Opinião

Afinal, é possível executar-se provisoriamente a pena?

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8 de outubro de 2023, 13h20

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar as Ações Diretas de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, em 7 de novembro de 2019, reconheceu a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, assentando, por consequência, a impossibilidade de impor-se a execução antecipada da sentença penal condenatória tendo em vista o alcance do direito fundamental à presunção de inocência previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição.

Em contrariedade ao entendimento da Corte Suprema, em 24 de dezembro de 2019, foi aprovada a Lei 13.964, o chamado "pacote anticrime", alterando diversos dispositivos do Código de Processo Penal, dentre eles o artigo 492, para fazer incluir a alínea "e" no seu inciso I, em que se autoriza a execução provisória das penas no caso de condenação do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão.

Como efeito da previsão legal, tornou-se comum a determinação da execução antecipada das reprimendas nessas hipóteses, o que levou o Judiciário a decidir se preponderaria o entendimento do STF, adotado em sede de controle concentrado de constitucionalidade, ou a nova previsão legal.

Desde então, tanto o STF [1] quanto o Superior Tribunal de Justiça [2], de maneira reiterada, têm concluído pela ilegalidade da execução imediata e provisória de condenação não definitiva, ausentes fundamentos concretos para a decretação da prisão preventiva, ante o caráter cautelar da segregação provisória antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

É dizer, ainda que o artigo 492, inciso I, alínea e, do Código de Processo Penal seja posterior ao julgamento das ADCs. nº 43, 44 e 54 do STF, predomina-se o entendimento de que, estando pendente de definição o tema da execução provisória das condenações proferidas pelo Tribunal do Júri, cuja repercussão geral foi reconhecida pelo Supremo no âmbito do RE 1.235.340/SC (Tema 1.068), deve privilegiar-se o princípio constitucional da presunção de inocência.

No entanto, inobstante o entendimento consolidado quanto à impossibilidade da execução provisória, tal proteção jurisdicional não alcança a todos ou, pelo menos, não é o caso de um médico condenado pelo TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), submetido a ilegal e teratológica execução provisória da pena desde o dia 9 de maio de 2023, sem que sequer tenha sido apreciada a apelação criminal interposta contra a sentença condenatória. A um só tempo, nessa hipótese, tem-se por violadas as garantias fundamentais da presunção de inocência e da igualdade de partes.

Isso porque, apesar de ter respondido a todo processo em liberdade e possuir idade avançada de 76 anos, o réu, após submetido a julgamento eivado de nulidades perante o Tribunal do Júri, teve contra si determinada a execução automática da pena imposta, sem sequer fundamentar a necessidade da medida extrema.

Não por outro motivo, o STJ afastou a ilegalidade da determinação de execução provisória da sentença e de prisão do médico ao conceder, em seu favor, ordem de Habeas Corpus proferida à unanimidade pela 6ª Turma [3].

Ocorre que, após atuação completamente direcionada e parcial do Ministério Público de Minas Gerais contra o médico, que recorreu extensivamente da concessão da ordem, o acórdão veio a ser cassado pelo próprio STF, autor da ordem de impossibilidade da execução provisória da pena, com base em aspectos formais do julgamento.

Assim, ainda que o STF tenha reconhecido, com eficácia geral e efeito vinculante, a plena legitimidade constitucional do artigo 283 do CPP, na redação dada pela Lei nº 12.403/2011, tornando inadmissível, em consequência, por absolutamente inconstitucional, a figura anômala (e esdrúxula) da execução provisória de condenações penais recorríveis proferidas ou confirmadas por tribunais de segundo grau, tal entendimento não tem sido garantido, única e exclusivamente, em favor do médico há mais de quatro meses.

Tendo em vista que corréus foram beneficiados com o direito de aguardar em liberdade o trânsito em julgado da condenação prolatada pelo Tribunal do Júri (HC nº 645.753/MG) e não houve reclamação do Ministério Público, a execução antecipada da pena do médico fere também o princípio da isonomia.

Conforme preceitua o ministro Gilmar Mendes [4], "a igualdade ou isonomia tem duplo objetivo: busca propiciar uma garantia individual contra perseguições e buscar tolher favoritismos". Portanto, no caso do médico, perseguido pelo órgão estatal que deveria prezar, na condição de custos legis, pela defesa da ordem jurídica, ainda que seja ilegal a execução provisória da pena de qualquer cidadão brasileiro, o seu direito não se encontra salvaguardado.

Afinal, é possível executar-se provisoriamente a sentença penal não transitada em julgado, mesmo as emanadas pelo Tribunal do Júri? A resposta, evidentemente, é negativa e está respaldada no entendimento uniforme dos Tribunais Superiores. Todavia, tristemente, se alguém for alvo de perseguição judicial do Ministério Público, a sua presunção constitucional de inocência não será assegurada, ainda que em decorrência de questões meramente formais. Quando uma só pessoa não tem os seus direitos constitucionais assegurados, todo o sistema judicial perde a sua legitimidade.

 


[1] STF, HC 163814 ED, relator ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 17.8.2020.

[2] STJ, AgRg no HC n. 781.604/SC, relatora ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 7/2/2023, DJe de 14/2/2023; AgRg no RHC nº 172.369/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 6/12/2022, DJe de 14/12/2022.

[3] STJ, HC 737.749/MG, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 30.6.2022.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira (Org.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: IDP, 2014, p. 102.

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