Opinião

Lavagem de dinheiro funciona sem papel-moeda

Autor

  • Mariana Chaimovich

    é legal advisor no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário) colaboradora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV mestre em Direito Internacional pela USP e doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da USP.

10 de outubro de 2023, 18h20

O dinheiro em espécie tem sido considerado, por muitos, o vilão da lavagem de dinheiro. Nesse cenário é como se, no Brasil e no mundo, o seu desaparecimento fosse capaz de diminuir, de maneira automática, a ocultação de proventos de atividades criminosas por meio da lavagem de dinheiro. O raciocínio parece fazer sentido: dada a dificuldade de rastreamento, o dinheiro em espécie serviria, principalmente, para alimentar atividades criminosas.

Porém, os defensores desse argumento omitem que os maiores escândalos de lavagem de dinheiro ocorreram dentro do sistema bancário. Sistemas fortíssimos de compliance não foram capazes de barrar a tramitação de valores bilionários dentro de bancos multinacionais. Isso certamente não pode ser atribuído ao dinheiro em espécie. Especialistas que tratam do tema apontam, inclusive, como obras de arte, vinhos e até transações com jogadores de futebol têm servido para lavar dinheiro. Esse é o problema de produtos com valores imateriais, e, muitas vezes, completamente fora da realidade de 99% da população brasileira e mundial.

Quem trata da necessidade de permanência do dinheiro em espécie para as transações cotidianas raramente discute as desigualdades existentes no Brasil. Relatório lançado em agosto pelo Observatório Brasileiro das Desigualdades apontou que, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), o rendimento médio real da população brasileira era de R$ 2.607 em 2022. Os dados mostram, ainda, a desvantagem de rendimentos de acordo com o gênero: as mulheres ganham, em média, 72% dos salários dos homens. Isso mostra que estamos diante de uma população desbancarizada, cuja alternativa é, justamente, transacionar em dinheiro.

Combinado ao "Mapa da Riqueza no Brasil", do FGV Social, é possível ter uma dimensão mais precisa das disparidades de renda do país: 90% dos brasileiros ganham menos do que R$ 3.500 por mês. Enquanto dados da PNAD indicavam que o grupo formado pelo 1% mais rico do país teria renda média mensal de R$ 16 mil por mês e o 0,1% mais rico, de R$ 31 mil mensais. O FGV Social concluiu que o grupo do 1% mais rico tem, de fato, renda média pessoal de R$ 27 mil, e o 0,1% ganham acima de R$ 95 mil por mês.

Além disso, a diferença de patrimônio acumulado também é gigantesca: os 0,01% mais ricos do Brasil (aproximadamente 20 mil pessoas) acumulam em média R$ 151 milhões de estoque de riqueza (equivalente ao total do patrimônio, descontadas as dívidas). Enquanto isso, os 0,1% mais ricos têm estoque de riqueza quase seis vezes menor (R$ 26,2 milhões) e os 1% mais ricos ficam com cerca de R$ 4,6 milhões. Simultaneamente, 7,5 milhões de brasileiros vivem em extrema pobreza, em domicílios cuja renda per capita é inferior a R$ 150 ao mês.

Simultaneamente, é importante lembrar que toda inovação tecnológica, por mais benéfica que seja para diferentes segmentos da população, tem o potencial de trazer riscos. Por isso, deve sempre ser avaliada com cautela. Um exemplo é a alta observada no volume de golpes relacionados ao uso do Pix e de aplicativos de bancos. Estudo elaborado pela Silverguard, fintech de proteção financeira, demonstra que pelo menos 42% dos usuários do Pix já sofreram tentativa de golpe.

O Projeto de Lei 2.896/2021 (PL 2.896/2021), de autoria do deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), pretende alterar a Lei das Contravenções Penais, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor para permitir o pagamento por meio exclusivamente eletrônico. Conforme a justificativa da proposição, as novas tecnologias de pagamento têm se mostrado mais práticas, rápidas e seguras do que o pagamento em espécie. Segundo o deputado, como a legislação nacional proíbe a recusa do pagamento em papel-moeda, a intenção do projeto é permitir o aceite exclusivo de meios digitais de pagamento.

É importante destacar, inclusive, que se recusar a receber pagamento em dinheiro na moeda corrente do país, ou seja, em real, pode gerar multa para o estabelecimento ou prestador de serviço, conforme o artigo 43 da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941). Além disso, de acordo com o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, é vedado ao fornecedor, dentre outras práticas abusivas, "recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento (…)", ou seja, pagando em dinheiro.

A proposta do parlamentar também visa alterar o artigo 318 do Código Civil, que hoje estipula que "São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial", e ressalta a necessidade de pagamento em moeda nacional. O PL pretende inserir um parágrafo único que acrescentaria o seguinte ao artigo: "É válida a estipulação de que o pagamento seja feito por modo exclusivamente eletrônico, desde que em moeda nacional, salvo nos casos em que a lei permite o pagamento em moeda estrangeira".

Em maio deste ano, foi apresentado parecer pela rejeição do PL no âmbito da Comissão de Defesa do Consumidor. No parecer, o relator, deputado Vinicius Carvalho (Republicanos-SP), avalia se a proposição seria, de fato, benéfica aos consumidores brasileiros, uma vez que, caso aprovada, limitaria as possibilidades de compras por parte deles. O relator menciona a disparidade social brasileira para concluir que não seria adequado aprovar tal proposição. Além disso, fala da questão da dificuldade de determinadas populações, particularmente da população idosa, em acessar equipamentos que demandam familiaridade com a tecnologia. Para a proteção dos consumidores brasileiros, o relator vota pela rejeição do PL 2.896/2021. Aguarda-se a deliberação do parecer pela comissão.

Não há solução simples para problemas complexos. Culpar o dinheiro em espécie pela lavagem de dinheiro no Brasil equivale a culpar o jogador de futebol pela — potencial — lavagem de dinheiro dos clubes ou pelas brigas das torcidas organizadas. O dinheiro em espécie cumpre papel social de extrema relevância em um país com disparidades enormes. Só diz que o dinheiro se tornou obsoleto quem não conhece o Brasil.

Autores

  • é advogada, legal advisor no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), colaboradora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV, mestre em Direito Internacional pela USP e doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da USP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!