Repensando as Drogas

Do vinho tinto ao banho de sangue

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6 de outubro de 2023, 8h00

Vinhos argentinos compõem o extenso rol de mercadorias rotineiramente apreendidas nas fiscalizações alfandegárias na região Sul do Brasil. Estima-se que o contrabando de vinhos tenha movimentado cerca de R$ 2 bilhões em 2021 [1]. Naquele ano, foram apreendidas quase 600 mil garrafas de vinho na fronteira com a Argentina. A região é também uma das principais rotas de entrada de cigarro e de maconha no Brasil.

ConJur
As garrafas de bebidas alcoólicas apreendidas não são incineradas, como ocorre no caso do tabaco e da maconha. Ocasionalmente, são doadas para órgãos oficiais do Estado brasileiro, podendo ser utilizada em atividades protocolares, a exemplo das celebrações do dia da Independência, em almoços e jantares de trabalho com autoridades e em coquetéis oferecidos nos espaços culturais de nossas embaixadas.

Ainda que críticos imaginem um falso bacanal com a presença do próprio Baco em nossas repartições públicas, trata-se em realidade de uma forma relativamente simples e pouco custosa de dar destinação útil, e de interesse público, a produtos apreendidos por entrarem ilegalmente no Brasil. O procedimento evidentemente reveste-se de toda a formalidade legal. O uso adequado dos produtos doados, além de permitir importante economia ao erário, ajuda a promover os interesses do Brasil no exterior.

Inclusive, o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac) por vezes também doa algumas garrafas premium para serem oferecidas a possíveis interlocutores identificados por nossas missões diplomáticas, com vistas a ampliar o mercado externo para a bebida nacional. Em 2022, as exportações de cachaça alcançaram 72 países, somando US$ 18,47 milhões, com volume superior a 8,6 milhões de litros [2]. Os principais compradores, hoje, são os Estados Unidos, a Alemanha, Portugal, Itália, França e Paraguai.

Certamente há espaço para que a cachaça ganhe mais adeptos, por exemplo, na Argentina, país conhecido pelas excelentes vinícolas. Natural, portanto, que a cachaça brasileira doada pelo Ibrac e o vinho argentino apreendido na fronteira fossem oferecidos aos convidados que prestigiaram as celebrações do dia 7 de setembro.

Cinco dias antes do 7 de setembro, às vésperas de celebrar seu próprio aniversário, o músico Rinaldo Amaral, baixista da banda Ultraje a Rigor, foi baleado na cabeça em Paraty (RJ) quando, segundo um dos relatos sugere, queria comprar drogas [3]. Embora não se tenha noticiado qual teria sido a droga procurada pelo músico, é factível supor que fosse maconha ou cocaína, drogas ilícitas mais consumidas no Brasil e disponíveis em praticamente todos os municípios do país — ou em qualquer esquina, como habitualmente se diz.

Na noite do mesmo dia 7 de setembro, enquanto alguns convivas das festas da Independência ao redor do mundo talvez estivessem alcoolizados com patrocínio estatal, outra força do Estado — a Polícia Rodoviária Federal — alvejou o carro de uma família que regressava para casa depois de um passeio no feriado. Heloísa dos Santos Silva, de apenas três anos de idade, foi baleada na cabeça e na coluna [4]. A abordagem da PRF foi tão desastrosa quanto recorrente no modelo brasileiro de combate ao tráfico de drogas: atira-se primeiro, pergunta-se depois. Heloísa morreu alguns dias depois, tornando-se a 11ª criança ou adolescente vítima de bala perdida somente no estado do Rio de Janeiro em 2023, segundo dados compilados pelo instituto Sou da Paz.

Não é fácil compreender tratamento tão anacrônico e contraditório por parte do Estado: por um lado, empreende esforço de coordenação entre diferentes instituições públicas e privadas para promover o uso de uma droga; por outro, tolera — quando não incentiva — que cidadãos meramente suspeitos de buscar ou transportar outra droga sejam fuzilados, às vezes pelas mãos do próprio Estado.

O privilégio concedido ao álcool em detrimento da maconha só pode ser entendido dentro de uma perspectiva histórica que envolve, sobretudo, fortes interesses econômicos e geopolíticos, bem como arraigados preconceitos. Apesar de essencial, não é objetivo deste artigo recapitular essa história. O que mais importa, hoje, é conscientizar a sociedade sobre o desperdício de recursos financeiros e de vidas humanas que a política de criminalização de algumas drogas no Brasil provoca.

Mesmo tendo a maconha uma diminuta fração de seu mercado dentro dos circuitos formais da economia — basicamente, importação e venda de derivados da planta para fins medicinais, modalidade aprovada pela Anvisa em 2015 — as cifras movimentadas impressionam. Segundo pesquisa da empresa Kaya Mind, especializada no setor de cannabis, o setor teria movimentado cerca de R$ 130 milhões em 2021 [5]. Com melhor regulamentação, as cifras — incluindo impostos arrecadados — poderiam alcançar vários bilhões.

Na esfera jurídico-criminal, com a legalização do mercado, seria plausível imaginar redução importante no número de cidadãos processados, presos e mortos. Contudo, parte das autoridades envolvidas — policiais, juízes, promotores, legisladores, entre outros — parece não se comover quando um jovem ou uma criança são atravessados por uma bala de fuzil. A morte de um jovem — mesmo que seja um pequeno traficante — é disruptiva não só para uma família, mas para toda uma comunidade.

No caso ainda mais extremo (e infelizmente nada infrequente) de uma criança ser vítima da guerra às drogas, toda a sociedade deveria parar e refletir se estamos no caminho certo. Será que um dia poderemos concordar que muito pior do que o comércio ou o consumo de uma tonelada de maconha é a morte violenta de uma criança inocente?

Ainda é difícil superar o estigma que foi construído ao longo do último século em relação à maconha. Enquanto um bebedor de vinho é um connoisseur, quem fuma cannabis é um maconheiro. É também verdade que mesmo entre os consumidores de álcool há distinções. Afinal, não costuma merecer o mesmo respeito aquele que, em detrimento do fermentado da uva, admira o destilado da cana de açúcar. A iniciativa da Ibrac é excelente para reverter a imagem pejorativa que os termos "cachaceiro" e "pinguço" carregam, e que evidenciam, de certa forma, o caráter socioeconômico do preconceito que também ajudou a criminalizar a maconha. Mesmo o presidente Lula já foi vítima de críticas (mal) fundadas sobre qual bebida gostaria de tomar. Um Blue Label ou um Merlot não atraem olhares depreciativos como ocorre com a cachaça, e ainda mais reprováveis com a maconha.

O comentário do ministro Luis Roberto Barroso durante uma sessão do julgamento do RE 635.659, que poderá descriminalizar o porte de maconha, demonstra bem a discrepância no tratamento dado pela lei às diferentes drogas: respondendo à pergunta da ministra Rosa Weber sobre uma hipotética criminalização do uísque, insinuou Barroso, em tom de brincadeira, que isso violaria os direitos humanos.

Aliás, no início de setembro, o ministro Barroso desembarcava em Mendoza, na Argentina, para um congresso da magistratura local. Difícil imaginar que o hoje presidente do STF não terá provado excelentes cepas dos Malbec e Cabernet Franc da região. Uma das vinícolas locais por sinal recebeu, este ano, o prestigioso título de melhor do mundo, atraindo, como consequência, milhares de turistas e connoisseurs, alavancando o comércio local e as exportações do país. As vendas de vinhos somaram US$ 824 milhões à balança de comércio da Argentina em 2022 [6].

Também em setembro, apenas duas semanas depois do ministro Barroso, foi a vez do senador Sergio Moro pousar em Buenos Aires para participar de um evento do grupo "Libertad y Democracia", que reúne nomes conhecidos da direita iberoamericana. Em sua rápida intervenção, Moro mencionou o julgamento em andamento no STF, posicionando-se contra eventual descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, e lamentou a falta de recursos para combater o crime organizado.

Defender a criminalização de quem plante e consuma sua própria erva soa como um verdadeiro atentado às liberdades individuais, valor tão caro ao grupo "Libertad y Democracia". Na Argentina, qualquer pessoa pode obter autorização para cultivar até nove plantas e transportar até 40 gramas de flores secas de cannabis, bastando uma prescrição de profissional médico ou dentista e um cadastro junto ao Registro del Programa de Cannabis (Reprocann).

No mesmo dia em que o senador Moro defendia em Buenos Aires a criminalização dos maconheiros do Brasil, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) divulgava uma pesquisa sobre o perfil das pessoas processadas em ações criminais por tráfico de drogas [7]. Cobrindo mais de 5 mil autos processuais sentenciados em 2019 – período em que Sergio Moro era ministro da Justiça —, a pesquisa revelou que:

"(…) nos processos da justiça estadual, que representam 99% do universo de interesse da pesquisa, metade dos flagrantes ocorreu em via pública, praça ou parque (50,6%), enquanto em 32,9% dos casos os acusados foram surpreendidos em sua própria residência e 13,6% na casa de outras pessoas. Entre os objetos apreendidos com os réus processados estão dinheiro (59,4%), celular (52,2%) e balança (20,4%). Armas e munições aparecem em menos de 20% dos processos. Apesar do alto percentual de telefones celulares apreendidos, em apenas 5% dos casos houve laudo pericial ou quebra de sigilo telefônico nesses aparelhos.
Ainda no que se refere aos tribunais estaduais, a maior parte das abordagens ou flagrantes ficou a cargo das forças de segurança pública das Unidades Federativas: policiais militares (76,8%) e policiais civis (19,1%). E aproximadamente 86% dessas abordagens foram realizadas por até três profissionais de segurança pública. De acordo com o relato de policiais, a motivação para a abordagem foi o “comportamento suspeito” feito durante o patrulhamento (32,5%) ou denúncia anônima (30,9%, sendo esta raramente documentada no processo). Outro dado surpreendente é o alto percentual de entradas em domicílio (49%), das quais apenas uma pequena parcela (15%) com mandado judicial. Ou seja, cerca de 41% dos réus foi alvo de busca domiciliar sem mandado de justiça."

A pesquisa demonstrava ainda que a apreensão média de maconha nos referidos processos era de 85 gramas. Em termos numéricos, isso significa que, para cada apreensão de 1 quilo, teriam ocorrido outras doze apreensões de 10 gramas.

Qual o custo de todos esses processos? Será que prender, processar e condenar alguém com 10 gramas de maconha ajuda a reduzir o poder do tráfico ou reduz a oferta de maconha? Qual a probabilidade de um jovem com pouca instrução (perfil majoritário dos processados, segundo a pesquisa) ser cooptado pelas facções dentro das prisões? Quanto o país ganharia se, ao invés de dedicar tantos esforços para combater uma planta e seus usuários, atraísse investimentos e arrecadasse impostos?

É evidente que com tamanho dispêndio de recursos para levar aos tribunais e às cadeias milhares de usuários e micro traficantes, pouca verba (e pouco efetivo policial) sobrará para investigações que alcancem os grandes chefes do tráfico que, como já citado, beneficiam-se da enxurrada de jovens prontos para serem recrutados nos presídios [8]. Um estudo recentemente publicado constatou que, no México, os cartéis já seriam o quinto maior empregador do país [9]. O Brasil parece estar em rota semelhante.

A defesa da política de criminalização do usuário e de micro traficantes pode ser compreensível pelo contexto histórico, ou quando vinda de um parlamentar que disputa votos entre grupos conservadores. Partindo de um ex-juiz e ex-ministro da Justiça, deveria surpreender, pois imaginar-se-ia aos detentores de ditos cargos visão mais abrangente sobre os custos e as consequências da política de repressão às drogas.

Quando ainda era ministro da Justiça, Sergio Moro até tentou jogar gasolina ao fogo: sua proposta de combate à criminalidade incluía a ampliação da exclusão de ilicitude para policiais que cometessem excessos por "medo, surpresa ou violenta emoção". A proposta acabou rejeitada pela Câmara em alguma medida porque, em 20 de setembro de 2019 – quatro anos antes de Moro palestrar em Buenos Aires –, a menina Ágatha Félix, de 8 anos, foi assassinada com um tiro de fuzil disparado por um policial, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio [10].

Quando esteve na Argentina, talvez o senador tenha apreciado, ao lado da cônjuge, uma ou mais taças de um bom vinho tinto no jantar oferecido pela organização do evento. Talvez tenha conseguido levar alguma garrafa para consumi-la em Brasília, sem qualquer receio de ter sua mercadoria apreendida pela Receita Federal ou de ser alvejado numa blitz policial.

Seria interessante buscar o número de vítimas de arma de fogo entre aqueles que violaram as leis e tentaram entrar no Brasil com maior quantidade de bebidas do que a legislação permite. Provavelmente foram poucas, se é que de fato houve alguma. E se a Receita Federal possui nas cidades fronteiriças grande quantidade de bebidas apreendidas, é porque muito maior quantidade acabou entrando no Brasil. Não é difícil encontrar grupos de WhatsApp que oferecem bons vinhos importados com preços somente factíveis caso o imposto devido tenha sido sonegado.

Houvesse uma regulação da cannabis no Brasil, toda uma indústria poderia se desenvolver, favorecendo o turismo, a saúde, o mercado têxtil, as exportações, entre tantas outras áreas. Eventual mercadoria apreendida por entrar irregularmente no país não geraria tiroteios e prisões: talvez pudesse ser doada para laboratórios púbicos, visando o desenvolvimento de remédios à base de cannabis. Startups ligadas à maconha poderiam procurar nossas embaixadas visando ampliar os mercados pelo mundo.

As plantações de maconha no Brasil talvez atraíssem milhares de turistas para apreciar nossas cepas de indica ou sativa. Pelo mundo, vários países vêm observando benefícios na mudança de foco em relação à maconha: o Canadá registrou novo recorde em 2022, somando US$ 118 milhões em exportações de cannabis [11]. O Uruguai, por sua vez, exportou mais de US$ 5 milhões no mesmo ano [12]. A Argentina também busca entrar nesse mercado, com perspectivas promissoras [13].

Mas a realidade, aqui, ainda é outra: convivemos diariamente com verdadeiros banhos de sangue ligados à guerra contra as drogas [14]. Dezenas de milhares de processos entopem nossos tribunais em busca de mandar para a cadeia — e para os braços das facções — jovens que portavam ou vendiam quantidades irrisórias de maconha.

O dinheiro movimentado no comércio da maconha, hoje, financia armas de grosso calibre, mansões e outros artigos de luxo, além de pagar autoridades corrompidas. Ainda no mês de setembro, a Polícia Federal organizou uma grande operação para incinerar cerca de duas toneladas de drogas aprendidas no Amazonas [15]. O que se noticia nos países vizinhos é a "exportação" das facções criminosas brasileiras para seus territórios [16]. Não tardará até que mais uma criança seja morta durante uma operação policial de guerra às drogas no Brasil.

 

*a opinião do autor não reflete a opinião do Ministério das Relações Exteriores

 


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