Opinião

A "isenção" dos trabalhadores aposentados do recolhimento do FGTS

Autor

  • Almiro Eduardo de Almeida

    é juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Santa Cruz do Sul no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região professor universitário na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Unisc especialista em Direito do Trabalho pela Universidad de la República Oriental del Uruguay e especialista em Relações de Trabalho pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

8 de novembro de 2023, 7h00

Recentemente, o site oficial do Senado veiculou a notícia de que havia sido “aprovado projeto que isenta trabalhador já aposentado de recolher FGTS” [1]. A manchete poderia causar espanto por uma série de razões, desde a flagrante inconstitucionalidade da medida [2] até a mentira descarada de que, atualmente, o trabalhador, aposentado ou não, tem de recolher Fundo de Garantia.

​Como todos sabem, ou pelo menos deveriam saber, o FGTS — considerado um direito dos trabalhadores — foi criado como um dos mais graves golpes da ditadura militar contra a classe operária. Idealizado por Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, respectivamente ministros da Fazenda e do Planejamento do governo Castello Branco, o fundo foi uma das primeiras [3] medidas que, visando flexibilizar as relações de trabalho, na prática extinguiram direitos dos trabalhadores.

Com efeito, o FGTS foi criado em 1966 como uma forma de retirar do trabalhador o direito à estabilidade decenal, prevista no artigo 492 da CLT. Na época, o artigo 1º da Lei 5.107 dispunha expressamente que restava mantida a garantia de emprego prevista na Consolidação, “assegurado, porém, aos empregados o direito de optarem pelo regime do FGTS”.

Para aqueles empregados que “optassem” pelo novo regime, o empregador ficaria obrigado a recolher, todo mês, em uma conta vinculada ao trabalhador 8% da remuneração paga no mês anterior. Repita-se, a obrigação do recolhimento era e continua sendo do empregador, nada podendo ser descontado do trabalhador a tal título.

Ocorre que, na prática, as empresas passaram a condicionar a contratação de novos trabalhadores à “opção” pelo regime do FGTS. Nos círculos trabalhistas da época passou-se a gracejar que o Fundo não era opcional, mas “optatório“; um neologismo que demonstrava que a “opção” por parte do trabalhador que tivesse a intenção de ser contratado era, na realidade, obrigatória. Como isso, praticamente nenhum trabalhador mais foi contratado com a possibilidade de adquirir a estabilidade decenal prevista na CLT.

Com a redemocratização do Brasil e a promulgação de uma nova Constituição, carinhosamente apelidada de “Constituição Cidadã”, a esperança da classe operária poderia se renovar. A Constituição, que elevou os direitos dos trabalhadores ao patamar de direitos fundamentais, estendeu o direito ao FGTS a todos os trabalhadores urbanos e rurais (artigo 7º, III).

Diante disso, uma possibilidade de interpretação da norma constitucional poderia ser a de que os trabalhadores não mais precisariam “optar” entre o FGTS ou a garantia de emprego, ainda vigente na CLT. A opção não mais fazia sentido tendo em vista que, além de garantir o direito ao Fundo, a Constituição também assegurava a todos os trabalhadores urbanos e rurais, no inciso I do mesmo artigo, o direito à “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa”.

É certo que o texto constitucional exigia uma lei complementar para regulamentar o direito, tratando-se do que a doutrina convencionou chamar de norma de eficácia limitada. Ainda que não se atribua eficácia plena ao dispositivo, não se pode simplesmente destituí-lo de qualquer eficácia. Nesse sentido, José Afonso da Silva argumenta que todas as normas constitucionais, até mesmo aquelas com eficácia limitada, têm certa eficácia jurídica imediata, direta e vinculante, elencando, dentre outros, os seguintes casos: I – estabelecem um dever para o poder público e para o legislador ordinário, em especial; II – condicionam a legislação futura, com a consequência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; III – informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum; IV – constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; V – condicionam a atividade discricionária da administração e do Judiciário [4].

Não obstante tão lúcida lição, poder-se-ia argumentar que a CLT não poderia prever garantia de emprego por não se tratar de lei complementar, medida legislativa exigida pelo texto constitucional. Esse argumento, entretanto, já foi enfrentado – e afastado – pelo STF que entendeu que, mesmo tendo sido promulgado como lei ordinária, o CTN foi recepcionado pelas Constituições de 1967/69 e 1988 como lei complementar [5].

Não obstante, contrariando a melhor hermenêutica constitucional e a regra do in dubio pro operario, decorrência direta do princípio da proteção [6], a interpretação que a ampla maioria atribuiu ao dispositivo constitucional foi a de que, ao estender o direito ao FGTS a todos os trabalhadores, a Constituição Cidadã – aquela mesmo que colocou a garantia de emprego como direito fundamental – não recepcionou o artigo 492 da CLT, afastando definitivamente a possibilidade de aplicação da garantia decenal de emprego. Tal entendimento foi tão amplamente adotado que, em pouco tempo sequer tal garantia passou a ser questionada nos processos judiciais.

Passados trinta e quatro anos de sua existência, no ano de 2000, o FGTS foi estendido aos trabalhadores domésticos, dessa vez como uma opção dos empregadores. Ou seja, somente os empregadores domésticos “bonzinhos” que quisessem efetivar esse direito aos seus empregados, é que passariam a recolher os valores do Fundo. Tiveram que passar mais quinze anos para que a Lei Complementar 150/2015 assegurasse o FGTS como um direito efetivo aos trabalhadores domésticos.

Pois bem, passados mais de meio século desde o surgimento do instituto, no ano de 2023, surge uma nova proposta legislativa. De autoria do senador Mauro Carvalho Junior (União-MT), o Projeto de Lei 3.670/2023 visa retirar dos trabalhadores aposentados o direito ao FGTS. Aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado, o PL não deve sequer ser votado em Plenário, indo diretamente para a Câmara dos Deputados. Não obstante a relevância da medida, até o momento em que se escreve esse texto, apenas seis pessoas haviam votado na consulta popular que se encontra no site do Senado: três votos a favor e três, contra [7].

O que surgiu como uma medida política para retirada de um dos direitos mais importantes dos trabalhadores urbanos: a garantia da sua fonte de subsistência e de sua família; se transformou em um direito fundamental dos trabalhadores urbanos e rurais; há pouco tempo estendido também aos domésticos; agora corre sério risco de ser simplesmente extinto do ordenamento jurídico, pelo menos para os trabalhadores aposentados.

E o pior, tudo ocorre como se os trabalhadores estivessem sendo agraciados com menos um encargo. A publicação do Twitter oficial do Senado Federal, que veicula a notícia tem a desfaçatez de colocar a imagem de um casal de idosos com boletos e uma calculadora, insinuando que a nova medida legislativa lhe diminuiria os encargos sociais [8].

A forma que Congresso trata os trabalhadores aposentados nos faz lembrar da mulher árabe que, tendo recebido uma bofetada do seu marido, fora queixar-se a seu pai, pedindo vingança. Então o pai pergunta à filha: “Em qual face recebeste a bofetada?” Ao responder que o marido havia lhe atingido a face esquerda, o pai lhe desfere uma bofetada na face direita e diz: “Pronto, agora estás vingada, vai dizer ao teu marido que ele bateu em minha filha, mas que eu bati na mulher dele” [9].

Esse texto poderia acabar aqui. Mas também poderíamos nos questionar: teria como os trabalhadores escaparem da vingança do pai árabe? Acreditamos que sim.

Bastaria, para tanto, darmos efetividade à garantia de emprego prevista no inciso I do artigo 7º da CF, reconhecendo que o artigo 492 da CLT foi recepcionado pela Constituição e ainda está em vigor. Se alguns trabalhadores efetivamente ficarem “isentos” do direito fundamental ao FGTS, parece que o mais razoável a fazer é obrigar toda a classe a se sujeitar a garantia de emprego ainda hoje expressamente prevista no texto celetista. Afinal, não por vingança, mas para equilibrar a balança, por medida de Justiça, a concessão de uma isenção deve necessariamente corresponder à imposição de uma sujeição, não lhes parece?

Referências:

RODRIGUES, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 1978.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2020.


[1] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/10/25/aprovado-projeto-que-isenta-trabalhador-ja-aposentado-de-recolher-fgts. Acesso em 26/10/2023.

[2] A Constituição Federal assegura o FGTS como direito fundamental de todos os trabalhadores urbanos e rurais (Art. 7º, inciso III).

[3] A primeira medida “flexibilizadora” dos direitos trabalhistas no Brasil, foi a autorização de redução salarial, pela Lei 4.923/1965. Sobre o tema, leia o nosso artigo Programa de Proteção ao Emprego: cinquenta anos depois, a história se repete. Disponível em https://www.metodista.br/revistas/revistas-ipa/index.php/direito/article/view/351/476.

[4]  SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 80 e 81.

[5] A propósito, v.g. REX 556.664-1. Relator: MIN. Gilmar Mendes.

[6] RODRIGUES, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 1978, p. 43.

[7] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158871?_gl=1*1yz55ui*_ga*MTc4NjE5MDQwNS4xNjcxNjUxNDYz*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5ODc3MzMwMi4xNy4wLjE2OTg3NzMzMDIuMC4wLjA. Acesso em 31/10/2023. Talvez a baixíssima participação da população na consulta pública se dê pela falta de divulgação sobre a medida, ou por alienação; mas talvez também seja por um total descrédito nessa forma de participação popular. Observe-se que, quando foi feita a mesma consulta pública em relação à Lei nº 13.467, conhecida como “Reforma Trabalhista”, mais de 90% da população votou contra e mesmo assim, como se sabe, o projeto foi aprovado. Sobre a consulta pública relacionada à Reforma Trabalhista, acesse https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129049.

[8] https://twitter.com/SenadoFederal/status/1717298991929729156?t=d6L9uSPc4vO33ofwd4OgYQ&s=08. Acesso em 26/10/2023.

[9] HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2020, p. 1145.

Autores

  • é juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Santa Cruz do Sul, no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, professor universitário na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Unisc, especialista em Direito do Trabalho pela Universidad de la República Oriental del Uruguay e especialista em Relações de Trabalho pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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