Território Aduaneiro

Lei 14.689/2023: no retorno do voto de qualidade, como ficaram as multas?

Autor

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

10 de outubro de 2023, 8h00

No último dia 20 de setembro, entrou em vigência a Lei nº 14.689/2023, que restabeleceu o voto de qualidade no Carf e trouxe outras disposições importantes, com significativo impacto no julgamento em geral, incluindo as matérias aduaneiras.

Spacca
Nesta coluna, já tivemos dois textos acerca do conteúdo da nova lei. No primeiro [1], de minha autoria, ainda antes da sanção presidencial, foram apontadas preocupações, especialmente com o artigo 14 do PL aprovado, que veicularia a possibilidade de mediação entre autoridades administrativas de tema concernente ao contencioso administrativo fiscal. Ainda bem que a caixa de Pandora se fechou a tempo e esse artigo não se tornou lei em razão do veto do presidente da República.

No segundo artigo, o colega Rosaldo Trevisan [2] indicou, com muito humor e inteligência, algumas incongruências do PL do Carf e da própria Lei aprovada, tendo em vista o desiderato de reduzir a litigância e o tempo de julgamento dos processos [3].

As turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), as turmas ordinárias e as turmas especiais do Carf são compostas por número par de conselheiros, sendo a metade representantes da Fazenda e a outra metade representantes dos contribuintes. Todos os conselheiros têm por dever ser técnicos e imparciais, e a composição paritária permite que diferentes experiências e perspectivas sejam apresentadas e debatidas abertamente nos julgamentos. Contudo, esse equilíbrio baseado na diversidade de background encontra seu limite quando acontece o empate nos votos de um julgamento.

Vale ter presente que o julgamento, mesmo que em um órgão separado do Fisco e com paridade, compõe o processo administrativo e, consequentemente, a decisão definitiva do Carf é considerada uma decisão da administração pública, da qual a Procuradoria da Fazenda não tem legitimidade para recorrer mesmo que desfavorável. Por sua vez, o sujeito passivo, sempre que a decisão não lhe seja integralmente favorável ostenta o direito de ir ao Judiciário.

Nesse contexto, foi estabelecido o voto de qualidade para os presidentes de turma da CSRF, das turmas ordinárias e das turmas especiais, sendo que a posição de presidente é reservada a conselheiro representante fazendário.

Retomando o histórico: o voto de qualidade foi introduzido no sistema jurídico brasileiro em 1934, tendo alçado a hierarquia de lei em 2008; no ano de 2020, em um panorama político ultraliberal, o voto de qualidade foi afastado, por meio da Lei nº 13.988; no início do governo Lula, o voto de qualidade foi reintroduzido por Medida Provisória, que perdeu a vigência em 15 de junho de 2023; em 5 de maio de 2023, foi apresentado em regime de urgência o Projeto de Lei nº 2.384, que propôs o restabelecimento do voto de qualidade e tratou de outras matérias. O PL foi aprovado, mas foi objeto de vetos presidenciais; em 20 de setembro de 2023 entrou em vigência a Lei nº 14.689 [4].

Na redação atual da lei, com os vetos presidenciais, ainda encontramos o afastamento de multas e outras medidas favoráveis ao sujeito passivo no caso de decisão por voto de qualidade no Carf. Neste artigo, a proposta é se concentrar nas novas regras que impactaram as multas. Convido o leitor a essa reflexão.

O artigo 2º da Lei nº 14.689/2023, introduzindo o artigo 9º-A no Decreto nº 70.235/1972 (PAF), prevê a exclusão das multas e o cancelamento da representação fiscal para os fins penais na hipótese de julgamento favorável à Fazenda Pública por voto de qualidade. Nessa disposição, não se exige que se trate de julgamento definitivo, portanto, o sujeito passivo poderá ser beneficiado e ainda recorrer na via administrativa, se couber, ou na judicial.

É de se concluir que esse benefício foi concedido como consectário da decisão por voto de qualidade e não depende de constar expressamente na decisão do Carf. Note-se ainda que a determinação legal é de exclusão das multas objeto do processo em termos gerais, o que inclui as multas relativas aos tributos incidentes na importação e também as multas aduaneiras.

Necessário destacar que o papel das multas aduaneiras é muito diverso daquele das multas tributárias, pois aquelas visam a proteger expressivos bens jurídicos diversos da arrecadação, por exemplo, nos direito antidumping, no controle ou na proibição pertinente à importação de medicamentos, armas, alimentos, produtos usados, lixo etc. O afastamento das multas aduaneiras poderá ter o condão de comprometer importantes valores, como o equilíbrio concorrencial e políticas públicas relativas à saúde, segurança, meio ambiente.

Tanto em relação a multas tributárias, quanto aduaneiras, em virtude do novo dispositivo mencionado, artigo 9º-A do PAF, caso a lide se limite a penalidades, uma decisão por voto de qualidade a favor da Fazenda, na verdade, configura-se decisão favorável ao sujeito passivo. Ademais, esse artigo abriga uma possibilidade esdrúxula: se a lide se limitar a multas, é melhor para o sujeito passivo ter uma decisão desfavorável por voto de qualidade (que afasta as multas), do que uma decisão de provimento parcial por maioria ou unanimidade de votos.

Importante observar que o artigos 15 e 16 da Lei nº 14.689/2023 estenderam os efeito do artigo 9º-A do PAF aos processos decididos por voto de qualidade durante a vigência MP nº 1.160/2023 e ainda aos casos já julgados pelo Carf e pendentes de apreciação do mérito pelos Tribunais Regionais Federais na data da publicação da novel lei.

O mesmo artigo 2º da Lei nº 14.689/2023 introduziu o artigo 25-A no PAF. Este novo artigo do PAF exclui os juros de mora no caso de decisão definitiva por voto de qualidade, ou seja, tal disposição somente se aplica no caso de resolução definitiva da lide no âmbito administrativo.

Levando em conta que o processo administrativo pode levar mais de dez anos para seu deslinde e que os juros de mora não vêm acompanhados de outro índice de correção monetária, a exclusão dos juros de mora, na verdade, afasta parcela considerável do valor devido em razão da corrosão inflacionária. Por outro lado, considerando que há grande pressão da sociedade para que o processo administrativo seja mais ágil, esse dispositivo não deixa de ser mais um forte incentivo ao aumento de eficiência no âmbito do processo administrativo fiscal.

Cabe mencionar que, se houver recurso administrativo ou ao Judiciário, não se aplica o novo artigo 25-A do PAF. Na verdade, este artigo criou uma espécie de Refis dentro do PAF, pois exige manifestação do contribuinte da intenção de pagar em até 90 dias, constituindo tal manifestação um "acordo" para que os juros de mora sejam excluídos. Efetuado esse "acordo", corroborando-se a ideia de que se trata de um "Refis", o valor remanescente pode ser dividido em 12 parcelas. No caso de inadimplemento de qualquer das parcelas, os juros de mora afastados serão retomados.

Observe-se que, em razão de o afastamento dos juros de mora depender de "acordo" posterior com o sujeito passivo, naturalmente não pode constar da decisão definitiva do Carf.

O artigo 3º da Lei nº 14.689/2023 estabelece mais um "Refis", este para o passado. O artigo permite que os créditos inscritos em dívida ativa da União em discussão judicial que tiverem sido resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade possam, por iniciativa do sujeito passivo, ser objeto de proposta de acordo de transação tributária específica.

O artigo 4º da Lei nº 14.689/2023, por sua, vez, determina que, se o sujeito passivo, no caso de decisão por voto de qualidade, quiser recorrer ao Judiciário, ele não precisa apresentar garantia. Como observou o amigo Trevisan em seu artigo sobre o tema, queremos reduzir a litigância. Mas como queremos? Nesse dispositivo a postura parece ser contraditória, de estimular a litigância.

Cabe anotar que o artigo 16 da Lei nº 14.689/2023 estendeu os efeitos do artigo 25-A do PAF e também dos artigos 3º e 4º da nova Lei aos processos decididos por voto de qualidade durante a vigência da MP nº 1.160/2023.

Mister lembrar que, como regra geral, o artigo 14 do Código de Processo Civil (CPC) determina que a norma processual não retroagirá. Contudo, o artigo 15 do mesmo Código prescreve que, na ausência de normas específicas, as normas do CPC serão aplicadas supletiva e subsidiariamente ao processo administrativo fiscal.

Dessarte, os artigos 15 e 16 da Lei nº 14.689/2023 não contrariam o CPC, mas fixam a retroatividade processual nos seus termos, criando regra específica para o processo administrativo. Cabe anotar que os dois artigos mencionados se configuram normas processuais, que não alteram a normativa que estabelece as penalidades.

Como este texto foi dedicado ao exame dos dispositivos concernentes às multas constantes da nova lei, importante examinar o seu artigo 8º. Ele não trata do PAF, mas alterou a multa de ofício prevista no artigo 44, § 1º, da Lei 9.430/1996, reduzindo-a de ofício nos casos de sonegação, fraude ou conluio (previstos nos arts. artigos 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502/1964), desde que não haja reincidência, de 150% para 100%.

O artigo 8º, ao contrário dos demais até agora examinados, altera norma sancionatória, integrando-lhe, devendo em relação a esse artigo ser aplicado, em consequência, o disposto no artigo 106, II, do CTN, em benefício do sujeito passivo.

Interessante mencionar que, tão logo foi promulgada a Lei nº 14.689/2023, a 3ª Turma da CSRF enfrentou a aplicação da multa prevista artigo 18, caput e § 2º, da Lei nº 10.833/2003, c/c inciso I do caput do artigo 44 da Lei nº 9.430/96. Trata-se de uma multa de 150% aplicável no caso de falsidade. O artigo 18, caput e § 2º, da Lei nº 10.833/2003 dobra a multa prevista no inciso I do artigo 44 da Lei nº 9.430/1996, sem referência ao artigo 44, § 1º, alterado pela Lei nº 14.689/2023. Ou seja, para o caso julgado, não se exigia reincidência para aplicação da multa de 150%. Esta multa e a multa de ofício agravada, apesar das similitudes em relação à exigência de fraude, passam a ter percentuais diversos no caso de não reincidência em decorrência da alteração somente no inciso II do artigo 44 da Lei nº 9.430/1996 promovida pela nova Lei nº 14.689/2023.

Dessa forma, as ilações da presente reflexão nos permitem afirmar que a reintrodução do voto de qualidade do Carf no sistema jurídico brasileiro veio ladeada de benesses para o sujeito passivo, algumas foram vetadas e outras, bastante expressivas, restaram, dentre as quais aquelas relativas às multas e analisadas neste artigo. Observou-se também que o afastamento das multas aduaneiras pode ter impactos relevantes no que concerne a aspectos concorrenciais e também a políticas públicas de saúde, segurança, meio ambiente, entre outras. Ademais, a nova lei exsurgiu em uma situação conturbada, de início do novo governo, e trouxe algumas idiossincrasias, que exigirão atenção do Legislativo ou do Judiciário.

 


[1] Trata-se do artigo "Aprovado o PL sobre o voto de qualidade no Carf: abriu-se a caixa de Pandora?" (Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-set-05/territorio-aduaneiro-aprovado-pl-voto-qualidade-abriu-caixa-pandora>. Acesso em: 08 out. 2023).

[2] Trata-se do artigo "Lei nº 14.689/2023: o que queremos? (versão aduaneira)" (Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-set-26/territorio-aduaneiro-lei-146892023-queremos-versao-aduaneira>. Acesso em: 08 out. 2023).

[3] A nova lei tem sido objeto de numerosos debates, seminários e artigos. Cita-se, a título exemplificativo, o artigo de Thaís de Laurentiis, muito interessante, bem escrito e publicado nesta ConJur: "Lei nº 14.689/23: voto de qualidade, multas e retroatividade" (Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-set-27/direto-carf-lei-1468923-voto-qualidade-multas-retroatividade#:~:text=A%20Lei%20n%C2%BA%2014.689%2F2023,da%20Lei%20n%C2%BA%209.430%2F96.>. Acesso em: 08 out. 2023). Ainda como exemplo, o seminário "O Retorno do Voto de Qualidade no Carf: os novos desafios da Lei nº 14.689/2023", promovido pela ABDF, ocorrido no dia 9 de outubro.

[4] Um contexto histórico mais completo pode se encontrado no artigo "Aprovado o PL sobre o voto de qualidade no Carf: abriu-se a caixa de Pandora?" (Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-set-05/territorio-aduaneiro-aprovado-pl-voto-qualidade-abriu-caixa-pandora>. Acesso em: 08 out. 2023).

Autores

  • é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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