Garantias do Consumo

Constitucionalidade da regulação de aditivos em produtos de tabaco

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8 de novembro de 2023, 8h00

Em 2018, seis anos após a publicação da Resolução de Diretoria Colegiada 14/2012, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula o uso de aditivos, como os de sabor e aromas, em produtos de tabaco, o plenário do Supremo Tribunal Federal derrubou a liminar que suspendia a sua aplicação no território nacional.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.874, em cujos autos tinha sido concedida a liminar, em 2013, foi proposta pela Confederação Nacional da Indústria e visava a declaração de inconstitucionalidade artigo 7º, III e XV, da Lei nº 9.782/1999, além de, por arrastamento, como pedido sucessivo, a declaração de inconstitucionalidade de artigos da RDC 14/2012 por suposta violação à livre iniciativa (artigo 170 da Constituição) e ao princípio da legalidade (artigo 5, II, e artigo 37, caput, ambos da CF).

Em suma, a CNI pretendeu a declaração de inconstitucionalidade da competência da Anvisa para proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde, o que afetaria não só os produtos de tabaco, mas todos os outros produtos regulados pela agência, como agrotóxicos.

A ADI 4.874 foi julgada improcedente. No que toca à competência da Anvisa (artigo 7º, III e XV, da Lei nº 9.782/1999), o resultado foi pela improcedência por 9 votos a 1, o que impõe efeito vinculante à decisão nesse ponto. Com relação aos artigos da RDC 14/2012, o resultado foi empate em 5 votos, o que garantiu a constitucionalidade da norma atacada, sem, todavia, emprestar efeito vinculante ao acórdão do STF nesse quesito. Ressalte-se que o total de dez votos, não de 11, deve-se ao fato de que o ministro Luís Roberto Barroso declarou-se impedido para julgar, tendo em vista já ter dado parecer jurídico sobre a temática, antes de se tornar ministro do STF.

A constitucionalidade da RDC 14/2012, reconhecida pelo plenário do STF, não foi suficiente, entretanto, para obstar outras ações em curso pelo Brasil. Por conta desse fato, liminares concedidas em sede de controle difuso de constitucionalidade permaneceram em vigor, apesar da importante decisão do STF, em 2018.

Agora, e é esse fato que move o presente artigo, está-se às portas de um novo julgamento sobre o mesmo tema no STF, agora no formato de Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.348.238-DF 1.348.238, com repercussão geral (Tema 1252).

Nesse ponto, importante começar por um fato inatacável: a RDC 14/2012 é essencial para que o Brasil cumpra a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT, tratado internacional que ratificou, em 2 de janeiro de 2005, conforme Decreto Presidencial nº 5.658/2006.

Nesse sentido, precisa ser dito que a RDC 14/2012 é decorrência do compromisso internacional assumido pelo Brasil para defesa de direitos humanos de todas e todas que vivem no Brasil.

Tal compromisso se funda na efetiva ligação entre cumprimento da Constituição do Brasil e os Tratados Internacionais, além de ser estampada no Preâmbulo da CQCT, nos seguintes termos: “Recordando ainda o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde, que afirma que o gozo do mais elevado nível de saúde que se possa alcançar é um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, ideologia política, condição econômica ou social;”

Assim, confirma-se que a CQCT visa a proteção dos direitos fundamentais, o que reforça a importância de se fazer cumprir internamente as normas da Convenção Quadro de Controle do Tabaco, pois faz parte do bloco de constitucionalidade do ordenamento jurídico brasileiro.

Declarar a inconstitucionalidade da RDC 14/2012 é uma afronta ao compromisso internacional vinculante que o Brasil firmou. Uma decisão que afasta a RDC 14/2012 do nosso ordenamento representará, também, um retrocesso no campo da promoção da saúde, abrindo caminho para que crianças comecem a fumar e passem a se tornar viciadas em produtos comprovadamente nocivos à saúde. Vale lembrar que os aditivos, restringidos pela RDC 14/2012, tornam o tabaco mais atraente e palatável e fazem que se inicie a experimentação e o vício em idades cada vez menores, fato que fez o tabagismo ser classificado como doença pediátrica pela Organização Mundial de Saúde. Nesse sentido, manter a constitucionalidade da RDC 14/2012 da Anvisa é garantir a proteção inclusive de crianças e adolescentes, que não vão se sentir atraídos pelo tabaco por conta desse ter sabores variados, o que fará que elas se tornem viciadas cada vez mais cedo.

Em suma, para proteger o direito à saúde das pessoas que estão no Brasil, nos moldes estabelecidos pela CQCT, o Brasil precisa da RDC 14/2012, da ANVISA, um órgão regulador de produtos de tabaco do Poder Executivo, tendo em vista que, no país, reconhece-se que tratado internacional tem, no mínimo, força de lei federal. Somente assim o Brasil poderá cumprir a CQCT e dar amparo a quem quer ter seus direitos protegidos diante das violações causadas pelo consumo precoce do tabaco e que tornou o tabagismo uma doença pediátrica, atingindo pessoas cada vez mais jovens. Ao restringir os aditivos do tabaco, a RDC 14/2012 pavimentou o caminho de proteção dos direitos fundamentais de todas e todos.

Olhando especificamente para a decisão proferida na ADI 4.874, destaca-se que o STF já assentou entendimento de que o artigo 7º, incisos III e XV, da lei 9782 é constitucional, superando, assim, o debate sobre a competência da Anvisa para proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde.

Na ADI 4.874, houve debate sobre uma suposta violação à livre iniciativa, porém, tal tese foi afastada, como indicado no item 7 da Ementa, nos seguintes termos:

“7 . A liberdade de iniciativa (artigos 1º, IV, e 170, caput, da Lei Maior) não impede a imposição, pelo Estado, de condições e limites para a exploração de atividades privadas tendo em vista sua compatibilização com os demais princípios, garantias, direitos fundamentais e proteções constitucionais, individuais ou sociais, destacando-se, no caso do controle do tabaco, a proteção da saúde e o direito à informação. O risco associado ao consumo do tabaco justifica a sujeição do seu mercado a intensa regulação sanitária, tendo em vista o interesse público na proteção e na promoção da saúde.”

Dessa forma, o STF se mantém firme aos seus precedentes. De fato, a Suprema Corte reiteradamente assevera que as intervenções indiretas na economia são constitucionais e não representam violação ao princípio da livre iniciativa, como feito na  ADI 319-4 (DF), que teve brilhante voto proferido pelo ministro Celso de Mello, nos seguintes termos:

“Todas as atividades econômicas estão sujeitas à ação fiscalizadora do Poder Público. O ordenamento constitucional outorgou ao Estado o poder de intervir no domínio econômico (…). A liberdade econômica não se reveste de caráter absoluto, pois seu exercício sofre, necessariamente, os condicionamentos normativos impostos pela Lei Fundamental da República. A própria noção de intervenção regulatória ou indireta do Estado, cuja prática legitima o exercício do poder de controle oficial de preços, constitui uma categoria jurídica a que não se tem revelado insensível o legislador constituinte brasileiro. Quaisquer que sejam as modalidades ditadas pelo sistema de controle oficial de preços ou qualquer que seja o momento em que esse sistema opere e se concretize (a priori ou a posteriori), as limitações que dele derivam, desde que fundadas na lei, incluem-se na esfera de abrangência constitucional do poder de intervenção regulatória do Estado. Desse modo, inexiste apoio jurídico, em nosso sistema constitucional, para a tese que pretende ver subtraídas, à ação regulatória do Estado, as atividades empresariais de exploração econômica do ensino.”

E continua o ministro Celso de Mello:

“As atividades empresariais — qualquer que seja o campo em que se exerçam, inclusive na área de exploração econômica das atividades educacionais — não têm, nos princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência, instrumentos de proteção incondicional. Esses postulados – que não ostentam valor absoluto — não criam, em torno dos organismos empresariais, qualquer círculo de imunidade que os exonere dos gravíssimos encargos cuja imposição, fundada na supremacia do bem comum e do interesse social, deriva do texto da própria Carta da República. O princípio da liberdade de iniciativa não tem, desse modo, caráter irrestrito e nem torna a exploração das atividades econômicas um domínio infenso e objetivamente imune à ação fiscalizadora do Poder Público.”

Outro exemplo é a  ADI 1.950-3 (SP), em que o STF mais uma vez reafirmou a possibilidade de limitação à livre iniciativa. Nas palavras do ministro Eros Grau:

“É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema, o sistema capitalista, no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Muito ao contrário.”

Logo, não há como sustentar que haveria intervenção indevida na economia, sendo possível asseverar que restou incólume  o princípio da livre iniciativa, especialmente com relação à regulação de produtos de tabaco, posto que são nocivos à saúde, causam forte dependência, mais de 50 doenças e mortes precoces. Aliás, é esperado de uma agência reguladora que faça seu papel de, como seu nome diz, regulamentar o setor, como estabelecido em controle concentrado de constitucionalidade, na ADI 4.874.

Com base nisso, na decisão proferida na citada ADI, o STF reafirmou a competência normativa da Anvisa para “proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde”.

Para além disso, ressalte-se, como a regulação do uso de aditivos em produtos de tabaco, por meio da RDC 14/2012, está fundamentada no artigo 9º, da CQCT, que tem, no mínimo, status de lei ordinária, de acordo com o RE 466.343, cai por terra qualquer alegação de violação do princípio da legalidade, inscrito no artigo 5º, II, e no artigo 37, caput, da CF, valendo destacar que os demais princípios da administração pública, inscritos nesse último artigo, não foram afrontados pela RDC 14/2012.

Declarar inconstitucional a RDC é romper com o compromisso internacional assumido pelo país com a ratificação da CQCT, e também com os precedentes do STF, e isso não se espera da Corte, que tanto realiza pela proteção à saúde das pessoas, mormente como se viu durante a pandemia da Covid-19. Nesse ponto, vale lembrar que o tabagismo é reconhecido pela OMS como uma epidemia, responsável pela morte de mais de 8 milhões de pessoas no mundo por ano. As ações que se conectam com a efetivação da Convenção Quadro de Controle do Tabaco, como é o caso da  RDC 14/2012, fazem com que a contagem de mortos pelo tabaco não se alastre, fazem com que se impeça o desenvolvimento de doenças e, principalmente, impede que crianças e adolescentes se tornem dependentes do tabaco e venham a desenvolver doenças tabaco-relacionadas.

Em suma, a RDC 14/2012 é uma das muitas “vacinas” que temos para conter o avanço do tabagismo. Enquanto as vacinas nascem da pesquisa científica no campo da saúde, a RDC 14/2012, e toda a regulamentação de proteção frente ao tabagismo é fruto da construção normativa de proteção de direitos fundamentais.

Que o STF, mais uma vez, não permita que o negacionismo, disfarçado de proteção à liberdade, cause danos à saúde e faça que cada vez mais pessoas tenham de seus entes queridos apenas lembranças e fotos.

Que o valioso esforço regulatório brasileiro não seja em vão e que as presentes e futuras gerações sejam protegidas das estratégias de negócio da indústria do tabaco que buscam arrebanhar fumantes cada vez mais jovens.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professor-doutor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador Fapesp do projeto "Direito das migrações nos Tribunais - a aplicação Nova Lei de Migração Brasileira diante da mobilidade humana internacional".

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