Segunda Leitura

As peculiaridades do contrato sugar daddy no Direito brasileiro

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de novembro de 2023, 8h00

Os contratos são regulados pelo artigo 421 e seguintes do Código Civil. O título VI do referido Código trata das várias espécies de contratos, começando no artigo 481 com o de compra e venda e terminando no artigo 853-A, que dispõe sobre o contrato de administração fiduciária de garantias. Todavia, o rol da lei civil não é taxativo, mas sim exemplificativo, pois é impossível prever todas as formas de ajustes que as pessoas venham a celebrar, ainda mais em uma época de transformações como a que vivemos.

Spacca
Entre as novas formas contratuais, eis que surge nos Estados Unidos a do sugar daddy, que é a união de um homem idoso com uma mulher jovem, esta chamada de sugar baby. Esta é a forma mais comum, porém, ainda que em menor quantidade, há também a da sugar mommy, ou seja, da mulher mais velha com um homem mais novo, sugar boy. Por ser a mais comum, trataremos da primeira hipótese, sugar daddy, a ela se aplicando para os casos de sugar mommy tudo o que for dito.

Pois bem, para suprirem as suas necessidades, que ao que a natureza indica serão bem diferentes, interessados dos dois lados dispõem de sites de aproximação, sendo que o mais antigo no Brasil é o "Meu patrocínio", que opera desde 2015 e assegura que "O Sugar Daddy sabe o que pode proporcionar para sua Baby e a Sugar Baby também sabe o que pode proporcionar para seu Daddy" [1].

Via de regra, de um lado teremos um contratante idoso, bem-sucedido, na maioria das vezes sem vínculo marital e disposto a aproveitar a vida sem compromisso. Além disto, mostrar-se em companhia de uma mulher atraente sempre será prazeroso ao "papai com açúcar". Do outro, uma jovem, bonita, ambiciosa, com razoável nível de instrução, pouco dinheiro e muita vontade de dirigir lindos carros, ganhar presentes caros, viajar e frequentar ambientes requintados.

O acordo de vontades poderá ser tácito ou expresso. Diariamente fazemos contratos verbais, por exemplo, ao fazermos compras no supermercado. Nada impede, portanto, um contrato tácito de união do daddy com a baby, mas ele será raro pela simples razão de que a avença pressupõe ótima, ou no mínimo boa, situação econômica do daddy. Afinal, a baby não se disporá a unir-se a um homem idoso para ouvir as histórias de sua juventude.

Portanto, na maioria das vezes haverá um contrato escrito, que poderá ser por documento particular ou escritura pública. Se for um acordo de companhia recíproca para uma viagem de turismo às ilhas gregas, certamente a opção será um documento particular. Mas se envolver algo mais duradouro, como o aluguel de um apartamento ou pagamento de uma mensalidade, possivelmente se optará por escritura pública. A menos, evidentemente, que o daddy tenha família constituída, ocupe função pública de relevância, seja CEO de uma grande empresa, ocupe uma posição, enfim, em que seja vulnerável a ataques de terceiros.

A primeira indagação a ser feita é se o Código Civil permite tal tipo de contrato. O artigo 104-A exige, para a validade do acordo de vontades, que haja I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei. Comentando o Código de 1916, Washington Barros Monteiro ensinava que o objeto lícito incluía a proibição de atos contrários à moral e aos bons costumes [2]. Portanto, com base nos costumes do século passado, tal contrato, por si só, seria invalidado. E atualmente?

Nos Estados Unidos tal tipo de cláusula anularia o contrato. Em vários estados a prostituição é considerada um crime. Por exemplo, no Colorado a lei estadual [3] considera crime comprar ou vender favores sexuais, ou oferecer ou solicitar a venda ou compra de sexo. A definição de sexo inclui relação sexual, bem como felação, cunnilingus, masturbação ou cópula anal [4]. A pena varia conforme a ocorrência, mas é branda. Por exemplo, solicitar o favor sexual pode resultar em pena de multa U$ 300 ou dez dias de prisão. Quando o caso envolve menores as sanções são bem mais graves.

Se prostituição é crime, por óbvio não poderá haver tal tipo de disposição no contrato. E mesmo em estados mais tolerantes, como Nevada, certamente haverá rigor na interpretação, porque nos Estados Unidos as religiões protestantes predominaram e nelas o rigor moral sempre foi mais severo que no catolicismo.

No Brasil a prostituição não é crime, apenas a exploração é proibida, seja na forma de manter estabelecimento para exploração sexual (artigo 229 do Código Penal), seja por tirar proveito da prostituição alheia (artigo 230 do Código Penal).

Admitindo-se, pois, o contrato como possível, poderá ele ter cláusula de compromisso no cumprimento de obrigações sexuais?

Neste particular, há certa prudência do legislador até mesmo no matrimônio. O Código Civil, ao tratar do casamento, no artigo 1.566, inciso II, afirma ser obrigação dos cônjuges II – vida em comum, no domicílio conjugal. Nesta, por óbvio, incluem-se as relações sexuais que presumem a participação de ambos.

Ora, ainda que ao meu ver nada há que impeça cláusula fixando deveres de natureza sexual no contrato sugar daddy, o normal será deixar a prazerosa obrigação mantida implícita e não explícita, evitando-se tal tipo de discussão.

Vejamos, agora, qual a vantagem de fixar-se em contrato as condições do acerto entre os parceiros. O Código Civil, no artigo 1.723, reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. E, segundo o art. 1.725, Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

A grande preocupação do daddy será a alegação da baby de que, com ele, tinha união estável, valendo de provas fortes como participação juntos em eventos, viagens, eventualmente uma doação ou contrato de locação. Por parte da baby, o temor é de que as promessas sejam fraudulentas, quiçá até que o lindo veículo esportivo que lhe foi cedido para dirigir esteja com o IPVA e prestações de financiamento com atraso significativo e um pedido de busca e apreensão em rápido andamento.

No rol dos preocupados entram também os herdeiros do daddy, temerosos de que o pai, que suspeitam esteja com sintomas sérios de demência senil, venha a obrigá-los a disputar na Vara de Família e Sucessões a herança com a jovem sedutora.

Na jurisprudência temos caso oriundo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que surgiu dúvida sobre o contrato, no caso verbal, ser de sugar daddy ou de união estável. Em síntese, o daddy criou uma clínica estética para a baby e alugou imóvel para que ela exercesse seu oficio. Alegando que a relação acabou, ele quis a sala, tendo ela recusado. Ele então colocou câmeras no recinto e bloqueou o acesso dela e de seus funcionários e clientes ao local. Ela ingressou em juízo e conseguiu tutela de urgência para manter-se no local por 180 dias. Houve recurso e, no TJ-RS, decisão monocrática confirmou a de primeiro grau, levando em conta o fato de que ela constava como dependente dele no clube, tinham várias fotos juntos e nos documentos oficiais havia menção a endereços em que teriam vivido juntos [5].

No Tribunal de Justiça de Alagoas, conflito sobre a sucessão de bens de falecido entre herdeira e terceira que teria tido um relacionamento com o finado, foi analisado sob a ótica de ser uma relação sugar ou união estável. O desembargador relator fez constar no seu voto que no relacionamento sugar não há, propriamente, um relacionamento amoroso, mas sim um relacionamento financeiro. Há uma relação bilateral entre as partes, caracterizada por uma troca afetiva e/ou sexual, tendo como contrapartida uma contribuição econômica periódica, que pode se dar em pecúnia ou in natura [6]. No entanto, a prova dos autos seria no sentido de que, realmente, houve intenção de constituir-se uma relação estável, principalmente uma carta em que o falecido assegurava que nada faltaria à parceira e ao filho que então nasceu. Prevaleceu a tese da união estável, porque o relacionamento não seria efêmero.

Outro risco a que se submete o daddy casado é a extorsão. Evidentemente, alugar um apartamento para encontros com a baby, ainda que em outra cidade, fotos ou gravações de conversas telefônicas, são provas e ao fim da relação podem gerar o pedido de um indesejado pagamento adicional, sob pena de divulgação junto à família.

De todo o exposto, vê-se que o relacionamento sugar daddy vem se tornando uma realidade e o Direito não pode ignorá-lo, independentemente de ser considerado ou não imoral. Nessas condições, os que enveredam por essa trilha devem acautelar-se, deixando-a clara em contrato formal, evitando que o açucarado ajuste se transforme em um final amargo para si ou seus descendentes.

 


[1] Meu patrocínio. Disponível em: https://www.meupatrocinio.com/. Acesso em: 2 nov. 2023.

[2] MONTEIRO, Washington Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1984,23ª. ed., p. 177.

[3] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, ESTADO DO COLORADO. Colorado Prostitution & Solicitation Laws – CRS 18-7-201. Disponível em: https://www.shouselaw.com/co/defense/laws/prostitution/. Acesso em 1º nov. 2023.

[5] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento Nº 5160266-60.2023.8.21.7000/RS, 7ª. Câmara Cível. Des. CARLOS EDUARDO ZIETLOW DURO, decisão monocrática em 6 jun. 2023.

[6] Tribunal de Justiça de Alagoas. Apelação Cível nº 0713768-83.2021.8.02.0001, 4ª. Câm. Cível, rel. des. Fábio Costa de Almeida Ferrario, j. 26 set. 2023.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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