Anuário da Justiça

Caso Garoto-Nestlé mostra influência do Direito Concorrencial na economia

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5 de outubro de 2023, 20h09

*Reportagem publicada na 1ª edição do Anuário da Justiça Direito Empresarial. A versão online é gratuita (clique aqui para ler) e a versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui para comprar).

Uma das mais emblemáticas histórias envolvendo Direito e empresas na área concorrencial terminou no dia 7 de junho de 2023. Depois de 20 anos, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) autorizou a compra da Chocolates Garoto pela Nestlé Brasil. A novela dessa negociação mostra a um só tempo a necessidade do Direito para orientar os negócios e a dificuldade em aplicar as leis no tempo e no espaço que a atividade empresarial demanda.

"Considerando o histórico de mais de 20 anos desse caso e a existência de um novo marco legal do antitruste no país, a negociação entre Cade e Nestlé resultou em um acordo com medidas que se mostram proporcionais e suficientes para mitigar impactos concorrenciais no cenário atual e garantir os interesses dos consumidores", disse o presidente do Cade, Alexandre Cordeiro.

A compra da Garoto pela Nestlé foi feita em 2002 e vetada dois anos depois pelo Cade, já que resultaria em uma concentração de 58% do mercado nacional de chocolates. Na época, a análise dos atos de concentração ocorria depois da concretização dos negócios. A Lei 12.529/2011 modificou esse modelo e o Cade passou a analisá-los previamente.

"Para a Nestlé, o crescimento e o fortalecimento da Garoto sempre foram cruciais para a evolução da empresa no Brasil. Mantivemos investimentos consistentes, sempre destacando suas marcas icônicas e fomentando o desenvolvimento de toda a cadeia de valor. A conclusão do Cade é técnica e revela entendimento sobre um setor que se mostra muito competitivo, aberto e em crescimento", declarou o CEO da Nestlé Brasil, Marcelo Melchior.

A aquisição foi condicionada à celebração de acordo de controle de concentrações (ACC), que impôs quatro compromissos para preservar a concorrência no mercado de chocolates: a Nestlé deve manter a operação da fábrica da Garoto em Vila Velha, no Espírito Santo, por sete anos; neste período, a empresa deverá informar ao Cade qualquer aquisição de empresa ou marca no mercado de chocolates e não poderá intervir em pedidos de terceiros relacionados a tarifas diferenciadas na importação de chocolates; e por cinco anos, não poderá adquirir ativos que representem participação superior a 5% do mercado de chocolates.

De acordo com a Superintendência-Geral do Cade, responsável por analisar todos os atos de concentração, a rivalidade no mercado nacional de chocolates foi reconfigurada nos últimos 20 anos, por isso, não faria sentido manter a decisão de reprovar o negócio. O acordo também põe fim ao processo que tramitava na Justiça desde 2005, após a autoridade antitruste proibir a compra. Em 2009, decisão judicial determinou que o Cade reabrisse o processo de análise do ato de concentração e fizesse um novo julgamento. Em 2021, a análise foi retomada.

O caso da Garoto e Nestlé exemplifica bem como o Direito Concorrencial influencia na economia do país. De acordo com os incisos IV e V da Constituição, a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros, os princípios da livre concorrência e defesa do consumidor.

O Direito Concorrencial é uma área associada ao Direito Econômico onde se analisa as relações concorrenciais entre empresas e pessoas. O objetivo é garantir a competitividade de forma justa e saudável, promover o bom funcionamento do mercado e estabelecer políticas de concorrência leal. Além disso, esse ramo do Direito impacta no dia a dia dos consumidores. Com o mercado regulado, a chance de o direito do consumidor ser violado fica reduzida.

Uma das vertentes do Direito Concorrencial está focada no mercado de fusões e aquisições. Relatório da KPMG Brasil mostra que em 2021 o Brasil teve o melhor desempenho dos últimos 25 anos, tendo registrado 1.963 transações. O número é 59% superior do que foi observado em 2019, quando foram registradas 1.231 transações. O último trimestre de 2021 registrou 602 negócios concluídos, o melhor período da história.

"Estes resultados consolidam a tendência de investimento em transformação digital e inovação, protagonizadas pelas companhias brasileiras, multinacionais e investidores financeiros, que tem feito aportes estratégicos em diversos segmentos de negócios", explica o estudo.

No segmento de negócios, em 2021, as empresas de internet e de tecnologia e inovação responderam, juntas, por mais da metade do total de operações no Brasil. As empresas do setor de internet estão no topo do ranking, com 658 negócios — 34% do total de transações. Já o setor de tecnologia e inovação teve 358 negócios, representando 18%. O segmento de instituições financeiras também foi impactado. Foram 161 transações no total, sendo a maioria na busca por modelos de negócios inovadores.

Ao final do ranking, estão os setores de serviços para empresas (78 transações), hospitais e laboratórios de análises clínicas (70) e telecomunicações e mídia (66).

A outra vertente do Direito Concorrencial é o combate aos cartéis. Trata-se de conduta anticompetitiva em que concorrentes fazem acordo de cooperação para fixar preços, dividir mercados, estabelecer quotas ou restringir participação e adotar posturas combinadas em licitações. De acordo com o Cade, é a mais grave infração à ordem econômica. Estimativas da OCDE apontam que os cartéis geram sobrepreço entre 10% e 20% comparado ao preço praticado em um mercado competitivo.

O primeiro cartel punido no país foi o chamado "cartel do aço". Em 1999, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Cosipa e a Usiminas foram condenadas pelo Cade a pagar multa de R$ 50 milhões por cartel na comercialização de aço plano comum. Em 2022, o STJ anulou a decisão por entender que houve afronta ao processo administrativo, uma vez que o Cade negou a produção de provas por umas das partes.

Alexandre Barreto, superintendente-geral do Cade, entende que a política de defesa da concorrência "envolve a necessidade de agências reguladoras estarem atentas para a preservação da concorrência no serviço regulado, bem como a atuação do Ministério da Economia para adoção de agenda microeconômica que traga uma maior competitividade e maior incentivo à concorrência no país".

Para Barreto, o Brasil tem uma economia concentrada. "Durante muito tempo, o Brasil viveu sob políticas de proteção comercial que, por um lado, protegem a economia nacional, mas, por outro, expõe-nos menos à concorrência. Nosso desfio é encontrar o equilíbrio entre essas duas políticas", destacou. "Com maior concorrência, os resultados para o consumidor são visíveis: menores preços, maior qualidade, maior diversidade de escolha. O grande beneficiado da política de defesa da concorrência é o consumidor."

O advogado Luiz Felipe Rosa Ramos, do Del Chiaro Advocacia, aponta como tendências do Direito da Concorrência no Brasil o aumento do foco em investigações de condutas unilaterais e o incentivo a ações privadas de reparação de danos. Existe também uma tendência a olhar com maior atenção as interfaces entre o Direito Concorrencial e outras áreas como, por exemplo, o Direito do Trabalho.

"Existe uma interface entre o Direito Concorrencial e o mercado de trabalho que tem sido objeto de atenção cada vez maior no âmbito internacional", destaca o advogado. "Temos casos em que não existe uma combinação sobre o preço de um produto, mas sim um acordo, uma troca de informação sensível sobre os salários que essas empresas pagam para seus funcionários. Isso geraria uma restrição à concorrência no mercado de trabalho, já que o trabalhador fica com menos opções para poder se empregar", destacou.

Outra tendência, segundo Rosa Ramos, é que haja mais discussões internacionais sobre como os objetivos do antitruste podem impactar o Brasil, com maior atenção a temas como trabalho, privacidade e sustentabilidade.

"Existem estudos sobre a interface entre o Direito Concorrencial e o tema da privacidade, proteção de dados, cada vez mais relevante no âmbito dos mercados digitais, e cada vez mais se discute se o Direito Concorrencial deve olhar com mais atenção para questões de sustentabilidade, proteção do meio ambiente, se as autoridades antitrustes devem incorporar também esse tipo de elemento como elemento de benefício ao consumidor."

Em busca de precedentes: Justiça prestigia expertise do Cade
Principal órgão de defesa da concorrência, o Cade encabeça o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), ao lado da Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência (Seprac), ligada ao Ministério da Fazenda. O Conselho analisa e aprova ou não atos de concentração, investiga condutas anticompetitivas e, se for o caso, aplica punições. "O Cade é reconhecido como uma das melhores agências antitrustes do mundo. Mas nossa atribuição é apenas parte de uma política de defesa da concorrência maior", diz Alexandre Barreto, superintendente-geral do órgão administrativo.

À Seprac cabe fazer a chamada advocacia da concorrência perante os órgãos do governo e a sociedade. Elabora estudos que analisam, do ponto de vista concorrencial, políticas públicas, autorregulações e atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, de consumidores ou usuários de serviços. Também opina em propostas legislativas que tramitam no Congresso, em proposições de agências reguladoras e em avaliações solicitadas pelo Cade.

As decisões do Plenário do Tribunal Administrativo do Conselho são definitivas no âmbito do Poder Executivo, cabendo apenas a interposição de embargos declaratórios e de reapreciação. Em 2022, foram julgados 16 embargos de declaração e três pedidos de reapreciação.

A Constituição Federal, no entanto, assegura recurso ao Poder Judiciário contra as decisões do Conselho, que é um órgão do Poder Executivo e tem competência para decidir apenas na seara administrativa. Qualquer um que se sentir prejudicado com o veredito do Cade pode recorrer à Justiça.

No Poder Judiciário, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, foram proferidas, em 2022, apenas 122 decisões referentes a Direito Concorrencial, sendo que 77 foram favoráveis ao posicionamento do Cade, o que corresponde a 63% do total.

Em setembro de 2022, o CNJ aprovou a Recomendação 135 por meio da qual recomendou aos juízes que "sempre que possível, realizem a oitiva do órgão de defesa da concorrência, em especial a sua Procuradoria Federal Especializada, antes de concederem tutelas de urgência relacionadas a processos administrativos em tramitação no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), assim minimizando efeitos danosos decorrentes de eventual abuso do direito de demandar".

A Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade, órgão da Advocacia-Geral da União, é responsável pelo assessoramento jurídico e representação judicial e extrajudicial do Conselho. De acordo com a procuradora-chefe, Juliana Oliveira Domingues, a alta judicialização de demandas administrativas e os vários administrados geram dezenas de ações, principalmente em relação ao combate a cartéis. Além disso, ela destaca a falta de normas que contemplem questões discutidas nesses processos.

"Nós mapeamos a maior parte desses casos para trabalhar nos temas que precisam de precedentes e de maior atenção do Poder Judiciário. Entendemos que, pela especialidade, pelo fato de ser um tema de regulação, um tema pouco demandado, principalmente dentro dos tribunais superiores, essas demandas ficam escanteadas", disse ao Anuário da Justiça.

"Então, a nossa intenção é aproximar cada vez mais o Poder Judiciário das atividades do Cade, em especial, para poder sensibilizar para a importância desses temas. Se nós não tivermos precedentes, esses casos continuarão sendo judicializados. É a criação de precedentes que nos ajuda a mitigar dúvidas jurídicas que são recorrentes", destacou.

Segundo Domingues, a iniciativa já apresenta resultado positivo nos Tribunais Regionais Federais, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. "Em 2022, tivemos uma recomendação do CNJ no sentido de que os tribunais superiores façam oitiva junto ao Cade, falem com a Procuradoria Federal Especializada antes de tomar uma decisão que esteja relacionada a uma tutela de urgência. Isso vai criar um ambiente mais favorável para essa comunicação permanente, que também conta com um papel importante da AGU."

Juliana Domingues diz ainda que o Cade tem promovido cursos em parceria com as escolas da magistratura para preparar os responsáveis pela criação das normas. "A regulação hoje é um fato, pois o ambiente competitivo precisa permanecer. E as decisões judiciais precisam caminhar junto com a sociedade. Então, essa aproximação do Judiciário com o Cade certamente vai ser intensificada durante 2023, tanto pelos projetos quanto pela agenda voltada à desjudicialização."

Em artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, as advogadas Pollyana Vilanova e Isabel Jardim afirmam que a recomendação do CNJ tem como principal objetivo "maximizar a segurança jurídica e impedir o comprometimento da política de defesa da concorrência no Brasil", além de buscar a prevenção de litígios e a adoção de soluções consensuais para os conflitos, desafios mapeados na Estratégia Nacional do Poder Judiciário para o período 2021-2026. Explicam que, apesar de os atos administrativos serem passíveis de revisão pelo Poder Judiciário, em alguns casos "o que se verifica não é a ocorrência de revisão judicial para a correção de ilegalidades ou abusos, mas um juízo revisional extensivo, que substitui as decisões de mérito tomadas pelo Cade".

Um exemplo foi o processo administrativo em que o Conselho concluiu pela configuração de ilícito concorrencial na prática de adoção de comportamento uniforme pelo Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Distrito Federal.

"Após a decisão da autoridade antitruste, o juízo da 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal modificou radicalmente a interpretação dos fatos sob investigação, concluindo que a conduta trataria meramente de lobby, dando provimento ao pedido de anulação da decisão do Conselho. A decisão do Cade, proferida em 2004, foi restaurada no Supremo Tribunal Federal apenas em 2019", explicam.

As advogadas comentam que, apesar da restauração da decisão, os ministros da Suprema Corte não excluíram a possibilidade de revisão do mérito das decisões do Cade. "Ainda assim, a posição do STF ofereceu parâmetros que, caso sejam observados, poderão diminuir os riscos de danos à política de defesa da concorrência por meio da revisão dos atos da autoridade antitruste", diz o artigo.

Em outros dois momentos, o Supremo Tribunal Federal se posicionou sobre discussões envolvendo o Cade e o Judiciário. No primeiro, sobre a possibilidade de controle judicial do ato administrativo. No RE 1.083.955/ DF, o ministro Luiz Fux afirmou, em seu voto, que a Justiça deve deferência ao mérito das decisões proferidas pelo Cade, em razão da expertise técnica e da capacidade institucional em questões de regulação econômica.

De acordo com o advogado Luiz Felipe Rosa Ramos, do Advocacia Del Chiaro, "essa decisão não altera a relação fundamental entre Judiciário e Cade. Ou seja, o Judiciário continua não fazendo uma reanálise dos fatos, mas continua avaliando a legalidade da decisão do Cade".

A outra decisão foi no ARE 1.316.369/DF, sobre a vedação do uso de prova ilícita em processo administrativo. No caso, o decano da corte, ministro Gilmar Mendes, disse ser farta a jurisprudência sobre a possibilidade de prova emprestada do processo penal em processo administrativo, desde que o material tenha sido produzido "de forma legítima e regular, com observância das regras inerentes ao devido processo legal".

Um dos casos emblemáticos que foi judicializado é o do cartel do aço. Após 18 anos em que o Cade condenou siderúrgicas pelo cartel do aço a pagar multa de 7% de seus respectivos faturamentos em 1999, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em novembro de 2022, anulou a condenação por negativa de perícia.

"Em se tratando de exercício de direito sancionador, a negativa da prova técnica requerida afronta o devido processo administrativo, garantido pela Lei 9.584/1999", afirmou o relator, ministro Benedito Gonçalves, no REsp 1.979.138/DF. Na ocasião, a siderúrgica Gerdau foi alvo de procedimento sob acusação de ter manipulado preços em prejuízo ao mercado de vergalhões de aço usados na construção civil no final da década de 1990, junto das siderúrgicas Belgo Mineira e Barra Mansa.

Já as decisões do Conselho em atos de concentração são raramente contestadas na Justiça. "Quando falamos em atos de concentração, a decisão é muito técnica e econômica, deixando o argumento bastante esvaziado para contestação", pontuou o superintendente-geral do Cade, Alexandre Barreto.

ANUÁRIO DA JUSTIÇA DIREITO EMPRESARIAL 2023
1ª edição
Número de Páginas: 156
Editora: Consultor Jurídico
Versão impressa: R$ 40, na Livraria ConJur
Versão digital: É gratuita, acesse pelo site https://anuario.conjur.com.br ou pelo app Anuário da Justiça

Anunciaram nesta edição
Advocacia Del Chiaro
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Bottini & Tamasauskas Advogados
Caselli Guimarães Advogados
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Décio Freire Advogados
Dias de Souza Advogados
Heleno Torres Advogados
JBS S.A.
Laspro Consultores
Leite, Tosto e Barros Advogados
Lemos Jorge Advogados Associados
Machado Meyer Advogados
Sergio Bermudes Advogados
Unisa – Universidade Santo Amaro
Warde Advogados

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