Diário de Classe

A instituição literária do direito

Autor

  • Luã Jung

    é graduado em Direito mestre e doutor em Filosofia professor do PPG Direito Unesa-RJ professor convidado da ABDConst membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

4 de novembro de 2023, 8h00

Velhas questões institucionais, não tendo sido resolvidas nem superadas, continuam sendo os principais fatores de atraso e, ao mesmo tempo, os principais motores de uma revolução social. […] Como não há nenhuma garantia confiável de que a história venha a favorecer, amanhã, espontaneamente, os oprimidos; e há, ao contrário, legítimo temor de que, também no futuro, essas minorias dirigentes conformem e deformem o Brasil segundo seus interesses; torna-se tanto mais imperativa a tarefa de alcançar o máximo de lucidez para intervir eficazmente na história a fim de reverter sua tendencia secular. Esse é o nosso propósito (Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do Brasil, p. 248).

Na coluna Democracia liberal como mal-entendido: Hegel e as raízes do Brasil, aqui no Diário de Classe, delineei uma crítica ao liberalismo político tendo como fio condutor a argumentação de Charles Taylor em Hegel's Ambiguous Legacy for Modern Liberalism. Nesse sentido, retomei a crítica de Hegel a Kant e apontei para como a análise de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil revela que os déficits institucionais que ainda hoje percebemos em nosso país transcendem e mera formalidade institucional e guardam origem em aspectos históricos, sociais e culturais. Sérgio Buarque afirma que a melhor representação da contradição entre a esfera pública e privada de uma sociedade (um dos principais problemas Brasileiros tratados em sua obra) se dá em Antígona, de Sófocles, em que o conflito entre Creonte e Antígona representa em o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei particular (uma leitura que supera a empoeirada e simplificadora leitura de que a tragédia se resumiria à superação do direito positivo pelo direito natural).

Em minha última coluna aqui neste espaço, intitulada O discurso jurídico entre dados e narrativas, desenvolvi, entre outros pontos, o caráter constitutivo que a cultura em geral e a literatura especificamente possuem em relação ao nosso horizonte de sentido. Tal perspectiva é baseada na noção de que a própria linguagem é constitutiva de mundo (embora não do mundo natural a partir do qual as perspectivas reducionistas contemporâneas tentam compreender o ser humano e suas formas de vida). Nesse sentido, destaco novamente a afirmação de François Ost, a partir de Victor Hugo, de que "a literatura começa por formar o público, para depois fazer o povo. Escrever é governar".

No presente texto, gostaria de desenvolver um pouco mais este papel constitutivo da literatura para as práticas políticas e para o Direito e apontar para um incipiente desdobramento dessa tese geral para a teoria jurídica. É um tema da moda entre acadêmicos os assim chamados "diálogos institucionais". Diante da crise entre os Poderes que se agudizou nos últimos anos, juristas têm importado conceitos e ideias, principalmente do cenário norte-americano, e sugerido a revisão de modelos institucionais, limitações ao Poder Judiciário e leituras sobre como as suas decisões geram ruídos sociais. Há aqueles que comparam e avaliam o nosso desenho institucional com o de países como a Nova Zelândia ou Holanda, por exemplo, em que as cortes constitucionais têm um papel muito reduzido ou insignificante.

Este movimento de importação teórica não é novo. Como aponta Lenio Streck em obras como Verdade e Consenso, a comunidade jurídica já se apropriou de teorias como a dos princípios, da ponderação de valores e da distinção entre casos fáceis e casos difíceis. Como resultado, em grande medida, incluímos em nosso vocabulário jurídico termos sonoramente bacanas, mas que, sem o devido aprofundamento e sem o exercício de adequação a nossa prática e história, nada informam e nada transformam em relação aos nossos velhos e deletérios hábitos de decisão judicial.

Como afirma o professor Lenio em conversas e em aulas, se Dworkin conhecesse o judiciário brasileiro, não teria escrito da mesma maneira e se Waldron conhecesse o parlamento brasileiro, também não o faria. Nesse sentido, a forma como o tema "instituições" vem sendo debatido em alguns círculos pode nos levar a crer que se chegarmos a uma fórmula abstrata que reorganize as atribuições dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, encontraremos o ponto de equilíbrio e uma receita que poderá ser adaptada às distintas concretudes sociais. No entanto, se este exercício teórico abstrato for realizado de maneira superficial, sem a dimensão da historicidade em que a nossa institucionalidade se desenvolve, o resultado será o mesmo em relação ao que ocorreu na teoria da decisão. Análises up to date com conceitos aparentemente sofisticados, mas que em muito pouco contribuem para a compreensão da facticidade em que as relações sociais se desenvolvem.

Pois bem. Já que a palavra da moda da teoria do direito é "instituição", podemos nos perguntar sobre o sentido deste conceito e os seus limites. O que é isto — uma instituição? Esta é uma palavra importante na obra de Cornelius Castoriadis, autor um tanto quanto esquecido entre os engenheiros institucionais anglo-americanos que nós da comunidade jurídica brasileira tanto apreciamos. Em textos como A instituição imaginária da sociedade, Castoriadis propõe que o poder instituinte é o poder social do qual dependem todos os outros poderes — o poder explícito e toda forma de soberania política. Como afirma Thomas Vesting, "em Castoriadis, isso se associa à ideia de que a sociedade sempre teve instituições como a língua, tradições, costumes ou ideias e, por conseguinte, possui um patrimônio de práticas e hábitos que se desenvolvem gradualmente nos mais diversos lugares da sociedade e em sua essência fogem a toda e qualquer legislação" [1]. Castoriadis, nesse sentido, distingue o poder instituinte do Poder Constituinte. O primeiro diz respeito à sedimentação cultural que determina e condiciona intersubjetivamente o estabelecimento e transformação do segundo. Como conclui Vesting, "isso significa também que práticas liberais não podem ser criadas sem esses pressupostos culturais, unicamente através de um ato do poder Legislativo ou Constituinte" [2].

A partir desta brevíssima contextualização, entendemos melhor o que Ost quer dizer quando afirma que escrever é governar. A literatura, enquanto fenômeno que sintetiza os movimentos simbólicos de uma sociedade é um exemplo privilegiado a partir do qual podemos compreender as mudanças institucionais. Ao analisar a obra Robinson Crusoé (1729), por exemplo, o autor belga assinala que a estória representa um mito fundador da individualidade moderna, de um sujeito desvinculado de seu contexto e tradições que "reencontramos na base da teoria política liberal, hoje mundializada sob a forma da ‘democracia de mercado’: um indivíduo-substância, sempre já livre e racional, que nada deve à sua comunidade de origem e capaz de negociar para sua vantagem as condições, sempre reversíveis, de sua entrada em sociedade" [3].

Para Thomas Vesting, referindo-se a Franco Moretti, "esse romance marca o genuíno início do mundo em que vivemos ainda hoje. O Robinson Crusoé de Defoe documenta como vem se juntar à cultura aristocrática o éthos de trabalho racional do burguês, a realização do indivíduo por meio do trabalho incansável, de uma aquisição de dinheiro e riqueza por meio do trabalho profissional. Esforço sistemático e sem fim, diligência, aplicação, perseverança e persistência superam e substituem a inventividade inteligente e uma vida movida por paixões, guerras e batalhas, como aquela cultivada pela aristocracia desde a Antiguidade grega e expressada na Idade Média na figura do cavaleiro nobre e valente". A partir de análises socioculturais como esta, Vesting desenvolve em sua obra recém traduzida três tipos sucessivos de subjetividade jurídica: o Gentleman, o Gestor e o contemporâneo Homo Digitalis.

Um outro exemplo do poder instituinte da literatura (entre outros que o leitor poderia trazer para complementar este breve texto): em A invenção dos direitos humanos, Lynn Hunt relaciona o desenvolvimento do individualismo e da noção de interioridade pessoal com o estabelecimento do romance como principal gênero literário a partir do século 18 e, particularmente, do romance epistolar. Obras como Júlia ou A nova Heloísa, de Rousseau (publicada um ano antes de O contrato social), mudaram o ambiente narrativo das grandes batalhas e das virtudes heroicas presentes nas epopeias, por exemplo, e deram ênfase à vida cotidiana e aos sentimentos compartilhados não apenas pela aristocracia, mas pelas camadas emergentes da burguesia e de trabalhadores (pelo menos entre aqueles que sabiam ler). Esse movimento também é enfatizado por Charles Taylor em seu Fontes do Self. Para Hunt, "a capacidade de identificação através das linhas sociais pode ter sido adquirida de várias maneiras, e não me atrevo a dizer que a leitura de romances tenha sido a única. Ainda assim, ler romances parece especialmente pertinente, em parte porque o auge de determinado tipo de romance — o epistolar — coincide cronologicamente com o nascimento dos direitos humanos" [4]. De acordo com a autora, ainda, os efeitos psicológicos que os romances do cotidiano ajudaram a florescer entre os leitores contribuiu para o crescimento da individualidade e ao mesmo tempo da empatia, favorecendo, nesse sentido, a pretensão universalista apresentada pela ideia de direitos humanos. Mas essa é justamente a característica afirmada por Vesting acerca do poder instituinte: "A realidade assim criada tem um caráter duplo: ela está presente tanto nos padrões significativos de práticas sociais e modos de vida quanto na psique do indivíduo" [5].

Estas análises apontam para a necessidade de olharmos para as nossas instituições políticas e, portanto, para o Direito, a partir de uma perspectiva holística. A formação da subjetividade jurídica, para empregar outro conceito presente no texto de Vesting, é dependente de fatores antecedentes à mera externalidade das práticas de poder. É nesse sentido, também, que a hermenêutica contemporânea de autores como Heidegger e Gadamer aponta. Nossas práticas e discursos são sempre determinados pela linguisticidade do pensamento, difusa em processos de autocompreensão que se apresentam como algo desde-já-sempre. Aí entram temas como a distinção entre o nível hermenêutico e apofântico de que trata Heidegger em Ser e Tempo, ou a necessidade de buscarmos a consciência da história efeitual (Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein) em Gadamer. Podemos resgatar, nesse sentido, o conceito de Geist, espírito, presente em autores como Dilthey e principalmente Hegel, ou seja, o paradigma a partir do qual nossas autocompreensões se movimentam. E se retrocedermos um pouquinho mais, veremos que a noção romântica de Bildung, formação, de que tratavam Humboldt, Goethe e Herder, entre outros, também se faz presente. Nossas práticas institucionais são decorrência de um processo de aculturação em que a linguagem, a cultura e a história se relacionam de maneira interdependente e formam nossa visão de mundo (Weltansicht).

Todos estes pequenos apontamentos têm apenas uma pretensão. Não podemos compreender instituições político-jurídicas e, assim, prescrever o seu funcionamento sem a devida apropriação dos processos históricos, culturais e, nesse sentido, particulares a partir dos quais elas emergem e se transformam. O salutar diálogo com teorias estrangeiras (e eis aqui um entusiasta de Ronald Dworkin) deve sempre trazer consigo a devida e extensa compreensão do contexto a partir do qual as mesmas se desenvolvem e para o qual são propostas.

E, finalmente, voltemos à literatura. Sem desmerecer acadêmicos de Yale ou Harvard e outras respeitabilíssimas universidades, acredito que nossos colegas juristas e estudantes ganhariam tanto ou até mais em termos de compreensão institucional brasileira se lessem, por exemplo, Lima Barreto (entendam: não estou propondo aqui que convertamos o nosso idioma em tupi-guarani). Despeço-me com alguns trechos e deixo a cargo do leitor o desenvolvimento de análise comparativa sobre a institucionalidade brasileira contemporânea:

"[…] Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os alferes, os tenentes, e os capitães. Para a maioria a satisfação vinha da convicção de que iriam estender a sua autoridade sobre o pelotão e a companhia, a todo esse rebanho de civis; mas, em outros muitos havia sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do regime normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas músicas e cornetins e versos detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura fonética e eleitos calcados com sapatos com sola de borracha…! […]"

"[…] A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e seu amor fervoroso ao lar deram em resultado esse homem-talvez que, refratado nas necessidades mentais e sociais do homem do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu e pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas, dinheiro e despertando até um entusiasmo e fanatismo.

Esse entusiasmo e fanatismo, que o ampararam, que o animaram, que o sustentaram, só teriam sido possíveis depois de ter sido ajudante-geral do Império, senador, ministro, isto é, após se ter fabricado à vista de todos e cristalizado a lenda na mente de todos.

A sua concepção não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a coisa ao grande o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém prisão e morte. Não há dinheiro no Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim como se faz em casa quando chegam visitas e a sopa é pouca: põe-se mais água.

Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram a si realce a essa concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto por ele em si, pela sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida humana, mas pela fraqueza com que acobertou a não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas. […]"  (Triste fim de Policarpo Quaresma)

 


[1] VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: A transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Tradução de Ricardo Campos e Gercélia Mendes. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022, p. 43.

[2] VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: A transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Tradução de Ricardo Campos e Gercélia Mendes. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022, p. 60.

[3] OST, François. Contar a Lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2004, p. 277.

[4] HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 40.

[5] VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: A transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Tradução de Ricardo Campos e Gercélia Mendes. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022, p. 27.

Autores

  • é advogado, doutor e mestre em filosofia pela PUC-RS (bolsa Capes), professor do programa de pós-graduação em Direito da Unesa e membro do Dasein — Núcleo de estudos hermenêuticos.

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