Opinião

Marco Legal das Garantias afeta consumidor, vulnerável e superendividado

Autores

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutor e mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público de Minas Gerais.

6 de novembro de 2023, 19h23

A entrada em vigor da Lei 14.711/2023, que insere o chamado “marco legal das garantias“, não enseja comemorações gerais [1]. Pode servir em contentamento parcial a setores exclusivamente “econômicos” pré-definidos (como o financeiro, imobiliário e registral) que levaram adiante a edição e aprovação do texto legal. Entretanto, não conta com a adesão de parte significativa da população brasileira a quem ela mais afeta e atenta contra: os consumidores, os vulneráveis e, especialmente, os superendividados.

Os consumidores estão no mercado e muitos fora dele, justamente pelas regras do mercado. E, via de consequência, deveriam ser ouvidos, participando das discussões legislativas e apresentando sugestões, porquanto stakeholders e verdadeiros mantenedores da dinâmica macroeconômica da República. Editar legislações ou propostas legislativas sem oitiva de todos os representantes daqueles que podem ser mais prejudicados configura duro acinte à decidibilidade democrática, enfraquecendo a legitimidade do regime jurídico vindouro.

O Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor) manifesta profunda preocupação com a legislação agora em vigência, já que o escopo principal não se revela imediatamente, senão subliminarmente: a transferência de riscos próprios de mercados fortes e prósperos para a população brasileira dos menos favorecidos, que é a necessariamente a maioria e a maior interessada.

Dentre os argumentos para aprovação residem duas facetas já desgastadas e que não demonstram força argumentativa alguma, dado o conteúdo repisado. O primeiro, a segurança jurídica: tal postulado constitucional não deve servir somente ao mercado, mas especialmente aos direitos fundamentais, proteger o adimplemento dos contratos nunca é superior que promover a pessoa humana, especialmente livrando-a dos constrangimentos. O segundo, os juros: trata-se de promessa nunca satisfeita. Inúmeros projetos de lei, convolados posteriormente, utilizaram essa estratégia discursiva, mas os juros no Brasil ainda são os maiores do mundo.

Cabe lembrar que o último censo demográfico do IBGE informa o aumento em 38%, entre os anos de 2019 e 2022, das “pessoas em situação de rua“. E esse aumento não se deve exclusivamente à pandemia desencadeada pela Covid-19, mas essencialmente pela ausência de deveres de proteção que levem consideração a promoção dos consumidores, de forma que não sejam alijados da linha de proteção dos direitos fundamentais. As legislações de retrocesso contribuem fortemente para esse quadro tão deprimente e de negação da dignidade humana.

Com esta inserção legislativa resta consolidado o “civilismo de mercado“, aquele que não se ocupa com as externalidades negativas, direitos fundamentais, direitos da personalidade e com os sujeitos reais de direitos mais vulneráveis. Esse “modelo” restou muito bem iniciado pela Lei 13.786/18, que dispõe sobre a resolução do contrato pelo inadimplemento do adquirente, seguida da Lei 13.874/19, que trata da livre iniciativa e livre exercício das atividades econômicas, culminando nesta última espécie normativa agora em vigor que coloca em xeque os direitos fundamentais de moradia, habitação e à clara noção de “bens fundamentais“: a propriedade familiar.

A incidência de múltiplas garantias sobre a propriedade imobiliária quando do oferecimento e contratualização de créditos ao consumidor traz graves riscos de exclusão social aos vulneráveis (vedação que decorre de princípio jurídico inserido pela Lei 14.181/21) e avilta a cláusula constitucional que “garante” a efetividade ao mínimo existencial e ao patrimônio mínimo (CF, artigo 6º).

A fim de possibilitar a pluralidade de cauções imobiliárias (hipoteca ou alienação fiduciária) na retomada do adimplemento das obrigações financeiras, a legislação ora aprovada não faz mesuras aos mais humildes e nem mesmo apresenta limitações no campo de incidência, já que pode atuar também sobre “único” bem reservado ao livre desenvolvimento dos núcleos familiares (não há vedação expressa). No contexto imobiliário e financeiro, isso significa que um imóvel é oferecido como garantia para múltiplos empréstimos ou contratos de crédito. Entretanto, enquanto diminui os riscos das instituições financeiras, cria insolúveis problemas aos consumidores.

Remarque-se que o mínimo existencial, inserido pela Lei 14.181/21, compreende a manutenção das condições básicas e urgentes para que o consumidor (cidadã e cidadão) possa viver de forma digna, garantindo a satisfação de suas necessidades humanas. O patrimônio mínimo, por sua vez, consiste na tutela de bens essenciais (bens fundamentais) para a sobrevivência e bem-estar de determinado núcleo familiar. Ambos são conceitos jurídicos indeterminados fundamentais decorrentes da hermenêutica constitucional e devem ser considerados no contexto das relações de crédito ao consumidor.

Ao não vedar a pluralidade de garantias sobre único imóvel familiar, a Lei 14.711/2023 está incentivando que mercados imobiliários e financeiros comprometam o mínimo existencial e o patrimônio mínimo do consumidor. Isso ocorre porque, em caso de inadimplência, o consumidor pode perder o imóvel com a excussão das garantias relativas às dívidas ou contratos associados, inclusive de forma antecipada. Essa situação insere o consumidor em situação de maior vulnerabilidade, anulando o direito à moradia e estabilidade financeira.

Outra situação passível de atenção diz respeito à redação da lei. Altamente técnica, provida de conceitos respeitantes somente a operadores específicos, não deixa de melindrar a imediata compreensão do texto normativo, o que ensejará complexas interpretações e pelo visto totalmente desconectadas com os mais humildes (favor debilis) e com os princípios de proteção aos devedores (favor debitoris).

Cinge averbar que a Lei 14.711/2023 em momento algum (1) se ocupa dos “deveres de oportunizar” ao consumidor os efeitos das múltiplas garantias; (2) igualmente não estabelece controle das condições contratuais quanto à retomada dos imóveis, inclusive na vedação de cláusulas que obstem o exercício de direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, permitindo a ameaça ao objeto e ofensa ao equilíbrio contratual; (3) não fixa limites aos créditos financeiros, exigindo-os “responsáveis” (CDC, artigo 6º, inciso XI) e, nesse ponto, descura-se da inerente função social do crédito (CC, artigo 2035, par. ún.); (4) se omite em indicar a “legitimação pelo resultado”, ou seja, os argumentos consequencialistas (Lindb, artigo 20), dentre eles a exclusão social.

Sendo assim, se apresenta a necessidade de melhoria do texto legal vigente e a adoção de medidas regulatórias pelos órgãos legitimados com vistas à proteção dos consumidores como “dever fundamental do Estado” (CF, artigo 5º, inciso XXXII), mediante a necessária restrição de constrições sobre único imóvel do núcleo familiar como garantia para múltiplos contratos de crédito, limitando-se o número de garantias que podem recair sobre o mesmo bem; inserção de dispositivos com critérios mais rigorosos para a concessão de crédito; inserção de cláusulas com exigência de consentimento esclarecido e de oportunização quanto aos efeitos das garantias; e, por fim, a implementação de políticas de educação financeira, objetivando capacitar os consumidores para tomada de decisões conscientes e informadas acerca dos contratos de crédito e seus efeitos na economia pessoal e familiar.


[1] Nota técnica concluída em 03-11-2023.

Autores

  • é pós-doutor em Direito pela USP. Professor associado de Direito Civil na Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo vice-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Procurador de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.

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