Terrorismo é slogan que sempre se prestou a justificar a política externa dos EUA

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12 de novembro de 2023, 15h15

“…o raciocínio nunca fará um homem corrigir uma opinião errônea que ele nunca adquiriu por raciocínio.” (Jonathan Swift)[1]

O escritor francês Louis Jacob [2], ao estudar a repressão jacobina durante a Revolução Francesa, demonstrou que existe um método muito útil para o Estado coonestar as suas mais abomináveis atrocidades: o slogan. O slogan é algo destituído de conteúdo, mas com forte conotação pejorativa, que logo suscita as paixões partidárias mais ferrenhas. Em alguns casos, o seu propósito é suscitar o medo. Com rótulos impactantes e chavões repetidos ad nauseam, consegue-se incutir na sociedade a necessidade não apenas da repressão estatal, mas da repressão implacável e impiedosa.

O terrorismo é um slogan que sempre se prestou a justificar a desprezível política externa norte-americana. “Uma política externa que endossa intervenção e ocupação mundiais”, denuncia o ex-senador norte-americano Ron Paul, “requer que o povo viva em perpétuo medo de supostos inimigos”. [3]

Ter um inimigo perpétuo é fundamental justificar a repressão estatal, interna e externamente. Entender o terrorismo, ou aquilo que se rotula como terrorismo, exige muito mais do que essa análise tosca e maniqueísta que procura atribuir aos povos árabes e de religião muçulmana a eterna condição de vilões. “Se quisermos por fim à violência”, pondera Ron Paulo, “é certo que devemos procurar saber o que deu origem a ela, especialmente se a violência é de natureza política.” [4]

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O judicioso Locke foi quem, com precisão cirúrgica, conseguiu entender esse tipo de violência, cuja origem não é senão a própria repressão do Estado. Diz o filósofo inglês, com uma linha de raciocínio impecável:

Governos justos e moderados são por toda parte tranquilos, por toda parte seguros. Mas a opressão fermenta, e faz os homens lutarem para se livrar de um jugo incômodo e tirânico. Sei que sedições são frequentemente levantadas usando a religião como pretexto, mas isso é tão verdadeiro quanto o fato de que, por causa da religião, os súditos são muitas vezes maltratados, vivendo de forma miserável. Creia-me, as agitações que se produzem não derivam de um ânimo peculiar desta ou daquela igreja, mas da disposição comum a toda a humanidade, quando está a grunhir sob um grande peso, de tentar naturalmente se livrar do jugo que pesa sobre seu pescoço. Suponha-se que esses negócios de religião fossem deixados de lado e que alguma outra distinção fosse feita entre os homens, baseada em suas compleições, formas e feições, de modo que, como exemplo, aqueles que têm cabelos pretos ou olhos cinzentos não tivessem os mesmos privilégios de outros cidadãos, que a eles não fosse permitido comprar ou vender ou ganhar a vida por sua profissão, que os pais não tivessem direito de governar e educar seus filhos, que vivessem excluídos dos benefícios da lei ou então só encontrassem juízes parciais: há alguma dúvida de que essas pessoas, discriminadas das outras pela cor de seus cabelos e olhos e unidas por uma perseguição comum, seriam tão perigosas para o magistrado como aquelas que se associam simplesmente por causa da religião? Alguns procuram companhia para negócios e lucros, já outros, na falta do que fazer, têm seus clubes, onde bebem vinho. A vizinhança reúne alguns, a religião outros. Mas há somente uma coisa que junta as pessoas em comoções sediciosas, e esta coisa é a opressão. [5]

Se um Estado conduz e mantém uma política, interna e/ou externa, de perseguição e supressão de direitos contra um determinado grupo de pessoas, escolhendo uma determinada característica que essas pessoas têm em comum como critério de perseguição, então essa própria condição que elas têm em comum tornará o motivo da união delas em “grupos sediciosos”.

Peguemos o exemplo de Locke: pessoas de olhos cinzentos. Note-se que essas pessoas irão então abstrair todas as eventuais diferenças que, em uma situação ordinária, as manteriam afastadas umas das outras, para levarem em conta tão somente aquele aspecto que o governo se valeu para persegui-las e oprimi-las, e por esse aspecto se associarão para lutarem contra a opressão. No exemplo dado, todos as pessoas que têm “olhos cinzentos” irão se unir por esse detalhe e desconsiderarão todo o resto: palmeirenses de olhos cinzentos, corintianos de olhos cinzentos, judeus de olhos cinzentos, muçulmanos de olhos cinzentos, advogados, médicos, motoqueiros, professores, brancos, negros, italianos, brasileiros, libaneses, suecos, alemães, todos que têm olhos cinzentos se unirão contra a opressão que lhes é imposta.

Não fosse essa perseguição “por ter olhos cinzentos”, muito provavelmente o palmeirense e o corintianos jamais pensariam em sentar um do lado do outro; mas a opressão que sofrem os uniu. Agora troque “olhos cinzentos” por “árabes”, “muçulmanos”, “palestinos” etc., e a causa do dito terrorismo, que poderíamos muito bem chamar de reivindicação por meio de violência política, começará a ficar mais clara. Não justificada, certamente, pois nada justifica o assassinato de inocentes, nem mesmo o uso da violência para reclamar direitos. Mas é justamente por chegar a esse extremo é que a reivindicação de direitos, ou, por outras palavras, a libertação da opressão, acaba explicando essa violência política.

A análise do terrorismo por esse ângulo é muito mais honesta, muito mais humana, e é muito mais elucidativa do problema do que simplesmente sair proferindo slogans e rotulando árabes e muçulmanos de terroristas. Trata-se de realmente querer entender, e acima de tudo solucionar o problema da violência política, pois, como pondera Ron Paul, “a maior parte do terrorismo não é irracional, mas orientado por queixas bem específicas”. [6] A presença, por exemplo, de militares dos Estados Unidos nas terras desses grupos certamente é uma dessas queixas (aliás estamos esperando até hoje fotos das armas de destruição em massa dos iraquianos…).

A violência política é aquela que o Estado combate de maneira mais impiedosa, pois essa violência costuma ser voltada precisamente a demonstrar algum tipo de violência ou opressão do próprio Estado, ou seja, algum tipo de reivindicação de justiça e direitos por parte dos oprimidos. Se estes últimos não receberem algum tipo de apoio, moral e material — da comunidade internacional, por exemplo —, dificilmente aquilo que eles procuram revelar com a sua violência política será percebido e corrigido.

“A insurreição e a repressão”, diz Victor Hugo, “nunca lutam com armas iguais”. [7] O Estado sempre tem a vantagem no uso da violência (até porque a monopoliza, não?), não só a vantagem material ou numérica, mas até mesmo a vantagem linguística: o Estado tem a vantagem de poder rotular — e coonestar — a sua violência de modo que ela não apareça aos olhos de terceiros como violência: estrito cumprimento do dever legal, legítima defesa, presunção de veracidade; e o contrario sensu disso é obviamente a rotulação pejorativa da violência daqueles que lhe opõe resistência: terrorismo, anarquismo, comunismo etc.

Nesse contexto, a tipificação do crime de terrorismo nada mais é do que a consagração dessa vantagem do Estado de rotular os insurrectos. A tipificação nada resolve o problema do terrorismo; antes, o oculta. Aliás, diz-se que o próprio Direito Penal não resolve as causas de problema nenhum, pois, como bem escreve Carnelutti, “o Direito Penal, à diferença desses outros institutos, combate-o diretamente, ou seja, não operando sobre as causas do delito senão sobre o delito mesmo“. [8]

Os penalistas de hoje [9] adoram comentar novos tipos penais. Adoram esmiuçar as condutas tipificadas. Parecem aqueles místicos de outrora que decifram textos ocultos e desenterrados. Hoje os penalistas mais justificam o poder punitivo do que o limitam, como deveria ser. E a lei de terrorismo, que é uma lei que antecipa a punibilidade dos atos preparatórios, que criminaliza o “integrar” um determinado grupo (o que estimula um Direito Penal do Autor), é um exemplo sensível disso.

Não justifico, em hipótese alguma, a violência contra inocentes, muito menos crianças e civis indefesos. Ocorre que, enquanto o dito terrorismo continuar a ser abordado dessa maneira puramente panfletária e partidarizada, para não dizer desonesta, dificilmente o conflito que estamos testemunhando será resolvido, no presente e no futuro. Aliás, a própria permanência desse conflito por tanto tempo já é demonstração cabal de que não se tem tratado esse assunto com a seriedade que ele merece.


[1] SWIFT, Jonathan. Panfletos satíricos, Trad. Leonardo Fróes, Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 461.

[2] JACOB, Louis. Les suspects pendant la Révolution: 1789-1794, Libraire Hachette, 1952, p. 7.

[3] PAUL, Ron. Definindo a liberdade, Trad. Tatiana Villas Boas Gabbi e Caio Márcio Rodrigues, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2013, p. 37.

[4] Op. cit., p. 268.

[5] LOCKE, John. Cartas sobre a tolerância, Trad. Ari Ricardo Tank Brito, São Paulo: Hedra, 2010, p. 83.

[6] Op. cit., p. 268.

[7] HUGO, Victor. Os miseráveis, Vol. II, Trad. Regina Célia de Oliveira, São Paulo: Martin Claret, 2007, p.379.

[8] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Trad. Francisco José Galvão Bruno, Campinas-SP: Bookseller, 2004, p. 72.

[9] Aliás não só os de hoje, se tomarmos o testemunho de MONTESQUIEU: “É tão grande a abundância de leis adotadas, e, por assim dizê-lo, naturalizadas, que por igual oprimem a justiça e os juízes. Mas estes volumaços de leis nada são comparados com o tremendo exército de glosadores, comentadores e compiladores; personagens não menos fracos por sua falta de razão que fortes pela superabundância de seus escritos.” (MONTESQUIEU. Cartas persas, Trad. Mário Barreto, São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 148)

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