Público & Pragmático

O Brasil e a oportunidade para a produção de hidrogênio de baixo carbono

Autor

5 de novembro de 2023, 8h00

Os últimos eventos climáticos extremos que ocorreram em diversas partes do planeta e a guerra na Ucrânia, que desnudou a dependência do continente europeu do gás natural russo, serviram para fomentar em nível mundial as discussões sobre a necessidade de uma transição energética eficaz em um curto espaço de tempo.

A produção do hidrogênio a partir de fontes renováveis de energia, que já vinha sendo estudada há tempos pela academia, se tornou agora uma realidade para os países, que têm a missão de estimular a pesquisa e o desenvolvimento, possibilitando o barateamento da tecnologia e a criação de um ambiente regulatório seguro para atrair investimentos.

Neste contexto, o Brasil novamente tem uma oportunidade para sair na dianteira e se tornar referência internacional na transição energética, dado o seu gigantesco potencial para a produção de energia limpa. Para muitos especialistas, entretanto, o tempo está passando, e a necessidade de se aprovar um arcabouço regulatório é urgente para que não se perca mais essa oportunidade de vista.

Diversos projetos de lei tramitam no Congresso Nacional com essa finalidade. Para citar alguns, o PL nº 725/2022, em tramitação no Senado, disciplina a inserção do hidrogênio como fonte de energia e estabelece parâmetros de incentivo ao uso do hidrogênio sustentável, e o PL nº 2.308/23, em tramitação na Câmara dos Deputados, dispõe sobre a definição legal de hidrogênio combustível e de hidrogênio verde. Nenhum deles, entretanto, traz um arcabouço tão completo quanto a proposta para a criação de um Marco Legal para a Produção de Hidrogênio de Baixo Carbono, atualmente em discussão na Comissão Especial para Estudos das Iniciativas para a Transição Energética, na Câmara.

No último dia 31 de outubro, o relator, deputado Bacelar (PV-BA), apresentou seu relatório preliminar REL 1/2023 Ceenerg [1], o qual sugere uma minuta de projeto de lei, que institui o Marco Legal do Hidrogênio de Baixo Carbono e a Política Nacional do Hidrogênio de Baixo Carbono. Alguns pontos são extremamente interessantes e trataremos de citá-los, sem esgotá-los, para contribuir com a discussão.

O primeiro aspecto que merece destaque é a definição trazida pelo artigo 4º para o termo "hidrogênio de baixo carbono" como o "hidrogênio combustível ou insumo industrial, coletado ou obtido a partir de fontes diversas de processo de produção, e que possua emissão de gases causadores do efeito estufa (GEE), conforme análise do ciclo de vida, com valor inicial menor ou igual a quatro quilogramas de dióxido de carbono equivalente por quilograma de hidrogênio produzido". O conceito é extremamente importante, pois a taxonomia do hidrogênio é um ponto de discordância entre diversos especialistas e estudiosos do setor.

Para muitos, a limitação ao conceito de hidrogênio verde excluiria outras rotas viáveis de produção com redução de carbono. A Associação Brasileira do Hidrogênio (ABH2) [2], alinhada às diretrizes internacionais do Hydrogen Council, defende que a divisão por cores, na qual se classificaria o hidrogênio como verde, é uma abordagem errada, pois discrimina outras tecnologias, sendo mais correto a utilização da palavra descarbonização. Ainda para a associação, a adoção de uma taxonomia mais abrangente estaria alinhada às metas de descarbonização, impulsionando verdadeiramente a transição energética, além de ser economicamente mais viável, pois permite a produção do hidrogênio com menor custo.

Neste sentido, o relatório Comissão Especial para Estudos das Iniciativas para a Transição Energética abarcou este conceito mais abrangente, determinando a emissão máxima permitida de carbono na produção (no máximo quatro quilogramas de dióxido de carbono por quilograma de oxigênio). Não obstante, o referido artigo ainda conceituou o hidrogênio renovável como aquele obtido a partir de fontes renováveis, incluindo solar, eólica, hidráulica, biomassa, biogás, biometano, gases de aterro, geotérmica, das marés e oceânica. Como é possível perceber, o rol sugerido pelo relatório não é taxativo e permite a inclusão de novas tecnologias que porventura venham a surgir no futuro.

Alinhado a esse conceito, em seu artigo 2º o projeto elenca como princípios norteadores da Política Nacional do Hidrogênio de Baixo Carbono (1) o respeito à neutralidade tecnológica na definição de incentivos para a produção; (2) a inserção competitiva do hidrogênio de baixo carbono na matriz energética brasileira para sua descarbonização; (3) a previsibilidade na formação de regulamentos e na concessão de incentivos para a expansão do mercado; (4) o aproveitamento racional da infraestrutura existente dedicada ao suprimento de energéticos e (5) o fomento à pesquisa e desenvolvimento do uso de hidrogênio de baixo carbono.

Já dentre os objetivos, o projeto assinala, entre outros, (1) incentivar as diversas rotas de produção de hidrogênio de baixo carbono e seus derivados, valorizando as múltiplas vocações econômicas nacionais; (2) promover a livre concorrência; (3) atrair investimentos nacionais e estrangeiros para a produção de baixo carbono e seus derivados; (4) aumentar a competitividade do país no mercado internacional; (5) fomentar a transição energética visando ao cumprimento das metas do Acordo de Paris e demais tratados; e (6) fomentar o desenvolvimento da produção nacional de fertilizantes nitrogenados provenientes do hidrogênio de baixo carbono com o objetivo de reduzir a dependência externa e garantir a segurança alimentar.

Este último ponto merece um olhar com lupa diante do enorme potencial agropecuário brasileiro e da sua dependência de fertilizantes produzidos fora do país, tema que também ganhou foco após a guerra na Ucrânia, já que o Brasil é um grande importador de fertilizantes ucranianos, russos e bielorrussos [3].

O projeto encarrega à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) a função de regulação e fiscalização, respeitadas as atribuições das demais agência reguladoras conforme a fonte utilizada no processo de produção. O projeto também conferiu à ANP a atribuição de autorizar empresas constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no país para exercerem as atividades de produção de hidrogênio, seus derivados e carreadores.

Vale destacar os incentivos regulatórios e fiscais previstos no projeto, com a instituição do Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixo Carbono (Rehidro), a serem concedidos a pessoas jurídicas que, no prazo de até cinco anos após a publicação da lei, estejam habilitadas a produzir hidrogênio de baixo carbono. Com foco na exportação do hidrogênio de baixo carbono produzido no Brasil, o projeto também prevê a suspensão dos tributos referidos no artigo 6º-B, da Lei Federal 11.508/2007 [4], nas Zonas de Processamento de Exportação (ZPE).

O Título IV do projeto trata especificamente da certificação do hidrogênio, outro ponto de bastante controvérsia entre os especialistas no setor. Os agentes certificadores de origem (ACO) terão que certificar (1) a origem do insumo para a produção do hidrogênio; (2) o sistema de sequestro geológico permanente de dióxido de carbono; (3) a garantia de utilização única da contabilidade do dióxido de carbono estocado, na hipótese do inciso II deste artigo, comprovando o cancelamento no sistema de registro de crédito de carbono em que foi alocado; (4) a informação sobre se o processo produtivo do hidrogênio de baixo carbono resultou em emissões negativas; (5) as informações sobre características técnicas e qualidade do produto; (6) a contabilidade das emissões a montante do processo produtivo, no que couber; e (7) a garantia de utilização única da contabilidade da energia elétrica utilizada como matéria-prima.

Por fim, merece destaque o fato de que o projeto prevê que as autoridades públicas deverão priorizar a análise da outorga de recursos hídricos para a produção de hidrogênio de baixo carbono e fomenta tais projetos a utilizarem águas originadas de processo de dessalinização, águas de chuva e o reuso não potável de águas cinzas.

Muita discussão sobre o tema ainda há de vir, mas certamente o relatório preliminar REL 1/2023 Ceenerg abarcou temas importantes e de uma forma muito mais abrangente do que os demais PLs que tramitam nas duas casas legislativas.

Ainda que seja necessária a reflexão junto à sociedade civil, é importante que o Brasil aprove logo o seu marco regulatório do hidrogênio com a finalidade de trazer mais segurança jurídica aos projetos que já despontam e atrair investimento estrangeiro ao país. Mais uma vez, o país do futuro chamado Brasil está tendo a oportunidade de montar em um cavalo selado; que não o deixe passar novamente.

 


[2] ABH2. A Transição Energética para Energia do Hidrogênio no Mundo – Taxonomia e Mercado de Hidrogênio no Brasil, 8 de agosto de 2023. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/57a-legislatura/transicao-energetica-e-producao-de-hidrogenio-verde/apresentacoes-em-eventos/2023.08.08PauloEmlioValadodeMirandaAssBrasHidrognioABH2.pdf>. Último acesso em: 3/11/2023.

[3] AGÊNCIA BRASIL. Brasil será autossuficiente na produção de fertilizantes, diz Tereza Cristina. Disponível em: < https://www.canalrural.com.br/politica/brasil-sera-autossuficiente-na-producao-de-fertilizantes-diz-tereza-cristina/>. Último acesso em: 3/11/2023.

[4] Art. 6-B, Lei Federal nº 11.508/2007: Art. 6º-B As matérias-primas, os produtos intermediários e os materiais de embalagem serão importados ou adquiridos no mercado interno por empresa autorizada a operar em ZPE, com a suspensão da exigência dos seguintes impostos e contribuições:

I – Imposto de Importação;

II – IPI;

III – Cofins;

IV – Cofins-Importação;

V – Contribuição para o PIS/Pasep;

VI – Contribuição para o PIS/Pasep-Importação; e

VII – AFRMM.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!