Embargos Culturais

O ministro Barroso e o manifesto da Revolução da Brevidade

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

1 de outubro de 2023, 8h17

"A revolução da brevidade" é um texto do ministro Roberto Barroso que circulou nos meios digitais há cerca de 15 anos. Desconheço se foi publicado em versão impressa. Tomei conhecimento ao trocar mensagens com Patrícia Perrone, colega de magistério (como o ministro também), a propósito de um trabalho que venho desenvolvendo sobre a escrita do ministro Barroso, que me parece exemplo de concisão e objetividade.  

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Leiam as ementas de seus votos, e terão a confirmação dessa afirmação. Obrigado, Patrícia, essa recomendação é um abre-te-sésamo para a resolução de um problema que nos aflige: como escrever com clareza e objetividade? 

Penso que a "A revolução da brevidade" é um verdadeiro manifesto em favor de uma nova forma de escrever e de falar o Direito. Em muitas passagens eu me lembrei daquele fascinante livro de Ítalo Calvino, As seis propostas para o próximo milênio. O escritor italiano (nascido em Cuba) pregava a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência como valores de um mundo novo. Vários desses pontos parecem coincidir com o manifesto aqui citado. As críticas do ministro Barroso me lembraram um conto de Monteiro Lobato, "O júri na roça". Quem ler o texto vai se lembrar também do Conselheiro Acácio, de Eça de Queiróz. É para os conselheiros acácios de toga e anel de rubi que o texto parece ter sido escrito.  

Nesse texto (curto, singelo e superlativamente significante), o ministro Barroso indica duas vicissitudes que marcam nosso mundo jurídico: uma "linguagem empolada e inacessível" e o consumo sem dó do tempo alheio, por parte dos "oradores ou escribas prolixos". Posso estar entre eles (tenho certeza que estou) e presumo (com algum nível de certeza) que alguns leitores (poucos) também. Será? 

Com humor, o ministro nos lembra que antigamente a fala difícil era expressão de sabedoria. Exemplifica com expressões como "outorga uxória" (autorização do cônjuge) e "irresignação derradeira" (recurso extraordinário). Acrescento uma que nunca esqueci, porque contestava a petição: o advogado referia-se ao Código de Processo Civil como o "Digesto Instrumental Pátrio", sem contarmos também a multiplicação de sinônimos para a Constituição, como "Cartilha Cívica", entre tantos outros.  

De fato, no Direito e na burocracia, há uma língua diferente. Na tributação, parece não haver cidadão, há o "contribuinte". Na Previdência, não há gente, há o "segurado". Para muitos administrativistas, não há pessoa, há "administrado"; para alguns processualistas, há "jurisdicionado"; para a turma do Direito Sucessório não há morto, há o "de cujus"; para a administração criminal não há ser humano, há o "elemento" ou o "meliante".  

Acredito também que, com a desculpa de que se trata de uma linguagem técnica, pode-se escrever mal, de modo pernóstico e arrogante, sem reverberação (sic) alguma no leitor, a menos que seja um iniciado no "Club", cuja carta de entrada deve ser o juramento aos Estatutos do Visconde de Cachoeira. É o mundo dos "sem embargo", "outrossim", "serôdio", "fulcro", "supedâneo", "espeque", "perlustrar", "vergastada", "objurgada", as intermináveis "datas vênias" (com ou sem o circunflexo), e "tutti quanti". Acrescento o odioso "reverberação", que usei acima. O "sic", que também usei, como forme de ênfase, é pior ainda: vem do latim "sic erat scriptum", que significa simplesmente "estava escrito desse jeito". É o latim macarrônico do Direito. Quanto ao "tutti quanti", melhor deixar de lado. 

Pelo que eu entendi desse belo texto, na medida em que os juristas começam a se comunicar com o mundo, depois de muito tempo de "solilóquio" (para usar uma dessas palavras grotescas), deve-se "deixar de escrever e de falar além da conta". Segundo o ministro Barroso, nós, da patota do Direito, "temos de ser menos chatos". Eu tento, mas não sei se consigo. 

O ministro Barroso apresenta duas sugestões. Propõe que cortemos "na própria carne", sugerindo um número máximo de páginas nas petições; se algo a ser dito supere 20 páginas, recomenda o uso de anexos. E adverte: "(…) Postulação que não possa ser formulada nesse número de páginas dificilmente será portadora de bom Direito". Segundo o ministro Barroso, "Einstein gastou uma página para expor a teoria da gravidade. (…) É a qualidade do argumento, e não o volume de palavras, que faz a diferença".  

E ainda, "a leitura de votos extremamente longos, ainda quando possam trazer grande proveito intelectual para quem ouve, torna os tribunais disfuncionais". Lembrou (há 15 anos) que havia sessões plenárias (referia-se ao STF) nas quais consumia-se o tempo com a leitura de um único voto, o que resultava (resulta) no acúmulo de pauta. E mais: "(…) Como qualquer neurocientista poderá confirmar, depois de certo tempo de exposição, os interlocutores perdem a capacidade de concentração e a leitura acaba sendo para si próprio". Recomendava leituras que não ultrapassassem 20 ou 30 minutos, "com uma síntese dos principais argumentos".  

O fecho do texto é hilariante. O ministro Barroso ilustra a concisão com a síntese de um aluno cuja professora pediu uma redação breve sobre "sexo, religião e nobreza". Não dou spoiler, o leitor que consulte o texto (basta digitar "A revolução da brevidade" na internet). Vai me agradecer, como agradeço a Patrícia Perrone.  

Para o ministro Barroso, "a revolução da brevidade tornará o mundo jurídico mais interessante, e a vida de todos nós, muito melhor". Parece que a hora da revolução chegou, porque, definitivamente, menos é mais.

Dedico este ensaio ao Dr. João Carlos Souto, importante americanista, diretor da Escola Superior da Advocacia-Geral da União, que tem lutado para a publicação de um Festschrift sobre o ministro Barroso e que vem modernizando as técnicas pedagógicas para aperfeiçoamento de profissionais do maior escritório de advocacia do Brasil.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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