Opinião

E se a proibição legal da cannabis para indústria estiver errada?

Autor

  • Emília Campos

    é advogada sócia do escritório MCZ Advocacia professora do MBA em Blockchain Developments da FIAP e autora do livro Criptomoedas e Blockchain – O Direito no Mundo Digital da Editora Lumen Juris.

2 de novembro de 2023, 17h23

Maconha é tudo igual? Depende, e essa é a resposta típica de um advogado. Mas, nesse caso, realmente é a melhor resposta. E para explicar isso, é importante falar um pouco sobre taxonomia de cannabis.

Taxonomia é o estudo da classificação dos seres. E a cannabis foi classificada pela primeira vez com esse nome em 1753 pelo botânico sueco Linnaeus, que descreveu como cannabis sativa uma planta que vinha crescendo em toda a Europa. E assim, Linnaeus propôs uma classificação na qual o gênero era monotípico, tendo apenas uma única espécie, que deu o nome de cannabis sativa L, em que o L. significa Linnaeus e indica a autoridade sob o primeiro nome da espécie. A principal característica identificada dessa planta era seu efeito psicoativo.

Em 1785, o naturalista europeu Jean-Baptiste Lamarck descreveu e nomeou uma segunda espécie, a cannabis indica, que significa "cannabis da Índia", também com efeito psicoativo, mas características diferentes.

No entanto, a espécie de cannabis ruderalis só foi descrita em 1924 por um botânico russo e foi identificada por suas características específicas, incluindo sua baixa estatura, folhas em geral menores, menor potencial de produção de THC (menos que 2%) e maior produção de fibras, o que possibilitou sua utilização na indústria de tecidos.

Por isso, atualmente, uma linha de pesquisadores ainda aceita a antiga classificação monotípica de Linnaeus, de que a cannabis sativa L. é uma espécie que possui duas subespécies (sativa e indica) e três variedades:  c. sativa subespécie sativa variedade sativa (sativa), c. sativa subespécie sativa variedade spontanea (ruderalis) e c. sativa subespécie indica variedade afghanica (indica).

Por outro lado, uma linha mais moderna de pesquisadores, bem como para o sistema de classificação APG II [1], a cannabis é uma planta que pertence à família Cannabaceae e engloba três tipos diferentes e mais conhecidos: Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis ruderalis.

Nessa linha, esses tipos de cannabis têm sido descritos da seguinte forma:

  • Cannabis Indica/Sativa: plantas cultivadas para a produção de medicamentos e uso recreativo, descritas como de índice THC >= CBD;
  • Cannabis Indica/Sativa: formas hibridizadas, ou a forma selvagem de qualquer um dos tipos acima;
  • Cannabis Ruderalis: plantas cultivadas para a produção de fibras e de sementes, descritas como de baixa toxicidade e alto índice de fibra.

Bom, de taxonomia de cannabis, vamos passar agora para análise da legislação que proíbe o seu plantio no Brasil.

O artigo 16 da antiga Lei de Drogas (Lei nº 6.368/1976) já mencionava a proibição do "plantio, cultivo ou colheita de plantas destinadas à preparação de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica". No entanto, naquela época, não existia nada que mencionasse expressamente as espécies de plantas específicas que não poderiam ser cultivadas com base na Lei de Drogas, o que significa dizer que outras regulamentações e a interpretação dos juízes eram a base para a consideração da cannabis como inserida nesse rol.

No entanto, quando foi publicada a RDC 344/2020 da Anvisa, que em seu Anexo incluiu a cannabis sativa L. como planta proscrita e de cultivo proibido no Brasil, apesar de não haver uma exposição de motivos ou fundamentação técnica apresentada pela Anvisa para justificar a nomenclatura utilizada, imagina-se que tenha sido a antiga classificação de Linnaeus, aquela "monotípica", criada na época em que a cannabis ruderalis nem sequer havia sido descoberta.

E o fato é que a cannabis ruderalis, além de não ser uma espécie de cannabis sativa, mas, sim, uma espécie própria, não é uma "planta que se constitua em matéria-prima para a preparação de drogas", conforme dispõe o artigo 33 da atual Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). E o fato é que essa é a espécie utilizada pela indústria na produção de inúmeros produtos.

Pela indústria do papel, por exemplo, já que com a fibra é possível produzir um papel mais resistente do que os que existem no mercado. Ademais, o cultivo de cannabis utiliza um método ecologicamente mais correto. E a colheita acontece dez vezes mais rápido do que a do eucalipto, por exemplo, e ainda consome menos água.

Já na construção civil, a fibra da cannabis pode ser utilizada na fabricação de um material parecido com concreto, auxiliando em uma construção ecológica e sustentável. A cannabis já foi testada e aprovada para ser utilizada na absorção da radiação e metais pesados do solo como chumbo, arsênio, zinco e cádmio. E mesmo o plástico produzido com as fibras da cannabis permite a produção de embalagens biodegradáveis, que podem substituir o plástico descartável que causa tantos danos ao meio ambiente.

E tudo isso pode ser obtido com a cannabis ruderalis, uma espécie que, como já vimos em termos taxonômicos, não deve ser considerada como incluída na descrição da cannabis sativa L. da lista do Anexo da RDC 344/2020 da Anvisa, à qual se reporta a atual Lei de Drogas brasileira.

Mas não é apenas por isso que a cannabis ruderalis cultivada pela indústria não deve ser considerada como inclusa na lista de plantas proibidas, mas também porque a cannabis cultivada para a indústria é colhida ainda durante o seu período vegetativo. Ou seja, antes da produção das flores, que é a estrutura que conteria THC (substância psicoativa), que no caso da cannabis ruderalis, não chega a 2%, tendo em vista que o aproveitamento das fibras longas é melhor nessa fase.

Apenas essa circunstância isolada da colheita para a indústria ser realizada antes do período da flora já seria capaz de afastar o cultivo da cannabis ruderalis pela indústria da situação proibitiva prevista tanto na Lei de Drogas, quanto na Lista do Anexo da RDC 344/2020 da Anvisa. No entanto, para além disso, o fato é que a cannabis ruderalis, pela botânica moderna, não pode ser considerada uma subespécie da cannabis sativa, mas, sim, uma espécie independente, que não está sujeita à regulamentação atual, por não ser capaz de ser utilizada para a produção de droga, devido ao baixo índice de toxicidade e alto índice de fibras.

E essa conclusão abre portas para toda uma indústria geradora de novos negócios, empregos, em um círculo virtuoso que só tem a fazer o agronegócio e a indústria brasileira crescerem e se desenvolverem de forma sustentável.

No entanto, infelizmente, o Brasil ainda é um país de natureza "cartorária". Ou seja, precisa de tudo escrito "na lei", como dizem os antigos, para que as coisas possam acontecer, ao invés de interpretar o ordenamento existente de forma razoável e proativa em benefício do desenvolvimento. Por isso, os poucos negócios que utilizam tecidos de cannabis como matéria-prima o fazem com matéria prima importada, de alto custo, já que o cultivo local é entendido como proibido.

E enquanto o Legislativo descansa em berço esplêndido, sem se preocupar em atender aos anseios de seus eleitores que precisam ver seus negócios prosperarem, caberá ao Judiciário resolver essa gigantesca distorção jurídica e, quem sabe, como vem fazendo no campo do uso medicinal da cannabis, aplicar efetivamente o Direito ao caso concreto e diminuir as enormes injustiças causadas por regulamentações malfeitas, atrasadas e pouco apuradas tecnicamente.

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[1] Angiosperm Phylogeny Group II – classificação de plantas que se concentra na filogenia, ou seja, na relação evolutiva entre as plantas com flores (angiospermas).

Autores

  • é advogada, sócia do Malgueiro Campos Advocacia, Professora do MBA em Blockchain Developments da FIAP e autora do livro Criptomoedas e Blockchain – O Direito no Mundo Digital, da Editora Lumen Juris.

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