Opinião

Três (breves) notas sobre a litigância predatória

Autor

  • Gustavo Osna

    é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

16 de novembro de 2023, 19h19

Em estudo recentemente publicado na Revista de Processo [1], apresentei três aspectos relacionados ao tema da litigância frívola ou predatória na realidade brasileira [2]: 1) o fenômeno decorre, em ampla medida, da existência de vias processuais (aparentemente) providas de risco zero — formando um jogo no qual o ator, em princípio, somente tem a ganhar; 2) o nosso arcabouço processual, de lege lata, já disponibiliza meios para alterar as peças desse tabuleiro — mas essas ferramentas são subutilizadas; e, 3) além disso, a análise do tema exige que o papel dos advogados, como gatekeepers do processo, seja repensado e ressignificado.

Embora esses pontos nem sempre sejam percebidos, acredito que cada um deles possui importância significativa para a compreensão dessa temática. Mais que isso, considerando a honrosa repercussão recebida pelo ensaio, assim como o avanço das discussões ligadas à matéria [3], parece oportuno lançá-los brevemente para novos debates.

Como entender cada uma dessas pontas, otimizando o seu tratamento processual [4]? De que maneira adequar a preocupação com a “litigância predatória” e a proteção das garantias processuais?

Para agregar alguns temperos a esse caldo, exponho a seguir o mesmo exemplo hipotético trazido no artigo original: suponha que você descobre que já é possível realizar apostas no vencedor da Copa do Mundo de Futebol a ser realizada em 2026. Nessa situação, caso possua informações mínimas sobre expectativas e prognósticos de cada equipe, é bastante provável que queira depositar algumas fichas em países como Brasil, Argentina, França, Alemanha ou Espanha. Por outro lado, soa pouco crível que, salvo elementos como heurísticas ou limites informacionais [5], realize uma aposta em seleções como Costa Rica, Nova Zelândia, Islândia ou Togo.

Caso o mesmo site distribua apostas inteiramente gratuitas nessas seleções, porém, esse desinteresse seguirá idêntico? Nessa hipótese, diante da inexistência de riscos (ou de possíveis prejuízos), a aposta não será mais provável?

Essa análise demonstra, de maneira didática, o papel desempenhado pelos custos em qualquer tomada de decisão. E reside aí o primeiro elemento a ser entendido para uma adequada compreensão da litigância predatória: sua ocorrência parece inflacionada pela percepção de que há litígios de custo e de risco mínimos ou inexistentes em nosso ambiente jurídico.  

Um exemplo angular desse cenário é dado pela estrutura da litigância nos juizados especiais cíveis. Outra situação, também usualmente posta nesse campo, é a da assistência judiciária gratuita (particularmente, de sua concessão pródiga). Há, contudo, outras circunstâncias merecedoras de nota e menos evidentes que também militam nesse jogo [6]. Em todos esses casos, existe um estímulo claro para um comportamento que poderia se mostrar sistemicamente indesejado.

A segunda nota indicada acima é complementar e igualmente essencial. Em poucas palavras, já há elementos em nosso arcabouço positivo que se prestariam a minimizar esse estímulo. Isso deveria frear a conduta processual oportunista. Diante disso, a aparência de risco zero, muitas vezes, não seria mais do que uma aparência. Sua imagem, todavia, acaba sendo reforçada pela subutilização desses filtros, o que reduz seu efeito dissuasivo.  

Sem sequer ingressar em elementos específicos inseridos nesse campo [7], basta aqui lembrar a própria previsão genérica de punição por litigância de má-fé. O tema, longe de ser uma novidade [8], foi pensado e construído precisamente para tolher abusos no processo. Por meio dele, são expressamente inibidas práticas como a distorção fática ou a conduta protelatória e temerária.

Entretanto, conforme o conhecido jargão, na teoria, a prática é outra. As hipóteses marcadas por desvirtuamento deliberado dos fatos da disputa são, realmente, incomuns? Os recursos orientados unicamente a protelar o processo, descumprindo qualquer parâmetro mínimo de dialeticidade, são excepcionais? Nessa espécie de conduta, a punição por litigância de má-fé tem sido tomada como praxe?

A natureza retórica das perguntas realça que, em nossa visão, o fator de dissuasão teoricamente posto pela litigância de má-fé é hoje materialmente esvaziado no processo civil brasileiro. Nesse caldo, a aparência de risco zero se faz presente e se reforça.

Por fim, como último elemento indispensável para que o tema da litigância predatória possa ser bem entendido, destacamos o papel que o advogado deveria desempenhar nesse jogo. Se a Constituição de 1988 o considerou essencial à administração da Justiça, parece ter sido precisamente para garantir que também atue como guardião da seriedade e da lhaneza nesse palco. É sua incumbência evitar a litigância oportunista ou aventureira — sendo esse, inclusive, um dos motivos comumente postos para a imposição da capacidade postulatória.

Essa preocupação está explicitada no Código de Ética da OAB, segundo o qual o advogado deverá “aconselhar o cliente a não ingressar em aventura judicial” (artigo 2, inciso VII).  Contudo, consideramos questionável se ela vem realmente adquirindo confirmação material. Se nosso Judiciário tem convivido com litígio predatórios é porque há advogados assumindo seu patrocínio. Torna-se indispensável pensar em elementos de desestímulo também inseridos nesse campo, resgatando o prestígio de que a advocacia não pode se despir.

De maneira derradeira, tendo em vista esses pilares, proponho as seguintes reflexões: por qual razão é oportuno resgatar cada um desses elementos? O que faz com que, ainda que de maneira breve, seja valioso compreendê-los e sublinhá-los?

Como destacado, o tema da litigância predatória tem sido cada vez mais enfrentado em nossa academia. E é corriqueiro que, nesse debate, a resposta mais imediata e intuitiva passe pelo estreitamento das portas dos Tribunais; pressuponha algum tipo de limite ex ante a vias ou a formas de atuação em juízo.

Sem prejuízo dos possíveis benefícios desse discurso, ele pode incorrer no risco de jogar o bebê fora junto com a água do banho. E isso porque o Judiciário serve para permitir, e não para evitar, o processo.

Com isso, não defendemos que garantias como o acesso sejam vistas como absolutas [9]. Pelo contrário! O ponto central, porém, é que pensar na litigância frívola deve exigir outro filtro de investigação — comportamental e funcional. É preciso questionar, sempre: por que essa espécie de litígio ocorre? Por qual motivo ela não é adequadamente dissuadida?

As três peças indicadas no presente ensaio podem contribuir para esse quebra-cabeça. Mesmo sem fechar as portas da justiça, é indispensável que seu guardião zele pelos propósitos e pela conduta de quem ali ingressa. E é, também, essencial que a conduta oportunista seja seriamente desestimulada – compreendendo e inibindo os elementos que a encorajam.


[1] OSNA, Gustavo. Três Notas sobre a Litigância Predatória (ou, o Abuso do Direito de Ação). In. Revista de Processo. v.342. São Paulo: Ed. RT, 2023. p.55 e ss. 

[2] Os termos são utilizados ao longo do presente artigo como sinônimos, em que pese seu emprego doutrinário nem sempre flua para o mesmo sentido.

[3] Veja-se, de modo ilustrativo, recente audiência pública realizada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça orientada ao debate da matéria. O tema, ainda, foi posto em sequência de artigos trazidos no âmbito do ConJur, disponíveis nos seguintes links:  Em São Paulo, litigância predatória responde por 337 mil processos por ano – Consultor JurídicoConsultor Jurídico (conjur.com.br); Combate à litigância predatória opõe poder de cautela e limite da lei – Consultor JurídicoConsultor Jurídico (conjur.com.br); Para advocacia, combate à litigância predatória confunde papéis – Consultor JurídicoConsultor Jurídico (conjur.com.br).

[4] No ponto, sublinho interessante consideração que me foi apresentada por Leonardo Carneiro da Cunha ligada ao tema: ainda que o debate relacionado à “litigância predatória” e à sua rejeição venha avançando, a própria definição a respeito do que configuraria essa espécie de conduta ainda é porosa.

[5] Seria possível, por exemplo, que alguém nada soubesse sobre futebol, e apostasse na Nova Zelândia por se tratar de um país crescente e promissor. Também, que realizasse a aposta após ter acompanhado recentemente apenas um jogo — por coincidência, um amistoso no qual a Costa Rica obteve uma vitória acachapante.

[6] Exemplificativamente, veja-se o posicionamento hoje firmado pelo Superior Tribunal de Justiça segundo o qual, em medidas indenizatórias lastreadas em danos morais, a fixação de verba condenatória inferior àquela pleiteada (mesmo que de modo significativamente dissonante) não configuraria sucumbência recíproca. Como isso, cria-se um terreno problemático, agravado pela existência de situações nas quais se entende haver dano moral presumido. Nesses casos, não há qualquer estímulo para que o demandante não formule uma pretensão sensivelmente superior àquela que seria condizente com as circunstâncias do caso e com a boa-fé. Ver, assim, OSNA, Gustavo. Quem ameaça com bala de canhão é satisfeito por estilingada? Comentários ao REsp 1.837.386/SP. In. Revista dos Tribunais. v. 1047. São Paulo: Ed. RT, 2023. p. 359-377.

[7] Um bom exemplo é dado pela Lei da Ação Civil Pública, segundo a qual “em caso de litigância de má-fé, a associação autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente condenados em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos” (artigo 17). Evidentemente, a lógica dissuasiva do preceito pode ser significativa. Sobre o tema, valorizando o papel associativo na tutela coletiva (e, por isso, opondo-se à sua restrição ex ante), Gustavo Osna: A “litigância virtuosa” e a tutela coletiva – Consultor JurídicoConsultor Jurídico (conjur.com.br)

[8] É interessante notar que o próprio Código de 1939 já dispunha o que segue: “artigo 3º Responderá por perdas e danos a parte que intentar demanda por espírito de emulação, mero capricho, ou erro grosseiro. Parágrafo único. O abuso de direito verificar-se-á, por igual, no exercício dos meios de defesa, quando o réu opuzer, maliciosamente, resistência injustificada ao andamento do processo”; “Artigo 63. Sem prejuizo do disposto no artigo 3º, a parte vencida, que tiver alterado, intencionalmente, a verdade, ou se houver conduzido de modo temerário no curso da lide, provocando incidentes manifestamente infundados, será condenada a reembolsar À vencedora as custas do processo e os honorários do advogado. §1º Quando, não obstante vencedora, a parte se tiver conduzido de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo, o juiz deverá condená-la a pagar à parte contrária as despesas a que houver dado causa. §2º Quando a parte, vencedora ou vencida, tiver procedido com dolo, fraude, violência ou simulação, será condenada a pagar o décuplo das custas. §3º Si a temeridade ou malícia for imputavel ao procurador o juiz levará o caso ao conhecimento do Conselho local da Ordem dos Advogados do Brasil, sem prejuizo do disposto no parágrafo anterior”.

[9] Expondo nossa visão a respeito da temática, assim como a necessidade de que essas garantias sejam compreendidas de modo amplamente proporcional (ou, panproporcional), ver, OSNA. Gustavo.  Processo Civil, Cultura e Proporcionalidade: Análise Crítica da Teoria Processual. São Paulo: Ed. RT, 2017.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Mattos, Osna & Sirena Sociedade de Advogados e da Hedge Consultoria, professor dos programas de graduação e de pós-graduação Stricto Sensu em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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