Opinião

Consequencialismo e modismo: Lindb e obrigação do juiz considerar consequências

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19 de novembro de 2023, 13h20

É comum encontrarmos na doutrina e na jurisprudência afirmações no sentido de que a Lei nº 13.655/18, ao incluir expressamente na Lindb que o juiz, em certos casos, está obrigado a considerar as consequências de sua decisão (artigos 20 e 21), recepcionou o consequencialismo como forma de decisão, inaugurando um novo paradigma.

O objetivo do presente texto é contestar essa afirmação; sem entrar em grandes detalhes sobre a teoria consequencialista, seus problemas e virtudes, buscaremos demonstrar que a Lindb não confere às consequências da decisão a normatividade que muitos querem ver. Considerar as consequências da decisão é uma coisa; adotar o consequencialismo como forma de decisão é outra, especialmente considerando o conceito tradicional de consequencialismo.

Para Richard Posner, o consequencialismo é a teoria segundo a qual a análise das consequências possui um grau de normatividade suficiente para determinar a interpretação que deve ser atribuída aos textos legais; os juízes devem se vincular aos fatos do caso e às consequências da decisão judicial; e não a conceitos, abstrações ou generalidades [1]. De acordo com ele, embora isso não signifique uma autorização para o total desprezo aos textos legais, fato é que o melhor a se fazer ao invocar a aplicação de uma lei é avaliar as consequências daí decorrentes, se elas serão boas ou ruins no geral [2]. E esse será o padrão-ouro da decisão a ser tomada.

Trata-se de uma teoria jurídica que geralmente vem associada ao pragmatismo filosófico, que defende a necessidade de priorização das consequências dos atos, teorias ou conceitos, em detrimento de outros elementos de ordem formal, opondo-se ao idealismo. Além disso, como pontuam Emerson Gabardo e Pablo Ademir Souza, junto do consequencialismo está o antifundacionismo, entendido como rejeição a dogmas e verdades absolutas, apriorísticas e fixas e o contextualismo, que defende a necessidade de consideração dos contextos social, político, histórico e cultural na pesquisa científica e filosófica, em rejeição a análises mais abstratas [3].

Não há, é verdade, um consenso sobre o conceito de consequencialismo. Por isso, na linha do exposto anteriormente, adotaremos aqui uma definição bem ampla: qualquer teoria que que busque condicionar a adequação jurídica de uma dada decisão à valoração das consequências a ela associadas é uma teoria consequencialista; e esse condicionamento pode se dar em maior ou menor medida.

Como observa Luis Fernando Schuartz, há o consequencialismo forte, em que uma decisão somente é correta se suas consequências são as mais adequadas em um dado contexto. E há o fraco, que atribui à análise das consequências um papel residual, a ser utilizada quando os argumentos institucionais não são capazes de indicar uma determinada solução [4]. Quando se fala em consequencialismo, geralmente se associa o termo à acepção forte do termo.

Embora a controvérsia em torno da análise das consequências na decisão judicial não seja uma novidade no Brasil, fato é que com a edição da Lei nº 13.655/18 a discussão ganhou novo status. Isso porque a partir de então passou a existir uma legislação que, dentre outros temas, prevê expressamente: 1) a necessidade de o juiz considerar as consequências práticas da decisão quando decidir com base em valores jurídicos abstratos (artigo 20); 2) que qualquer decisão que “… decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas” (artigo 21).

Inclusive, podemos dizer que a Lindb inaugurou uma tendência que tende a ser cada vez mais reproduzida. A título de exemplo, a atual Lei de Licitações adotou essa mesma racionalidade ao tratar das nulidades contratuais, como se nota dos arts. 147 a 150 da Lei nº 14.133/21; de igual modo a Lei de Improbidade Administrativa, que após a reforma introduzida pela Lei nº 14.230/21 passou a prever que é dever do juiz considerar, na sentença, “[…] as consequências práticas da decisão, sempre que decidir com base em valores jurídicos abstratos” (artigo 17-C, inciso II, da Lei nº 8.429/92).

A questão é: esses dispositivos autorizam a conclusão de que o direito administrativo brasileiro incorporou o consequencialismo como forma de decisão — isto é, a versão forte da teoria?

A nosso ver, a resposta é negativa. Em momento algum o legislador conferiu ao juiz a prerrogativa de se descolar da interpretação dos dispositivos de lei apenas a partir da análise das consequências de sua decisão. Nesse sentido, ainda que possa ser compreendida como um critério de decisão, um reforço argumentativo à disposição do juiz, a Lindb não autoriza que a análise das consequências seja o próprio fundamento da decisão. Não cabe uma decisão do tipo: “a lei é essa, mas como eu reputo que a consequência da sua aplicação é grave, eu não a aplico”.

O próprio artigo 20 da Lindb confirma essa interpretação ao limitar a obrigação de análise das consequências aos casos em que a decisão está baseada em valores jurídicos abstratos [5]. A disposição se aplica aos casos em que está em jogo a interpretação de cláusulas jurídicas abstratas e indeterminadas (tais como “boa-fé”, “legítima defesa”, “interesse público”, etc.), quando a letra da lei não indica ao intérprete a decisão que deve ser tomada. O dispositivo se aplica àquelas situações em que não há um consenso sobre a decisão a ser proferida no caso concreto porque o material normativo a ser interpretado não indica uma só resposta [6]. Mas note que a Lei não diz que a depender da gravidade da consequência uma norma pode simplesmente deixar de ser aplicada.

Nesse sentido, o consequencialismo na LINDB, se é que podemos usar esse termo, é uma versão ainda mais fraca da teoria. Como visto, o consequencialismo fraco é aquele que atribui à análise das consequências um papel argumentativo residual. A LINDB (e as demais antes mencionadas), por sua vez, conferiu às consequências não só um papel residual, mas também condicionou a sua análise àqueles casos em que está em jogo a interpretação de cláusulas jurídicas abstratas.

Em outras palavras, o mero fato de existir uma divergência interpretativa não é suficiente para fazer incidir a obrigação de análise das consequências; é preciso, ainda, que essa divergência recaia sobre cláusulas abstratas. Só então aplicável o artigo 20 da Lindb. Como anotou Edilson Pereira Nobre Júnior, “… é preciso notar que o regramento [artigo 20 da Lindb] não se volta à generalidade das decisões proferidas nos âmbitos que indica. Reporta-se a uma parcela destas, consistente naquelas em cuja motivação se apoie, de forma essencial, em valores jurídicos abstratos” [7].

Com efeito, a análise das consequências, seja antes ou depois da Lei nº 13.655/18, jamais pode ser entendida como um fundamento determinante e suficiente das decisões judiciais, ao menos não no Brasil. Seu papel é meramente instrumental e auxiliar, para aqueles casos em que o ordenamento jurídico não fornece uma resposta unívoca e objetiva ao caso em julgamento, cabendo ao juiz suprir lacunas e indeterminações normativas a partir da apresentação de uma justificativa que demonstre que a solução adotada é adequada à luz do sistema [8].

Isso tudo converge para a conclusão de que a Lindb (e as demais leis que vão nessa linha) não adotou o consequencialismo como técnica de decisão (não ao menos como esse termo é tratado na teoria do direito).

Aliás, dizer que é papel do juiz considerar as consequências de suas decisões é (ou ao menos deveria ser) uma platitude. Assim sempre foi; e assim persiste sendo. É óbvio que é dever do juiz considerar o impacto que suas decisões terão sobre os jurisdicionados, notadamente quando está em jogo a efetividade e/ou a implementação de direitos ou de políticas públicas.

Isto, contudo, é muito diferente de afirmar que a as consequências da aplicação da norma sejam fundamento suficiente das decisões judiciais, ou que o direito positivo pode ser derrogado com base na invocação das consequências de sua aplicação. Ir nessa linha é atribuir ao juiz a possibilidade de, simplesmente, desprezar o caráter vinculante das normas produzidas pelo Legislador. O fato de ele ter que enunciar de modo explícito as consequências da decisão, notadamente para definir como devem ser aplicadas cláusulas abertas, não se confunde com a hipótese anterior. As normas da Lindb são critérios de fundamentação da decisão, que condicionam o poder de decidir.

Para finalizar, nos remetemos à afirmação inicial: considerar as consequências da decisão é uma coisa; adotar o consequencialismo como forma de decisão é outra. E no Direito convém não misturar alhos com bugalhos.


[1] POSNER, Richard. The problematics of moral and legal theory. Cambridge: Harvard University Press, 2002. p. 227.

[2] POSNER, Richard. The problems of jurisprudence. Cambridge: Harvard University Press, 1994. p. 300.

[3] GABARDO, Emerson; SOUZA, Pablo Ademir. O consequencialismo e a LINDB: a cientificidade das previsões quanto às consequências práticas das decisões. A&C, Revista de Direito Administrativo e Constitucional, ano 20, nº 81, p. 97-124, jul./set. 2020. Disponível em <http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/1452>. Acesso em 12 out. 2023.

[4] SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo jurídico, racionalidade decisória e malandragem. Revista de Direito Administrativo, 2008. Disponível em <https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/41531>. Acesso em 08 nov. 2023.

[5] Inclusive, lida sob essa perspectiva, a LINDB confere uma abertura muito maior à análise das consequências em seu artigo 5º, segundo o qual “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Como se nota, o direito nunca foi indiferente às consequências da aplicação das normas, pois elas se aplicam segundo critérios também de adequação social.

[6] Nessas situações fica evidenciado o que H. L. A. Hart chama de textura aberta da linguagem. Segundo o autor, quaisquer que sejam as estratégias linguísticas utilizadas na criação dos padrões jurídicos — pelo juiz no caso do precedente e pelo legislador no caso das leis, ou mesmo no que toca aos costumes —, estes, embora funcionem “[…] na grande massa de casos ordinários, se mostrarão em alguma medida imprecisos quando de sua aplicação; terão o que se tem chamado de textura aberta”. Ver HART, H. L. A. The concept of law. 2 ed. With a postscript edited by Penelope A. Bulloch and Joseph Raz. Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 128.

[7] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. As normas de direito público na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro: paradigmas para interpretação e aplicação do direito administrativo. São Paulo: Contracorrente, 2019, p. 40.

[8] Adotamos, aqui, a teoria de H. L. A. Hart sobre a discricionariedade judicial. (cf.  Discretion. Harvard Law Review, v. 127, nº 2, p. 652-665, 2013. Disponível em <https://harvardlawreview.org/print/vol-127/discretion/>. Acesso em 13 out. 2023).

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