. Somente assim é possível evitar o impacto do passivo consumerista sobre a atividade empresarial.

Em outras palavras: é preciso estar atento à regulação pertinente, acompanhar o produto ou serviço desde seu desenvolvimento até a publicidade, assim como ofertar o tratamento adequado aos conflitos que venham surgir no pós-venda, justamente para evitar o litígio.

As ações para a promoção da conformidade, ética e integridade nas relações com os consumidores levaram ao surgimento do compliance consumerista, que tem ganhado espaço nas empresas, até por integrar a Agenda ESG, que estabelece o compromisso das instituições com o desenvolvimento social e ambiental. ESG é uma sigla em inglês para environmentalsocial and governance, e corresponde às práticas ambientais, sociais e de governança de uma organização.

“Quando a gente fala do compliance, geralmente vem à nossa cabeça questões tais como evitar a corrupção, a anticoncorrência, as fraudes. Mas o compliance consumerista veio para trazer uma série de diretrizes de governança com o olhar na relação de consumo, e isso desde a elaboração do produto ou serviço”, explica a advogada.

Dessa forma, o compliance consumerista estabelece as estratégias para a prevenção de conflitos, a gestão adequada das demandas trazidas pelos consumidores e a criação de instrumentos para coibir as autuações e a judicialização. O porte da organização determina o esforço a ser empreendido nessas ações.

Segundo Fabíola Meira, em uma empresa pequena, onde a comunicação entre as áreas tende a ser mais fácil e rápida, basta a designação de alguém do departamento jurídico interno para orientar os setores responsáveis pelo marketing e atendimento ao cliente, por exemplo; assim como para responder, de forma adequada e nos prazos fixados, as interpelações feitas por órgãos de proteção do consumidor.

Para tanto, Meira indica treinamento e cursos de noções gerais sobre legislação consumerista, muitos oferecidos gratuitamente por entidades como a Senacon. Outra opção, de acordo com a advogada, é a contratação de uma assessoria externa para prestar consultoria acerca da comercialização de produtos ou serviços de forma pontual.

Nas empresas maiores, em razão do volume de vendas – e, quase sempre, de reclamações envolvidas – a governança consumerista se faz necessária para coibir, entre outras falhas, a reincidência. A advogada Fabíola Meira cita como exemplo uma multa vultosa aplicada em razão de uma propaganda enganosa. É importante compartilhar o caso pela área jurídica e pelos demais setores da empresa, para que o problema seja tratado em sua causa-raiz.

Os investimentos em tecnologia também são importantes. Meira cita como exemplo um cliente que respondia constantemente a ações judiciais de consumidores que, até por esquecimento, alegavam não ter feito determinada contratação no contato telefônico com a empresa. A companhia passou a gravar as ligações a fim de registrar a anuência dos clientes quanto à contratação. “A gente começou a juntar essas gravações, que eram lícitas e previamente comunicadas aos consumidores, e as sentenças começaram a ser favoráveis para a empresa. Essa foi uma medida preventiva, que analisou a causa-raiz”, relata.

No Rio de Janeiro, o Direito do Consumidor esteve presente em 45,2% das novas ações recebidas pelo Tribunal de Justiça em 2018 e em 41,7% dentre aquelas que chegaram em 2019, segundo os dados do CNJ. Esses índices justificam a importância de projetos como o Expressinho. A iniciativa busca resolver de forma extrajudicial os litígios suscitados pelos consumidores contra grandes litigantes. Está sendo implementada nos Juizados Especiais Cíveis do estado, em parceria com a varejista Americanas; as empresas de telefonia Oi, Tim e Claro; e as concessionárias de energia elétrica Light e de saneamento Águas.

Dos 6.130 atendimentos presenciais no Expressinho entre janeiro de 2018 e abril de 2023, 2.705 (44%) resultaram em acordos. Em 2020 e 2021, diante da pandemia, os atendimentos foram suspensos. “Trata-se de um ótimo instrumento, pois permite que o consumidor formalize sua reclamação diante do preposto da empresa reclamada e, após a verificação de procedência da pretensão do consumidor, é formulada uma proposta. O acordo é homologado pelo juiz e tem força de sentença transitada em julgado”, destaca o presidente do TJ-RJ, desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo.

Em Minas Gerais, o Judiciário também tem incentivado o uso da autocomposição nas demandas consumeristas. Durante os dois primeiros anos da pandemia, a Justiça mineira registrou um número maior que o habitual de ações novas sobre Direito do Consumidor. Segundo dados do CNJ, a participação desses processos sobre o total distribuído foi de 21% em 2020 e 2021.

A juíza Claudia Luciene Silva Oliveira, que coordena os juizados especiais do TJ-MG, afirma que, nessas instâncias, onde são julgadas causas de até 40 salários mínimos, os conflitos decorrentes das relações de consumo predominam. Por esse motivo e em atenção à política judiciária de tratamento adequado de conflitos de interesse, a Justiça mineira tem cada vez mais voltado o seu olhar para os métodos consensuais.

Nesse sentido, os juízes contam com uma pauta semanal de conciliações. Destacam-se também os mutirões, promovidos mesmo depois da judicialização. “Em uma única semana são realizadas milhares de audiências, com resultados muito bons. As empresas são previamente informadas, então elas trazem propostas mais interessantes para o consumidor”, conta.

Uma iniciativa em estudo poderá ampliar ainda mais a conciliação na Justiça mineira. “Em breve lançaremos um projeto conjunto da 3ª Vice-Presidência e do Juizado Especial de Belo Horizonte, que consiste em instalar um sistema multiportas para o atendimento pré-processual nos Cejuscs [Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania] de Belo Horizonte. O objetivo é disponibilizar ao jurisdicionado a informação de que ele dispõe de várias opções para resolver seus conflitos”, explica a juíza.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, que, em média, recebe 12% de ações relacionadas aos direitos dos consumidores por ano, criou, em 2017, o programa de conciliação e mediação Empresa Amiga da Justiça. Empresas e grupos empresariais aderem voluntariamente e recebem metas de aumento da quantidade de número de acordos judiciais e extrajudiciais, além de serem monitorados pelo tribunal quanto à quantidade de processos distribuídos e quanto às ações adotadas para incentivar a autocomposição. Atingido o objetivo, recebem o selo “Empresa Amiga da Justiça”, que pode ser usado em campanhas.

ANUÁRIO DA JUSTIÇA DIREITO EMPRESARIAL 2023
1ª edição
Número de Páginas: 156
Editora: Consultor Jurídico
Versão impressa: R$ 40, na Livraria ConJur
Versão digital: É gratuita, acesse pelo site https://anuario.conjur.com.br ou pelo app Anuário da Justiça

Anunciaram nesta edição
Advocacia Del Chiaro
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Bottini & Tamasauskas Advogados
Caselli Guimarães Advogados
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Décio Freire Advogados
Dias de Souza Advogados
Heleno Torres Advogados
JBS S.A.
Laspro Consultores
Leite, Tosto e Barros Advogados
Lemos Jorge Advogados Associados
Machado Meyer Advogados
Sergio Bermudes Advogados
Unisa – Universidade Santo Amaro
Warde Advogados

 

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