Opinião

A "litigância virtuosa" das associações e a tutela coletiva

Autor

  • Gustavo Osna

    é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

18 de novembro de 2022, 20h24

Entre os diferentes debates relacionados ao processo coletivo, tem se tornado particularmente comum a menção a uma eventual "litigância predatória" por parte de associações civis. A questão parece dialogar com o receio de uma utilização frívola da tutela coletiva, e vem assumindo contornos usuais. Nesse sentido, de maneira recente e explícita, o próprio Conselho Nacional de Justiça estabeleceu, por meio de sua Portaria 250/22, Grupo de Trabalho voltado especificamente a "apresentar propostas para o enfrentamento da litigância predatória associativa".

Ainda que de maneira breve, os parágrafos a seguir procuram inverter essa lógica. Consideramos que a guinada é indispensável, por dois motivos centrais: 1) em nossa visão, o potencial risco imputado às associações não é mais significativo e não possui maior base empírica do que os benefícios decorrentes de sua atuação. Assim, partindo do mesmo caminho empregado para sublinhar sua "litigância predatória", é possível ressaltar sua "litigância virtuosa"; e, 2) além disso, o atual sistema brasileiro de processo coletivo já parece dispor de meios para lidar adequadamente com casos que configurem litigância frívola ou abusiva. Como consequência, se isso eventualmente não ocorre, o problema parece estar ligado à própria aplicação insuficiente desses mecanismos.

Iniciando pelo primeiro dos aspectos, consideramos, respeitosamente, que a crítica à atuação abusiva das associações, no palco do processo coletivo, não parece dispor de suficiente base concreta. E isso porque o argumento situado nessa trincheira, recorrentemente, encontra alicerce em um raciocínio casuístico e extremado: por se ter notícia de algumas medidas abusivas ou infundadas propostas por associações, toma-se essa realidade como regra; parte-se de alguns casos concretos para, por meio deles, sustentar-se a existência de uma baliza geral.

Em nossa visão, com vênia, essa espécie de premissa não se presta a uma real compreensão do modelo brasileiro de processo coletivo  e, muito menos, ao seu aprimoramento. Na realidade, exemplos providos de natureza extremada podem ser efetivamente identificados, mas nos dois lados do pêndulo. É sob esse ângulo que, ao mesmo tempo em que é possível colher no espaço forense casos que ilustrem uma "litigância predatória associativa", é viável identificar disputas que atestem uma utilização "virtuosa" da tutela coletiva pelo Terceiro Setor.

De fato, sem sequer ingressar na seara consumerista (em que essa atuação proativa e seus efeitos são recorrentes), a realidade brasileira é rica em imagens que poderiam ser postas nesse prato oposto da balança. Ilustrando a questão, elementos como a veiculação de debate voltado à reestruturação das atividades do Inpi ou como a busca pela despoluição e pela tutela da integridade ecológica da Lagoa da Conceição foram recentemente conduzidos à apreciação jurisdicional graças ao impulso da sociedade civil organizada. Nessa composição, seria possível arguir: essa espécie de litigância virtuosa não excede as eventuais medidas temerárias, frívolas ou predatórias? O valor público agregado pela legitimidade ativa conferida às associações não corresponde a um elemento pertinente, a ser mantido no tabuleiro da tutela coletiva [1]?

Em relação à primeira das indagações, desconhece-se a existência de estudo que já tenha sido capaz de oferecer dados satisfatórios ligados ao tema. Mais que isso, a própria viabilidade dessa aferição soa, em ampla medida, questionável  dado o significativo, e aqui admitido, grau de subjetivismo inerente à oferta de algum dos rótulos a uma determinada demanda.

De todo modo, e já emoldurando o segundo questionamento, o que consideramos desde já perceptível é que o sistema brasileiro de legitimidade associativa não parece, hoje, apresentar um funcionamento geral que destoe da própria fotografia geral de nosso processo. Como já defendido por Edilson Vitorelli, parece recomendado que, ao invés de se pensar em exemplos caricatos, busque-se uma compreensão geral atinente ao modelo [2]. Isso, sem prejuízo de ajustes constantes e necessários [3].

Não bastasse esse aspecto, também se sinalizou acima que, mesmo nas hipóteses em que a litigância associativa coletiva possa ser tida como predatória, a aplicação de vias processuais já existentes seria apta a desempenhar um importante papel de controle e de dissuasão. Isso, sem sequer esmiuçar o reconhecimento, já chancelado pelo Superior Tribunal de Justiça, da inaceitabilidade em nosso sistema do abuso ou do assédio processual [4]. Exemplos inadequados eventual e pontualmente existentes, então, podem vir sendo estimulados, antes de tudo, pela subutilização desses instrumentos [5].

Para compreender esse aspecto, perceba-se que uma primeira circunstância na qual se poderia pensar em um uso potencialmente predatório de ações coletivas, por associações civis, seria a propositura pulverizada (ainda que por diferentes entes) de medidas ligadas a um mesmo problema. Como exemplo, basta imaginar que, a partir de uma cobrança ou de uma prática adotada repetidamente em face de seus consumidores, determinada companhia passasse a ser demandada em diferentes ações civis públicas pautadas no mesmo suporte fático.

Ora, caso seja essa a situação, o próprio tratamento a ser conferido à litispendência no processo coletivo poderia dar conta do problema [6]. Não bastasse, mesmo quando inexistente real subsunção objetiva entre as medidas, haveria aqui um campo fértil para a densificação da cooperação jurisdicional e da concertação de atos  em fluxo promissor que vem sendo notado pelo próprio CNJ [7].

Por outro lado, o exemplo aparentemente mais usual de um potencial abuso praticado por associações parece dialogar com uma segunda realidade: a propositura de medidas coletivas que, individualmente consideradas, não apresentam maior fundamento ou maior seriedade; de ações com conteúdo frívolo, capazes de causar prejuízo e desequilíbrio à parte ré e de onerar indevidamente o sistema de justiça.

Tomando como premissa essa segunda hipótese, todavia, a percepção previamente trazida, ligada à suficiência do atual ordenamento brasileiro, parece igualmente correta. Afinal, o próprio microssistema de tutela coletiva prevê a possibilidade de punição do ente (e de seus diretores) na hipótese de atuação processual desprovida de boa-fé [8]. Do mesmo modo, o regime é fomentado pelo Código de Processo Civil de 2015, que estabelece a boa-fé como guia central de nosso processo  rechaçando, com isso, a conduta adotada sob lentes diversas [9].

Por fim, e em qualquer das pontas, há ainda outro elemento nem sempre debatido ao se questionar a temática do processo e do seu uso abusivo: o fato de, no apagar das luzes, a própria exigência de capacidade postulatória dever se prestar, entre outras funções, à garantia de um filtro ético na arena processual. A previsão constitucional de que o advogado é "indispensável à administração da justiça" deve irradiar sua essencialidade para uma boa utilização desse palco. Analisar eventuais abusos praticados na seara coletiva, assim, impõe uma reflexão quanto ao fato de esse papel de gatekeeper estar ou não sendo devidamente cumprido  justificando, em caso negativo, seu aprimoramento.

Enfim, em sede de conclusão, não se busca aqui questionar que há espaço para aprimoramento do processo coletivo brasileiro. Pelo contrário, esse flanco é evidenciado pelo exame de iniciativas como o PL nº 1.641/21, oriundo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), que parece dar importantes passos para esse fim.  O que se defende é que esse caminho não deve passar pelo ataque ao papel desempenhado nesse campo pelas associações, ou pela construção de barreiras que tornem sua atuação coletiva uma tragédia dos anticomuns [10]. Em nossa visão, agir nesse sentido corresponderia a, para solucionar gargalos pontualmente existentes, criar um problema ainda maior.

 


[1] Apreciando a questão, ver, por todos, MICELI, Thomas J. The social versus private incentive to sue. In. SANCHIRICO, Chris Willam (coord). Procedural Law and Economics. Cheltenham: Edward Elgar, 2012.

[2] A construção foi exposta em palestra proferida no âmbito do III Congresso Internacional de Coletivização e Unidade do Direito, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) em homenagem a Sérgio Cruz Arenhart, em abril de 2022.

[3] Nesse ponto, expondo algumas das propostas e dos desafios necessários ao aprimoramento da tutela coletiva, ver, ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Curso de Processo Civil Coletivo. 4 ed. São Paulo: Ed. RT, 2022.  

[4] REsp 1817845/MS, relator (a): ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, relator (a) p/ Acórdão: ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 10/10/2019.

[5] Percebendo esse tipo de impacto comportamental, ver por todos, na doutrina brasileira, WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2019. ABREU, Rafael Sirângelo de. Incentivos Processuais. São Paulo: Ed. RT, 2020. MAZZOLA, Marcelo. Sanções Premiais no Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2022.

[6] Ver, sobre o tema e sobre os demais fatores ligados à relação entre demandas coletivas, ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Curso de Processo Civil Coletivo. 4 ed. São Paulo: Ed. RT, 2022. 

[7] Nesse sentido, veja-se que o Conselho Nacional de Justiça tem adotado inúmeras iniciativas ligadas ao ponto  como é cristalizado pela sua Resolução nº 350/2020 e por medidas posteriores vocacionadas à ampliação do seu alcance, como é o caso do Ato Normativo 0007726-20.2021.2.00.0000. Ainda, identificando a própria concertação como uma técnica de tutela coletiva, ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Curso de Processo Civil Coletivo. 4 ed. São Paulo: Ed. RT, 2022. 

[8] Preceitua a Lei de Ação Civil Pública que, "em caso de litigância de má-fé, a associação autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente condenados em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos" (artigo 17).

[9] A questão é explicitada pelo artigo 5º do Código de Processo Civil, segundo o qual "aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé". A respeito do aspecto, e das suas diferentes dimensões de aplicação, ver DIDIER JR., Fredie. Princípio da Boa-fé Processual no Direito Processual Civil Brasileiro e Seu Fundamento Constitucional. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro. v.70, 2018.

[10] Ver, sobre o tema, BUCHANAN, James M. YOON, Yong J. Symmetric Tragedies: Commons and Anticommons. Journal of Law and Economics. v.43, 2000.  

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Mattos, Osna & Sirena Sociedade de Advogados e da Hedge Consultoria, professor dos programas de graduação e de pós-graduação Stricto Sensu em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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