Processo Tributário

Precedentes, metaconteciosos tributários e transação na defesa

Autor

  • Rodrigo G. N. Massud

    é advogado mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP especialista em Direito Tributário e em Processo Civil pela PUC-SP/Cogeae professor dos cursos de especialização em Direito Tributário e extensão em "Processo Tributário Analítico” do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e Pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

8 de outubro de 2023, 8h00

Conforme recentemente noticiado, "STF suspende cobrança de PIS/Cofins sobre receitas brutas operacionais do Santander" [1], tema esse que nos traz uma dupla e implicada reflexão: 1) de um lado, o desencaixe metodológico na formação e aplicação de precedentes vinculativos em matéria tributária, num indesejado sincretismo entre diferentes paradigmas jurídicos  "direito legislado" versus "direito jurisprudencial" , desencadeando com isso problemas de lacunas ou insuficiências decisórias, fonte inesgotável de novos e desdobrados (sub)conflitos em torno das mesmas teses jurídicas, os chamados "metacontenciosos tributários"; e 2) de outro lado, as ferramentas consensuais na busca de soluções para a superação dessa específica (e talvez momentânea) crise judicativa que daí decorre, fruto de uma transição cultural sobretudo a partir da vigência do CPC/2015.

Resumindo a notícia do caso Santander, tem-se que, desde 09/11/2005, em julgamento dos recursos extraordinários 346.084, 357.950, 358.273 e 390.840, por seu Tribunal Pleno, o Supremo Tribunal Federal consolidou a jurisprudência em torno do conceito de faturamento, no contexto da famigerada ampliação da base de cálculo do PIS e da COFINS promovida pelo artigo 3º, §1º, da lei federal 9.718/1998, nos seguintes termos:

"(…) A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o § 1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada."

Tal entendimento foi objeto de posterior repercussão geral, em 2008, para a reafirmação da jurisprudência (recurso extraordinário 585.235/MG  Tema 110 [2]) e, consequentemente, repercussão conteudística nos demais casos em tramitação no Judiciário ou futuros.

Assim, decidiu-se o conceito de faturamento (a tese), que equivaleria ao conceito contábil de receita bruta (produto da venda de mercadorias e/ou da prestação de serviços), mas não se debateu particularidades fáticas nas diversas atividades econômicas, de modo que a decisão acabou provocando indefinição para uma série de setores (ex. seguradoras e corretoras [3], instituições financeiras [4], locadoras de bens móveis [5] ou imóveis [6]), que continuaram tendo que discutir a extensão do conceito de faturamento, já que algumas rubricas de seus resultados não corresponderiam nem a uma venda de mercadoria, nem a uma prestação de serviço.

Com isso, a tese jurídica firmada nos julgados desde 2005, e consolidada em repercussão geral em 2008, acabou se tornando insuficiente em sua função prescritiva e reguladora das condutas futuras, exatamente porque não contemplou distinções e particularidades factuais nos diferentes segmentos e atividades econômicas.

Voltemos então ao sobredito desencaixe metodológico na formação e aplicação dos precedentes, que em grande medida decorre da incompreensão do modelo adotado em nosso sistema codificador, onde o precedente que pretende regular as condutas futuras, em verdade não precede, antecede, daí o paradoxo: como regular condutas futuras, descolado de uma prática judicante que preencha historicamente a riqueza factual dos conflitos que se pretende resolver? É como se, numa espécie de abstração, se pretendesse abreviar o percurso judicativo, antecipando as respostas finais a um dado conflito antes mesmo da (madura) formulação das perguntas que se pretende responder [7].

Até porque, a soma dos casos particulares é que deve(ria) conformar a tese jurídica, nos exatos termos do artigo 926, §2º, do código de processo civil/2015, segundo o qual "ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação".

A falta de reflexão acerca dessa questão metodológica acaba por acarretar uma causalidade circular, na qual a má operação do sistema de precedentes gera "metacontenciosos" e estes, por sua vez, acabam produzindo novos (e insuficientes) precedentes, num típico "dilema de tostines" em que causa e consequência se confundem.

Disso decorre, inclusive, a crítica e esvaziamento cada vez maior na edição de súmulas vinculantes, incapazes que são de enfrentar as particularidades fáticas relevantes de cada tese jurídica [8] [9].

Aliás, a própria tese da ampliação da base de cálculo do PIS e da Cofins é objeto da proposta de súmula vinculante 22/DF, na qual se pretende fixar o conceito de receita bruta como a "soma das receitas oriundas do exercício das atividades empresariais", o que não representa as discussões dos casos precedentes que definiram o conceito como "proveniente das vendas das mercadorias e da prestação de serviços de qualquer natureza".

Ou seja, pretendeu-se corrigir a deficiência ou insuficiência factual da tese no enunciado sumular, ampliando ou restringindo o alcance do precedente, sem o necessário debate a respeito das distinções relevantes entre os casos ou mesmo eventual superação de entendimento, próprio de um regime de precedentes [10].

Assim, quando se pretende (re)discutir a questão do PIS e da Cofins em relação às instituições financeiras, seguradoras, corretoras e locadoras de bens móveis e imóveis, o que se pergunta é se o Tribunal está a distinguir situações não debatidas ou cujos fundamentos não foram contemplados no precedente (mero distinguishing), ou se estamos diante de verdadeira superação (overruling[11], até porque muitas financeiras, seguradoras, corretoras e imobiliárias tiveram decisões transitadas em julgado com base exatamente no entendimento então pacificado: um típico caso de "metacontencioso".

Para esses novos desafios, abrem-se novas soluções, e aqui surge a intersecção da segunda e implicada reflexão: os mecanismos de consensualidade podem (e devem) contribuir para a superação dessas particulares crises judicativas, numa ampliação dos ambientes dialogicamente construídos pelos atores processuais, inclusive no juízo de adequação próprio de um sistema stare decisis.

Dentre os instrumentos negociais que permitem esse diálogo cooperativo, além da possível construção de negócios jurídicos processuais  deliberando e estabelecendo, por exemplo, as diferenças fáticas relevantes, pontos controvertidos que distanciam ou aproximam os casos, dentre outros , há que se incentivar a autorregularização em busca da conformidade, sobretudo naqueles casos de lacunas ou insuficiências decisórias, campo propício para a transação tributária, podendo veicular até mesmo a própria renúncia a determinados efeitos de decisões individuais transitadas em julgado.

Falamos, então, da transação na defesa, que diferentemente da transação na dívida, encontra pressuposto imediato não na arrecadação de créditos de difícil recuperação, mas sim na racionalidade judiciária, redução do contencioso e qualificação do perfil dos litígios.

Normativamente, o caminho foi aperfeiçoado pela Lei 14.375/2022, que promoveu alterações na 13.988/2020, dentre elas a ampliação das modalidades de transação por proposta individual inclusive para os créditos em contencioso administrativo (artigos 2º, I, 10-A e 13), o que foi regulamentado pela Portaria da Receita Federal do Brasil 247/2022.

Desse modo, ao lado da transação por adesão no contencioso de relevante e disseminada controvérsia jurídica (já disciplinada na Portaria do Ministério da Economia 247/2020), ampliou-se as modalidades de transação individual para abranger os créditos em contencioso administrativo, ambiente jurisdicional no qual se encontra muitos desses "metacontenciosos" tributários.

Essa matéria, aliás, é objeto de inovações trazidas pela lei federal 14.689/2023 (decorrente do "PL do voto de qualidade no Carf"), a qual, apesar do veto ao artigo 6º, prevê em seu artigo 7º [12] métodos preventivos para autorregularização e estabelece programas de conformidade para prevenir litígios, iniciativas essenciais no âmbito da Receita, órgão responsável pela interpretação e aplicação da legislação tributária, muitas vezes mediante autuações fiscais envolvidas nesse juízo de adequação de precedentes vinculantes.

A mesma lei federal igualmente promove a revogação da vedação então existente para a oferta de transação por adesão na hipótese de precedentes favoráveis à Fazenda Nacional, antes prevista na alínea "b", do inciso II, do artigo 20 [13], da Lei nº 13.988/2020, passo importante para contemplar os "metacontenciosos" a que vimos nos referindo.

Essencial, portanto, o diálogo cooperativo como forma de reduzir as fontes de conflituosidade e consolidar a prática consciente de um modelo stare decisis de respeito aos precedentes, inclusive em ambiente administrativo.

 

 


[1] Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br), publicado em 17/08/2023.

[2] É inconstitucional a ampliação da base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins prevista no artigo 3º, §1º, da Lei 9.718/1998.

[3] RE nº 400.479.

[4] RE nº 609.096 (Tema 372).

[5] RE nº 659.412 (Tema 684).

[6] RE nº 599.658 (Tema 630).

[7] Aqui reside o indesejado sincretismo entre os modelos "direito legislado" e "direito jurisprudencial", já que a lógica dedutiva própria do primeiro acabou se estendendo à lógica abdutiva própria do segundo.

[8] Vide as discussões na Proposta de Súmula Vinculante (PSV) relativa ao crédito presumido de IPI sobre insumos desonerados, quando o ministro Dias Toffoli ressaltou "ter restrições quanto à edição de enunciados de súmula vinculante em matérias de ordem tributária e penal (…), nas quais muitas vezes as particularidades não poderiam ser enfrentadas nesse tipo de veículo processual". (PSV 26/DF, de 11/03/2015).

[9] A mesma restrição se repetiu na PSV 65/SP, que sugeriu enunciado vinculante sobre a não inclusão dos materiais adquiridos de terceiros na base de cálculo do ISSQN incidente na atividade de construção civil, "em razão da diversidade de situações fáticas e de normas legais pertinentes, as quais demandariam interpretação segundo cada caso concreto".

[10] As duas principais ferramentas que decorrem do gênero das denominadas judicial departures, intrínsecas a esse arcabouço de valorização dos precedentes, são espelhadas nas figuras da distinção (distinguishing) e da superação ou revogação (overruling). Dizem-se intrínsecas, até porque se referem aos deveres de congruência e fundamentação das decisões.

[11] "(…) ao se admitir uma nova circunstância, ainda que não se volte a tratar da mesma questão já resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, afirma-se que o precedente não mais presta a definir a interpretação da questão constitucional. Outro órgão do Poder Judiciário, que não o Supremo Tribunal Federal, estaria a dizer que houve alteração da realidade social, etc., capaz de permitir a revogação do precedente firmado em ação direta de constitucionalidade. (…) Não calha argumentar que, diante de nova circunstância, não se revoga o precedente, mas apenas se diz que o precedente não se aplica a uma nova situação. Ora, se é necessário dizer que o precedente não se aplica, há, para o efeito que aqui interessa, revogação do precedente". MARINONI, Luiz Guilherme. "Precedentes obrigatórios", 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 311.

[12] Artigo 7º. Para aplicação das medidas de incentivo à conformidade tributária, a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil considerará os seguintes critérios:

I – regularidade cadastral;

II – histórico de regularidade fiscal do sujeito passivo;

III – compatibilidade entre escriturações ou declarações e os atos praticados pelo contribuinte;

IV – consistência das informações prestadas nas declarações e nas escriturações.

§1º Como incentivo à conformidade tributária, deverão ser adotadas as seguintes medidas, com vistas à autorregularização:

I – procedimentos de orientação tributária e aduaneira prévia;

II – não aplicação de eventual penalidade administrativa;

III – concessão de prazo para o recolhimento de tributos devidos sem a aplicação de penalidades;

IV – (VETADO);

V – prioridade de análise em processos administrativos, inclusive quanto a pedidos de restituição, de compensação ou de ressarcimento de direitos creditórios; e

VI – atendimento preferencial em serviços presenciais ou virtuais.

§2º (VETADO).

§3º Os benefícios previstos no §1º deste artigo poderão ser graduados e condicionados em função de:

I – apresentação voluntária, antes do início do procedimento fiscal, de atos ou negócios jurídicos relevantes para fins tributários para os quais não haja posicionamento prévio da administração tributária;

II – atendimento tempestivo a requisição de informações realizada pela autoridade administrativa; ou

III – recolhimento em prazos e em condições definidos pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.

[13] Artigo 20. São vedadas:

II – a oferta de transação por adesão nas hipóteses.

Autores

  • é advogado, mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP, especialista em Direito Tributário e em Processo Civil pela PUC-SP/Cogeae, professor dos cursos de especialização em Direito Tributário e extensão em "Processo Tributário Analítico” do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e Pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

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