O disfarce do camaleão: as teorias maior e menor do IDPJ

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8 de novembro de 2023, 6h30

Na antiguidade, o réptil camaleão era conhecido por ser um lagarto “coberto de pequenas estrelas”, no latim chamado de stellio [1]. Naquela época foi o símbolo da fraude e da dissimulação por conseguir mudar de cor e passar despercebido num ambiente por essa habilidade de disfarce.

​Ainda, na beleza e na etimologia das palavras, de acordo com o verbo respondere, do latim responsus,  palavra responsabilidade significa “responder por inteiro”, sinônimo de comprometer-se ou assegurar. Levando em consideração esse aspecto, não menos importante é o direito para o tema em questão: desconsideração da personalidade jurídica.

Basicamente, é com esse instituto processual civil que se objetiva o afastamento temporário da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para que os bens dos sócios (pessoas físicas) respondam pelas dívidas da empresa (pessoa jurídica).

A desconsideração da personalidade jurídica se deu em meados dos anos 1950, na Alemanha, com a publicação do trabalho de Rolf Serick [2], um professor e jurista de Direito da faculdade de Heidelberg [3], morto em 2020. Já no Brasil, o incidente foi introduzido conceitualmente em meados dos anos 1960 pelo doutrinador Rubens Requião [4].

Foi em 2015, com o Novo Código de Processo Civil (CPC) — Lei 13.105/2015, que ficou positivado esse incidente processual específico, muito embora se relacione também com os demais diplomas: Código Tributário Nacional (CTN) — Lei 5.172/1966 , na Lei de Infrações da Ordem Econômica — 12.529/2011, no Código de Defesa do Consumidor (CDC) — Lei 8.078/1990, mais recentemente na Lei da Liberdade Econômica —  Lei 13.874/2019, não ignorando legislações mais esparsas e demais.

De acordo com os artigos 133-137 do CPC, é possível que o incidente da desconsideração ocorra em qualquer momento processual, o que já facilita o desenrolar do resgate de um crédito a favor do credor. Uma vez aceita e aplicada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se posicionou no sentido de que não há o que se argumentar sobre “limite da responsabilização dos sócios na proporção de suas quotas, visto que todos os envolvidos na conduta são responsabilizados pela dívida existente”.

São duas as teorias em relação a desconsideração da personalidade jurídica:
1 – Teoria maior: mais utilizada e com doutrina majoritária, adotada pelo Código Civil (Lei 10.406/2002), com fundamento no artigo 50 (in verbis). Pressupostos: exige que, além do prejuízo financeiro/material, tenha ocorrido desvio de finalidade ou confusão patrimonial entre a empresa e a figura dos sócios.    

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.           
§1°. Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§2°. Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:      
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;        
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e               
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.     
§3°. O disposto no caput e nos §§ 1° e 2° deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§4°. A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.             
§5°. Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.”

Características mais detalhadas dos pressupostos:
A) Desvio de finalidade: consiste na desvirtuação da personalidade jurídica legalmente conferida à sociedade empresarial por ato abusivo dos direitos inerentes à personalidade jurídica de modo a propositadamente lesar o terceiro interessado. Uma espécie de fraude pela utilização ilícita da sociedade empresária como subterfúgio para ocultar bens e deixar de cumprir com suas obrigações.

A Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) conceituou o desvio de finalidade como “uma utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”.   

B) Confusão patrimonial: consiste em atos da sociedade ou de seus sócios (incluindo outras pessoas jurídicas) em que não há clara delimitação dos bens ativos e passivos da empresa, acarretando numa utilização indiscriminada dos bens por ambas as partes.

A Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) conceituou a confusão patrimonial como “uma ausência de separação de fato entre os patrimônios caracterizada por: (i) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador; (ii) transferência de ativos e passivos sem efetivas contraprestações, exceto de valor proporcionalmente insignificante e (iii) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”.  

2 – Teoria menor: com doutrina minoritária, adotada pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), com fundamento no artigo 28 (in verbis), tal teoria é restrita ao conceito de responsabilidade objetiva em relações de consumo e no direito ambiental. Pressuposto: exige apenas a comprovação do prejuízo financeiro/material suportado pelo credor. Ou seja: é uma teoria pró-credor!

Nesse sentido é interessante observar que enquanto o Código Civil e o sistema judiciário brasileiro (em sentido lato, até por herança do direito romano-germânico) tende a favorecer o devedor, essa teoria tende a ajudar o credor no ordenamento jurídico. Assim, o Código de Defesa do Consumidor é um dos poucos diplomas brasileiros diretamente pró-credor.

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.     
§1°. (Vetado).  
§2°. As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§3°. As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.   
§4°. As sociedades coligadas só responderão por culpa. 
§5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

A aplicação da teoria menor e o precedente do Recurso Especial 279.273-SP [5]:
“Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores” (trecho do julgado em que claramente não se utiliza da aplicação da teoria majoritária/maior, excluindo aqui a necessidade de provar desvio de finalidade ou confusão patrimonial).

Em uma típica relação de consumo pautada numa ação civil pública envolvendo um shopping center em Osasco (SP), a 3ª Turma do STJ aplicou a teoria menor com fulcro no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor enfatizando que a questão envolveu não somente o prejuízo material aos consumidores e a toda a cadeia de consumo deles decorrentes, incluindo a reparação de prejuízos materiais e morais aos familiares das vítimas em situação onde considerou o interesse coletivo sobre particular da empresa, além de ressignificar a questão como um restabelecimento das ordens social e moral.

No julgado, o Ministério Público do Estado de São Paulo propôs ação civil pública no intuito de: “… a reparar os danos morais e/ou patrimoniais sofridos por todas as vítimas em decorrência do acidente ocorrido aos 11 de junho de 1996 no […], ressarcindo as vítimas, respectivos cônjuges, sucessores e dependentes, mediante indenização, cuja extensão deverá ser apurada em liquidação de sentença, a ser promovida pelos interessados e legitimados (art. 97 do CDC [6]); bem como a pagar todas as verbas da sucumbência”.

Em sentido oposto, os empresários alegaram excludente de responsabilidade atribuindo o acidente a um problema de construção, sugerindo culpa exclusiva de terceiro. O recurso especial não foi conhecido, mas garantido aos sócios a ação regressiva contra os responsáveis pelo vício de construção causador do dano, enfatizando que seria obrigação da sociedade empresária (e consequentemente dos sócios) garantir um ambiente seguro para a relação de consumo entre as partes.

Abaixo, reprodução em parte do argumento utilizado: 

“Os apelantes apegam-se agora na excludente de responsabilidade prevista no art. 14, § 3º, inciso II, ou seja, culpa exclusiva de terceiro. Isto porque a causa real e específica da tragédia estaria nos vícios de construção, de fiscalização de obra e de fornecimento de GLP e respectiva assistência técnica. Entendem os apelantes que não puderam fazer prova desses fatos, os quais, aliás, seriam suficientes para afastar a procedência da ação” (fl. 2.016/2.017, 11º vol.) 
“As vítimas são consideradas consumidoras porque convidadas a entrar num ambiente de compras e pertencente e administrado pelas rés. Evidente o fornecimento de serviços relativos ao lazer, à diversão, à oportunidade de compras. Nesse ambiente existem vias e praças, que não são dos lojistas nem do Poder Público. São do próprio shopping. Esses serviços deviam ser fornecidos em condições de segurança, e não o foram. Essa segurança devia ser prestada pelas rés, indiferente e inócuo – nas relações entre vítimas e réus – procurar terceiros, eventuais causadores, ou coparticipantes do evento danoso.”

Conforme se extrai da definição utilizada pela ministra Nancy Andrighi, comparando as duas teorias sobre a desconsideração da personalidade jurídica:

“A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se aqui que além da prova de insolvência ou a demonstração do desvio de finalidade ou confusão patrimonial”.
“A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, pois o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou a pessoa jurídica, mas pelos sócios e administradores, ainda que demonstrem conduta administrativa proba.”

Opostos complementares sem romantismo: sobre a desconsideração inversa da pessoa jurídica
Enquanto o incidente de desconsideração da personalidade jurídica visa desconsiderar a empresa para atingir diretamente o patrimônio dos sócios, a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica é um instrumento aplicável de forma “inversa”, isto é, quando há um contexto em que se necessita invadir o patrimônio da empresa (pessoa jurídica) quando a pessoa física do sócio “esvazia” o seu patrimônio pessoal. O intuito é o de responder por dívidas que não são da empresa, mas sim dos sócios.

Nesse sentido, é requisito que haja uma comprovação de que a pessoa física do sócio está em abuso da condição de sócio (ou seja: esconde seu patrimônio pessoal através da empresa), confundindo credores. 

“No Brasil, atribui-se ao Acórdão de Relatoria do Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Caldas, do TJ-SP, no julgamento do AI 1.198.103-0/0 (2008) a primeira aplicação inversa do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. In casu, desconsiderou-se a personalidade da pessoa natural, sócio da empresa, para atingir o patrimônio da pessoa jurídica, ante a presenta dos requisitos autorizadores da desconsideração ‘clássica’, ex vi do art. 50 do Código Civil” [7].

O Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105/2015), evidenciou a desconsideração inversa da personalidade jurídica no artigo 133, §2°, abaixo reproduzido:

“Art. 133. incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. 
§2°. Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.”

Podendo ser citado tanto o sócio quanto a pessoa jurídica. 

Outros paralelos e conclusão
No Brasil, não são poucos os processos que movimentam o judiciário no famoso “ganhou, mas não levou”, quase como se valesse a pena ser (ou parecer) insolvente/devedor ou uma lógica em zigue-zague difícil de explicar. Tais institutos são (ou parecem ser) uma forma do judiciário atribuir alguma rigidez ou busca por efetividade ampliando formas de cobrança, já que, de modo deliciosamente disfarçado ou de forma absurdamente estranha ainda estamos em um ritmo tartaruga, onde o “lagarto coberto por pequenas estrelas” é, em essência, um país pró-devedor. 

[1] SALLES, Manoel Whitaker. Dentro do dentro: os nomes das coisas. Ed. Mercuryo, 2002. p.95.

[2] https://de.wikipedia.org/wiki/Rolf_Serick.

[3] Heidelberg, cidade localizada às margens do rio Neckar, no sudoeste da Alemanha, é conhecida pela respeitada Universidade de Heidelberg, fundada no século XIV.

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Rubens_Requi%C3%A3o

[5] STJ, REsp 279.273/SP, rel. ministro Ari Pargendler, p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 04.12/2003, DJ 29.03.2044, p. 230.

[6] Art. 97, CDC. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82.

[7] SABINO, Eduardo. A Teoria da Desconsideração (inversa) da personalidade jurídica à luz do CPC. CONJUR, 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-30/eduardo-sabino-desconsideracao-inversa-personalidade-juridica. Acesso em outubro de 2022. 

Autores

  • é advogada, autora dos livros "Tecla Sapiens: neurociências para todos" (Ed. Curt Nimuendajú, Campinas, 2013), escrito em coautoria, e "A Tutela dos Direitos nas Infrações Cibernéticas: lacunas de impunidade entre o tecnológico e o jurídico".

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