Opinião

É inconstitucional exclusão da ofensa religiosa do âmbito protetivo da lei

Autor

  • Francisco Sannini

    é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pós-graduado com especialização em Direito Público professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo professor do Damásio Educacional do QConcursos e da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo e delegado de polícia do estado de São Paulo.

5 de outubro de 2023, 6h05

A Lei 7.716/89, mais conhecida como a Lei de Racismo ou de Combate ao Racismo, é fruto de um mandado constitucional de criminalização, previsto no artigo 5º, inciso XLII, da Constituição, onde se prevê que a prática do racismo constitui crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão.

Visando conferir efetividade ao mandamento constitucional, a Lei 7.716/89 anuncia no seu artigo inaugural a punição dos crimes resultantes de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Destaque-se, todavia, que na sua redação original a lei só mencionava duas formas de discriminação ou preconceito, vale dizer, de raça e de cor. Foi apenas com a Lei 9.459/97 que o rol de combate ao racismo foi ampliado para abranger a sua formação atual.

Ocorre que, em nosso sentir, foi mal o legislador ao limitar as formas de racismo, o que demonstra uma evidente discriminação do próprio Poder Legislativo, excluindo do âmbito protetivo da lei diversas outras ideologias preconceituosas que promovem a segregação, violando, destarte, um objetivo fundamental da República, qual seja, o de "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º, inciso IV, da CR).

Como se pode perceber, a Constituição não objetiva coibir uma ou outra forma de discriminação, mas todas indistintamente! Isto, pois, a conduta negativamente discriminatória [1] promove um evidente tratamento distinto entre seres humanos, o que afronta o princípio da igualdade, um dos pilares do Estado democrático de Direito.

Daí por que a Lei de Racismo deve ser interpretada à luz da Constituição, a partir de seus princípios e valores, não podendo o legislador mitigar a sua abrangência, conforme, inclusive, já deixou transparecer o STF no julgamento do paradigmático HC 82.424/RS:

"A divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político-social originado da intolerância dos homens. Disso resultou o preconceito racial. Não existindo base científica para a divisão do homem em raças, torna-se ainda mais odiosa qualquer ação discriminatória da espécie. Como evidenciado cientificamente, todos os homens que habitam o planeta, sejam eles pobres, ricos, brancos, negros, amarelos, judeus ou muçulmanos, fazem parte de uma única raça, que é a espécie humana, ou a raça humana". (STF, HC 82.424/RS, DJ 19.03.04).

E foi justamente em consonância com este entendimento que a Corte Suprema, em face dos mandados constitucionais dos incisos XLI e XLII, do artigo 5º, da Carta Política, deu interpretação conforme à Constituição para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a sua forma da manifestação, nos diversos tipos penais da Lei 7.716/89, até que sobrevenha lei autônoma editada pelo Congresso Nacional, destacando que tais práticas se qualificam como espécies do gênero racismo, na sua dimensão de racismo social (STF, ADO 26/DF, relator ministro Celso de Melo).

Nesse cenário, lamenta-se que o nosso legislador, mesmo após a "advertência" do STF, tenha perdido a chance de reparar um equívoco histórico que, insistimos, denota uma espécie de "racismo legislativo", ao não ampliar as formas de discriminação e preconceito por meio da Lei 14.532/23, que alterou a Lei 7.716/89. Na verdade, o Congresso fez pior, pois ao trazer a injúria racial (artigo 2º-A) para a Lei específica, excluiu  ao que nos parece, de forma deliberada  a injúria religiosa do âmbito protetivo na norma, violando não apenas a Constituição, mas também o próprio artigo 1º, da Lei de regência.

Realmente, não há qualquer justificativa fática ou jurídica para retirar as ofensas motivadas por preconceito religioso do novo tipo penal da Lei de Racismo, mantendo essa prática injuriosa no artigo 140, §3°, do Código Penal, um crime punido de forma mais branda, de natureza afiançável e sujeito à prescrição. Tal omissão legislativa é ainda mais grave se considerarmos que a intolerância religiosa foi a base do holocausto, que representa um dos episódios mais tristes da história da humanidade.  

Sob tais premissas, em observância aos mandamentos constitucionais e aos precedentes do STF, defendemos a inconstitucionalidade do artigo 2º-A, da Lei, por ofensa ao princípio da proporcionalidade (insuficiência protetiva), ao princípio da igualdade e por violar um objetivo da República Federativa do Brasil (artigo 3º, inciso IV, da CR), sendo necessário conferir à norma uma interpretação conforme à Constituição para fazer com que o tipo penal também alcance as ofensas religiosas.

Em reforço, entendemos que essa lacuna, aparentemente deliberada, pode ser colmatada pelo próprio artigo 1º, da Lei 7.716/89, por meio de uma interpretação sistemática, afinal, o dispositivo é claro ao dizer que todos os crimes previstos na Lei são caracterizados pela discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional.

Se não bastassem todos esses argumentos, veio a lume a Lei 14.688/2023, que objetiva compatibilizar o Código Penal Militar com o Código Penal e com a Constituição, inserindo uma qualificadora no §2º, do artigo 216, do CPM, na hipótese em que a injúria é motivada por elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, orientação sexual, condição da pessoa idosa ou com deficiência.

Nesse cenário, pergunta-se: seria a Injúria Qualificada do CPM um crime de racismo e, portanto, imprescritível? Em respeito ao princípio da legalidade, uma primeira corrente vai sustentar que apenas a injúria relacionada aos elementos de raça, cor, etnia e origem (procedência nacional) caracterizariam crime de racismo, pois apenas essas formas de preconceito têm previsão no artigo 2º-A, da Lei 7.716/89, que pune a Injúria Racial.

Uma segunda corrente, todavia, se valendo de uma interpretação conforme, vai sustentar que a Injúria Qualificada do CPM constitui, na linha já decidida pelo STF em casos semelhantes, uma espécie de racismo, pouco importando o fato de o tipo penal não estar na Lei 7.716/89. Parece-nos correto este entendimento! Nesse sentido, aliás, já nos posicionamos ao considerar a Tortura Racial um crime de racismo e, consequentemente, de natureza imprescritível, mesmo com previsão na Lei 9.455/97 [2].

Particularmente, entendemos que a nova Lei 14.688/2023 fez o que o legislador já deveria ter feito na Lei 14.532/23, conferindo um maior alcance ao racismo praticado por meio de injúria, abrangendo as ofensas relacionadas a raça, cor, etnia, religião, orientação sexual e condição de pessoa idosa ou com deficiência.

Tendo em vista que os referidos grupos de pessoas sofrem, historicamente, com atos de discriminação e preconceito, ocupando uma condição de maior vulnerabilidade na sociedade, acreditamos que deveria ser este o rol mínimo de pessoas protegidas pela Lei de Racismo em todos os seus tipos penais.

Por tudo isso, considerando, inclusive, a recente inovação promovida pela Lei 14.688/2023, entendemos que a injúria religiosa encontra adequação típica no artigo 2º-A, da Lei de Racismo, e não no artigo 140, §3º, do CP.

Em conclusão, vale registrar que o ideal seria uma mudança na Lei 7.716/89, para incluir como crime de racismo, no mínimo, os atos de discriminação ou preconceito vinculados a raça, cor, etnia, religião, orientação sexual e condição de pessoa idosa ou com deficiência.

Do mesmo modo, em respeito ao princípio da proporcionalidade, o legislador deveria adequar as sanções penais impostas aos crimes de racismo, punindo de forma mais severa o "racismo segregatório", ou seja, aquele que exclui e limita direitos e liberdades públicas [3]. Isso porque as condutas de ofender alguém por questões de preconceito (artigo 2º-A) ou de promover/instigar o racismo (artigo 20), não são tão graves quanto as ações que segregam a vítima (artigo 5º, da Lei de Racismo).

Deveras, uma coisa é ofender alguém por conta da sua cor, outra, muito mais grave, é proibir o ingresso de uma pessoa em um estabelecimento comercial pelo fato de ela ser negra. Não obstante, nos termos da Lei 7.716/89, a primeira conduta é punida com reclusão de dois a cinco anos e a segunda com reclusão de um a três anos, o que, convenhamos, é absolutamente desproporcional. Na verdade, um país que tenha o compromisso de combater e erradicar o racismo deve punir de forma muito mais severa todas as suas modalidades de crime.

 


[1] Registre-se que "discriminações positivas" têm um efeito contrário, promovendo o princípio da igualdade, como, por exemplo, nas ações afirmativas (Lei Maria da Penha, Estatuto do Idoso, Estatuto da Pessoa Deficiente etc.).

[2] SANNINI, Francisco. CABETTE, Eduardo. Tortura racial é crime imprescritível. Disponível: ConJur – Sannini e Cabette: Tortura racial é crime imprescritível . Acesso em 21.09.2023.

[3] No mesmo sentido: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova Lei de Racismo. ed. Mizuno, 2023.

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  • é mestre em Direitos Difusos e Coletivos, pós-graduado com especialização em Direito Público, professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo, professor da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo, professor do Damásio Educacional e do QConcursos e delegado de polícia do estado de São Paulo.

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