Opinião

MP e prevaricação por não oferecimento de denúncia

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

19 de novembro de 2023, 6h31

Publicou-se notícia de que se não for promovida ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro por conta da delação do tenente-coronel Mauro Cid, os membros do Ministério Público responsáveis pela análise do caso seriam processados pelo crime de prevaricação.

A notícia ou mesmo a afirmação mostra total desconhecimento de como funciona o processo penal e das atribuições do Ministério Público contidas na Carta Constitucional.

Um aluno do primeiro ano da faculdade de direito já sabe que o Ministério Público é o titular da ação penal pública e somente ele, por um de seus membros, pode promover a ação penal mediante o oferecimento de denúncia. Claro que, com exceção de uma hipótese, há dentro da própria instituição sistema de controle quanto à promoção de arquivamento. Não concordando o magistrado com o pleito, o procedimento será encaminhado ao procurador-geral de Justiça ou à Câmara de Coordenação e Revisão (a depender do ramo do MP), que poderá determinar novas diligências investigatórias, designar outro membro do Ministério Público para oferecer denúncia ou homologar a promoção de arquivamento por concordar com as razões nela apontadas.

A exceção é quando a promoção de arquivamento é oriunda do procurador-geral da República. Nessa hipótese, não há mecanismo de controle e as cortes superiores são obrigadas a homologar a promoção de arquivamento, por não ser possível obrigar o Ministério Público a oferecer denúncia por entender não haver elementos para tanto, como ausência de indícios suficientes de autoria ou prova da materialidade, ser o fato atípico (não constituir crime) ou outro fundamento legal qualquer.

A jurisprudência da Suprema Corte sempre foi nesse sentido sem maiores problemas ou questionamentos.

Com efeito, há mecanismos próprios no sistema processual acerca da instauração, tramitação e conclusão de investigações.

Por isso, descabido qualquer tipo de pressão contra membros do Ministério Público para que ofereçam a ação penal ou promovam o arquivamento, tanto que esses agentes políticos possuem diversas garantias constitucionais para que coações indevidas desse tipo não surtam efeito.

Não há como obrigar o MP a promover a ação penal. Ele é o titular da ação penal pública, conforme mandamento expresso previsto no artigo 129, I, da Constituição Federal.

O magistrado, seja de qual grau for, não pode investigar e nem determinar medidas cautelares sem pedido expresso do Ministério Público ou representação da autoridade policial na fase de investigação. E tampouco pode ele mesmo propor a ação penal.

Nosso sistema processual é o acusatório. Por esse sistema existe nítida divisão entre o órgão acusador e o julgador. Enquanto a acusação é, em regra, formulada por um órgão estatal (Ministério Público), o poder Judiciário é o responsável pela aplicação da lei e a solução dos conflitos entre o Estado e o particular. As partes estão em igualdade de condições, sobrepondo-se a elas, como órgão imparcial de aplicação da lei, o juiz.

Como corolário lógico desse sistema, vigoram os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV e LV), além das garantias da tutela jurisdicional (artigo 5º, XXXV), do acesso à Justiça (artigo 5º, LXXIV), do Juiz natural (artigo 5º, XXXVII e LIII) e do tratamento paritário das partes (artigo 5º, caput, e I), estando vedado ao Juízo instaurar ação penal de ofício (“ne procedat judex ex officio”) e investigar na fase pré-processual, usurpando a função da polícia judiciária (artigo 144 da CF) e do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (artigo 129, I, da CF), que também possui o poder investigatório criminal, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (RE 593.727/MG – rel. min. Cezar Peluso – Tribunal Pleno – j. em 14/5/2015).

Interessante que a Lei nº 13.964/2019 introduziu no Código de Processo Penal, no capítulo que trata do juiz de garantias, dispositivo específico que consagra no direito objetivo o sistema acusatório de processo, o que já era reconhecido pela doutrina e jurisprudência pacíficas, por interpretação decorrente do nosso sistema constitucional e processual. Diz a norma: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

Por força de liminar em ação direta de inconstitucionalidade que questionava o juiz de garantias no sistema processual, haviam sido sustados os efeitos desse dispositivo e de vários outros no capítulo (STF: ADI 6.299 MC/DF, rel. min. Luiz Fux, j. em 22/1/2020).

Referida decisão liminar foi proferida por conta de questionamento da constitucionalidade do juiz de garantias e não desse dispositivo específico, cujo fundamento já é reconhecido de forma praticamente unânime em todos os tribunais.

Ao julgar o mérito desta ação e de outras que questionavam alguns dispositivos da Lei nº 13.964/2019, a Excelsa Corte deu interpretação conforme a Constituição no sentido de que na fase policial o magistrado efetivamente não pode investigar e nem determinar diligências investigatórias; no entanto, na fase judicial pode produzir provas ou determinar diligências supletivas às partes, a fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito e, com isso, possa formar sua convicção com o escopo de prolatar uma sentença justa, o que já era previsto no artigo 156, inciso II, do Código de Processo Penal.

Note-se, assim, que já há norma positivada, que impede a iniciativa do magistrado na fase investigatória e a substituição da acusação na fase processual, exceto supletivamente, acolhendo expressamente o sistema acusatório de processo, mesmo que de forma mitigada pelo Supremo Tribunal Federal.

Cada ator processual tem a sua função e em nada contribui para o Estado democrático de Direito que um órgão se imiscua em outro, haja vista o princípio fundamental da separação dos poderes da República (artigo 2º, CF), de modo a haver a perfeita harmonia entre eles e a fiscalização de um ao outro dentro dos limites traçados pela Constituição.

Quanto ao crime de prevaricação, nem de longe pode ser imputado ao membro do Ministério Público que, de forma fundamentada e amparado na legislação e jurisprudência, mesmo que minoritária, promover o arquivamento do inquérito policial ou do procedimento investigatório criminal por entender não haver justa causa para a propositura de uma ação penal ou por outro fundamento jurídico qualquer.

O delito de prevaricação vem definido no artigo 319 do Código Penal nos seguintes termos: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena. Detenção, de três meses a um ano, e multa”.

A norma tutela a administração pública, mormente quanto à lisura e presteza dos atos funcionais de seus agentes. Por isso, há necessidade de que ocorra infração ao dever funcional do agente público com lesão aos princípios da legalidade ou da moralidade administrativa.

São três as condutas típicas:

1. retardar ato de ofício indevidamente (omissão); 2. deixar de realizar ato de ofício indevidamente (omissão); 3. praticar ato de ofício contra disposição expressa de lei (ação).

Retardar tem o sentido de atrasar, adiar, procrastinar. Assim, o funcionário público não realiza o ato de ofício no prazo prescrito (se existente) ou em tempo hábil para que possa produzir seus efeitos.

Deixar de realizar é não praticar. Nesse caso, a intenção do funcionário público não é apenas protelar o ato de ofício, mas omitir-se e não o praticar.

Praticar é conduta comissiva e consiste na realização do ato de ofício.

Nas duas primeiras condutas típicas, é exigido o elemento normativo do tipo “indevidamente”, que significa injustamente, incorretamente, não permitido pelo ordenamento jurídico. É o caso do cartorário que, por não gostar do requerente de uma certidão, não a expede no prazo devido, ou do policial que, por piedade, não prende em flagrante alguém que acabou de cometer um crime.

Na última conduta, também há o elemento normativo do tipo “contra disposição expressa de lei”. Como tal, deve ser entendido o dispositivo que não oferece dúvida de interpretação. Exige-se, portanto, que o ato de ofício afronte a lei, não havendo esse delito se houver infringência de outra espécie de norma de categoria inferior, como portaria, regulamento etc. É o caso do delegado de polícia que, por ser amigo do marido que agrediu a esposa e lhe causou lesões corporais graves, arquiva o inquérito policial sem que haja requerimento do Ministério Público e decisão do juiz de Direito.

Em qualquer das condutas típicas é exigido o elemento subjetivo do tipo: “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Inexistindo um desses elementos alternativos, o fato será atípico ou poderá constituir outro delito. Assim, a negligência, imperícia ou imprudência excluem o crime, haja vista a inexistência do dolo.

Ato de ofício é aquele ligado à atividade funcional do agente. Dessa forma, se o ato foge à atribuição do funcionário público, não haverá o delito por atipicidade da conduta, uma vez que o crime se caracteriza pela infidelidade ao dever funcional.

Interesse pessoal é a vantagem que o funcionário público pretende obter, que pode ser econômica ou moral. Havendo acordo entre o funcionário público e o particular para o recebimento de vantagem indevida, o crime será o de corrupção passiva (CP, artigo 317) e não prevaricação. Se a vantagem indevida foi oferecida ou prometida pelo particular para determinar ao funcionário público a prática, omissão ou retardamento do ato de ofício terá aquele praticado o crime de corrupção ativa (CP, artigo 333).

Sentimento pessoal está ligado a afetividade do sujeito ativo em relação às pessoas ou fatos a que se refere a ação ou omissão, como a amizade, o ódio, a piedade etc. É indiferente para a configuração do delito eventual nobreza dos sentimentos e altruísmo dos motivos determinantes, que poderão, se o caso, serem considerados na fixação da pena.

Noronha resume muito bem e em poucas palavras o significado do delito: “Prevaricação é infidelidade ao dever de ofício, à função exercida. É o não cumprimento das obrigações que lhe são inerentes, movido o agente por interesse ou sentimentos próprios” (Direito Penal, v. IV, p. 253, Editora Saraiva).

O delito em apreço possui alguma semelhança com a corrupção passiva privilegiada (artigo 317, § 2º, do CP), mas com ela não se confunde. Naquele delito, o funcionário público transige com seu ato funcional em face de pedido ou influência de terceiro. Não o faz espontaneamente, mas por fatores externos é levado a praticar, deixar de praticar ou retardar ato de ofício, com violação de seu dever funcional. Na prevaricação, não há pedido ou influência de terceiro. O sujeito realiza a conduta por interesse ou sentimento próprios e sem o pedido ou intervenção de terceiro.

A prevaricação é crime eminentemente doloso e pressupõe, assim, a vontade livre e consciente de realizar a conduta típica. Havendo mera imprudência ou negligência, ou mesmo imperícia, o fato é atípico penalmente.

Ademais, é elemento subjetivo do tipo que o agente público, que tem a obrigação de agir, omita-se ou retarde o ato de ofício para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, de forma livre e consciente, isto é, dolosamente. Ou que o ato de ofício seja praticado dolosamente contra disposição expressa de lei, que é um elemento normativo do tipo.

Por outro lado, havendo elementos de prova concretos, que ao menos ensejem fundadas suspeitas de ilegalidade ou irregularidade (para a instauração de investigação), ou prova da materialidade e indícios suficientes de autoria (para a propositura de uma ação penal), que foram indevidamente desprezados por omissão dolosa do agente público, que tinha o dever jurídico de agir em razão de suas funções, movido por interesse ou sentimento pessoal, daí sim terá ocorrido o delito de prevaricação.

Uma das garantias constitucionais do membro do Ministério Público, que os difere da maioria das carreiras jurídicas, é a independência funcional (artigo 127, § 1º, da CF), de modo que pode agir de acordo com sua consciência e entendimento jurídico devidamente fundamentado, não se vinculando a quem quer que seja, inclusive à chefia da Instituição, que exerce controle meramente administrativo, tampouco ao Poder Judiciário, que não detém nenhuma superioridade hierárquica, possuindo cada Instituição suas funções expressamente previstas e delimitadas na Carta Constitucional e em normas infraconstitucionais.

Enfim, estando as promoções de arquivamento e os indeferimentos das representações para a realização de investigações devidamente fundamentadas, não há que se falar em prevaricação, podendo, pelo contrário, configurar crime de denunciação caluniosa (artigo 339 do CP) ou calúnia (artigo 138 do CP), a depender da hipótese, por aquele que dolosamente requereu a instauração de investigação criminal pela prática de infração penal contra alguém que o sabe inocente.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!