Opinião

Devolução dos tributos do consumo aos pobres e a reforma tributária

Autor

  • Cleucio Santos Nunes

    é doutor em Direito do Estado pela UnB (Universidade de Brasília) mestre em Direito Ambiental pela UniSantos professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e da graduação no Centro Universitário de Brasília (Ceub) Ex-Conselheiro do Carf e advogado.

4 de outubro de 2023, 15h22

O texto da reforma tributária constante da PEC 45, aprovado pela Câmara dos Deputados em julho deste ano, está no Senado para análise. O substitutivo guarda uma série de pontos polêmicos e a intenção deste artigo não é ingressar nesse terreno. Não por falta de coragem, mas porque, neste texto, a intenção é levantar o debate em torno dos conceitos de justiça e de equidade em matéria fiscal, como um assunto dotado de transversalidade. Se é assim, a reforma deve levar em consideração também instrumentos que possam tornar o sistema justo para todos, empresas, empresários, trabalhadores de carteira assinada, informais e os excluídos do mercado de trabalho por ausência das pré-condições necessárias.

De um modo geral a simplificação marcou a necessidade da reforma nas duas últimas décadas. Ultimamente, a regressividade, efeito da tributação em que as renda mais baixas sofrem mais com a pressão dos tributos, ganhou relevância. Daí por que, quando se trata de analisar a carga tributária brasileira, talvez seja mais adequado, nos tempos atuais, focar no conceito de equidade tributária para que se verifique qual parcela da população, realmente, sofre os efeitos do que se pode considerar uma carga tributária injusta.

Nesse sentido, os índices mais recentes sobre o impacto da tributação direta e indireta sobre ganhos totais por faixa de renda familiar per capita mostram, ainda, um sistema regressivo. Com base na POF 2017-2018, o Ipea comprova que as famílias mais pobres sofrem um impacto mais agressivo dos tributos indiretos sobre sua renda [1]. Na análise do Ipea, a renda per capita familiar é medida em reais e os tributos indiretos e diretos em percentuais da renda per capita.

Tomando-se dois extremos como exemplos, as famílias com renda per capita de R$ 212,05 sofrem uma carga tributária de tributos indiretos de 21,2%, enquanto para as famílias que recebem per capita R$ 7.717,58, os tributos indiretos pesam apenas 7,8%.

Nesse caso, observe-se que os tributos indiretos somam quase três vezes mais sobre a renda dos mais pobres em relação a dos mais ricos. Quando se analisa o peso da tributação direta, embora nos extremos se verifique que a carga dessa modalidade tributária sobre a renda dos mais pobres é de 3,1% e para os mais ricos 10,9%, a desproporção segue revelando uma carga tributária regressiva, uma vez que a tributação direta pesa em pontos percentuais sobre a renda per capita dos mais ricos em menos da metade do que os tributos indiretos pesam sobre os mais pobres (10,9% para 21,2%).

Isso mostra que a relação tributos indiretos e diretos no Brasil, apesar da incidência dos tributos sobre renda e propriedade dos mais ricos, não consegue compensar a forte carga tributária dos tributos do consumo sobre a renda dos mais pobres, denotando forte carga tributária regressiva.

Não existem muitas alternativas para eliminar a regressividade do sistema de tributação, pois isso implicaria em se adotar instrumentos econômicos de diminuição da concentração de renda. A função do direito nessa seara é muito limitada, pois implicaria ter que intervir na economia por meio de regras que podem interferir na dinâmica do mercado, o que não é desejável em uma economia livre.

O ideal seria que as pré-condições de uma vida próspera fossem asseguradas para todos por meio da economia privada. Prosperidade, neste texto, é entendida como o alcance de uma vida digna, em que direitos básicos possam ser supridos, e isso ocorrendo, a pessoa poderá disputar os melhores postos de trabalho na iniciativa privada ou no serviço público em igualdade de condições. Sem a garantia dessas pré-condições é praticamente impossível que se verifique uma sociedade justa ou igualitária com base na ideia de dignidade. 

Quando as condições econômicas do mercado falham ao não garantir a todos essas pré-condições, o direito, nesse caso, poderá estabelecer segurança jurídica à adoção de políticas públicas promotoras de mais inclusão econômica, o que passa pela asseguração das aludidas pré-condições de obtenção de renda adequada no marcado de trabalho. Dentre essas pré-condições, quatro direitos básicos são indispensáveis para uma vida próspera que independa de fatores arbitrários vinculados a talentos pessoais extraordinários. Os direitos em questão são os seguintes: a) saúde, b) segurança alimentar, c) ensino e d) moradia. Nada impede que esse rol seja estendido, mas provavelmente não poderá ser reduzido, sob pena de dificultar ainda mais as expectativas de uma vida próspera.

Ocorre que, mesmo sendo assegurados esses direitos a todas as pessoas, os resultados que podem ser obtidos em números ideais projetam-se para o longo prazo, ou seja, uma geração desprovida desses direitos nem sempre desfrutará dos efeitos dessas políticas públicas. Provavelmente, as próximas gerações terão mais condições de receber os efeitos positivos das políticas iniciadas nas gerações anteriores, considerando que essas políticas não tenham sido interrompidas.

Como se percebe, em sociedades profundamente desiguais, o tempo que a economia leva  se é que consegue  para garantir a todos os direitos básicos é longo demais, ainda que haja o auxílio do direito assegurando a promoção das políticas públicas igualitárias. Por isso, ao lado da asseguração das políticas públicas, o sistema de tributação pode ser um aliado forte na aceleração dos efeitos que se pretende com uma sociedade justa e que, por isso, seja capaz de garantir uma vida digna a todos, mediante a fruição de direitos básicos.

Nesse sentido, medidas como a devolução dos tributos sobre o consumo, que foi apelidada de "cash back tributário", podem contribuir para esses resultados mais imediatos, juntando economia e direito para o alcance de objetivos comuns.

Embora a expressão "cash back", em inglês, não consiga expressar na essência a finalidade e extensão da devolução dos tributos do consumo, trata-se de uma designação que caiu na graça da opinião pública e vem sendo utilizada como sinônimo dessa devolução [2]. Chamada ou não de cash back, deve se comemorar a preocupação do legislador em considerar o assunto no âmbito da reforma.

 A devolução dos tributos sobre o consumo está prevista no texto da PEC 45 nos artigos 156-A, §5º, VIII e 195, §17, os quais se referem ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Primeiramente, o texto oriundo da Câmara deveria ser mais ousado porque poderia fixar as balizas centrais sobre as quais a efetivação da devolução se daria. Por exemplo, seria salutar que se previsse um prazo para a regulamentação do dispositivo constitucional. Além disso, o público-alvo da devolução poderia ser delimitado, fixando-se o critério que o legislador deveria se valer para implantar a política, tais como renda, gênero e raça.

Ambos os dispositivos foram muito superficiais, limitando-se a remeter à lei infraconstitucional a regulação de como a devolução se dará, considerando os objetivos de reduzir desigualdades de renda. Só o fato de remeter à lei a função de regulamentar esse assunto em um futuro indefinido, fragiliza a política tributária inclusiva, pois, como se sabe, essa devolução poderá produzir impactos nas contas públicas, exigindo compensações financeiras com outras hipóteses de incidência tributária, que evidenciem, assim se espera, maior capacidade contributiva. Isso, por si só, levanta a suspeita de que a devolução não seja regulamentada sob a alegação de que gera despesa nas contas dos governos. Daí por que, espera-se que o Senado corrija a omissão da Câmara e estabeleça, pelo menos, um prazo fixo para a publicação da Lei Complementar. Nem se diga que a falta de sistema de dados para identificação dos beneficiários justificaria a demora na implantação da devolução, o Cadastro Único do Bolsa Família, mantido pelo Governo Federal, pode ser um início para a eleição do público-alvo e efetivação célere da política.

Assim, a devolução dos tributos do consumo aos mais pobres é uma política tributária que se insere no ambiente regulatório das discriminações positivas, pois procura oferecer tratamento tributário justo e capaz de auxiliar na construção de uma matriz tributária equitativa, dando a cada um o que cabe proporcionalmente à sua capacidade contributiva.

Note-se que o fundamento da devolução dos tributos sobre o consumo aos mais carentes não significa "restituir indébito tributário", o que implicaria um juízo de ilegalidade sobre a incidência do tributo. Trata-se do reconhecimento da ausência ou da baixa capacidade contributiva de determinado grupo de pessoas, que, infelizmente, constitui a maior parte da população brasileira. Em 2022, os 50% da população com o menor rendimento per capita, receberam, em média, R$ 537, contra R$ 17.447 do 1% mais rico. Isso significa que essa menor parcela da população ganhou 32,5 vezes mais de rendimento médio em relação à maioria mais pobre. Em 2021, essa razão foi ainda pior, registrando 38,4 vezes de diferença [3]. Quando o parâmetro foi o salário-mínimo, 67,19% dos ocupados receberam até dois salários-mínimos (R$ 2.424) e 35,63% ganharam até um salário-mínimo. Acima de 2 salários-mínimos, a proporção ficou em 32,81%, ou seja, abaixo da população que recebeu até 1 salário [4].

Diante desses fatores, a incidência de tributos sobre o consumo dos mais pobres não se justifica do ponto de vista da equidade, exatamente porque falta a esse grupo social as condições econômicas básicas para contribuir tributariamente. As pessoas de baixa renda não conseguem ser contribuintes, nem mesmo dos tributos sobre o consumo, pois não possuem renda suficiente para contribuir sem o sacrifício de sua dignidade. Por essa razão, cabe à ordem jurídica reconhecer esse estado de coisas e promover equidade devolvendo a parcela de renda que foi alvo da incidência tributária.

Além de uma medida equitativa, a devolução dos tributos do consumo estimula um círculo virtuoso entre renúncia fiscal e aquecimento da economia, pela óbvia razão de que, devolvendo o tributo sobre o consumo, seus beneficiários direcionarão o dinheiro devolvido para consumir outra vez.

Um exemplo disso foi o crescimento de 0,9% do PIB brasileiro no segundo trimestre de 2023 em relação ao mesmo período de 2022. De acordo com o Ipea, no segundo trimestre de 2023, o consumo das famílias cresceu 3,0%, puxado pelo reajuste nos programas de redistribuição de renda, além de outros fatores menos influentes [5].

A implantação de política tributária equitativa de devolução dos tributos do consumo aos mais pobres certamente produzirá o mesmo efeito positivo. Note-se que a devolução dos tributos, ao potencializar o consumo, estimula a produção que leva à maior oferta de empregos, gerando o círculo virtuoso de que falamos. O aumento da produção gera incremento de receita tributária na outra ponta, eis que as empresas deverão aumentar seu faturamento e lucratividade, formando uma política em que todos ganham.

Assim, se por um lado a devolução dos tributos do consumo possa parecer, à primeira vista, renúncia fiscal, por outro, gera aumento de arrecadação por força do estímulo ao consumo.

Não há nenhum dilema de difícil solução entre incidir tributos sobre o consumo do mais pobres e renúncia fiscal com a sua devolução. Isso porque, aumentar a renda de quem tem pouco mediante, inclusive, a devolução dos tributos, é sempre uma medida moralmente justa frente a desigualdades econômicas históricas e abissais, que humilha a todos. 

 


[1] OLIVEIRA, João Maria. Propostas de reforma tributária e seus impactos: uma avaliação comparativa. In: Carta de conjuntura nº 60. Brasília: Ipea, nota de conjuntura 1, 3º Trimestre, 2023, p. 06.

[2] Nesse sentido, Elidie Bifano, em texto muito bem produzido, esclarece que o cash back é instrumento mais apropriado para as práticas comerciais de fidelização de clientes do que um instituto relacionado à restituição tributária. Cf. Afinal, o cash back tributário é a solução para as desigualdades na tributação?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-24/consultor-tributario-cashback-tributario-solucao-desigualdades-tributacao

Autores

  • é doutor em Direito do Estado pela UnB (Universidade de Brasília), mestre em Direito Ambiental pela UniSantos, professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e da graduação no Centro Universitário de Brasília (Ceub), advogado e consultor jurídico.

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