Opinião

Polícia de SP regulamenta procedimento de reconhecimento de pessoas nas delegacias

Autores

  • Rafael Dezidério de Luca

    é advogado criminalista mestrando em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e membro do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais (CPECC) da USP.

  • Maurício Stegemann Dieter

    é advogado criminalista professor do Departamento de Direito Penal Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais (CPECC) da USP.

1 de novembro de 2023, 9h18

Após a consolidação da jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) contra o reconhecimento de pessoas de modo viciado e, especialmente, a elaboração da Resolução nº 484 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), de 19 de dezembro de 2022 [1], a qual estabeleceu diretrizes relevantes para a disciplina do reconhecimento de pessoas, algumas iniciativas têm sido tomadas em nível estadual para regulamentar a matéria.

É o caso da Lei Estadual nº 10.141/2023, sancionada pelo governo fluminense em 19 de outubro de 2023 [2], na qual foram propostas normas específicas para "os procedimentos de verificação de informação de reconhecimento dos investigados no âmbito das unidades policiais do Estado do Rio de Janeiro" [3], restringindo o alcance do reconhecimento fotográfico e determinando que a Polícia Civil do Rio de Janeiro “deverá ministrar aulas teóricas e práticas tratando do ato de reconhecimento fotográfico e destacar as consequências nefastas de uma investigação baseada unicamente nesse modelo de identificação de autor de infração penal".

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil

Mas o que ganhou destaque nos últimos dias foi a iniciativa da Delegacia Geral de Polícia (DGP) de São Paulo, que instituiu a sua nova Consolidação das Normas de Serviço da Polícia Judiciária, por meio de portaria publicada em 30 de outubro de 2023, e regulamentou significativamente o procedimento de reconhecimento de pessoas nas delegacias de polícia do estado, em seus artigos 139 a 146 (Seção XV) [4], o que merece a realização de análise crítica detalhada à luz das pesquisas que têm sido feitas sobre o tema.

Logo no artigo 139, a Delegacia Geral de Polícia reconhece expressamente o caráter obrigatório da observância das regras do artigo 226 do Código de Processo Penal, o que assume especial relevância no contexto atual, em que boa parte das delegacias de polícia do Estado de São Paulo fazem o procedimento à míngua das determinações legais e jurisprudenciais.

Ainda no artigo 139, adota-se como parâmetro o "alinhamento presencial" como modelo a ser seguido para o reconhecimento de pessoas na polícia civil estadual, na mesma linha do que estava previsto no artigo 2º da Resolução nº 484/2022 do CNJ, que se constituiu como um divisor de águas para a padronização da matéria, após a conclusão dos estudos do grupo de trabalho criado pelo próprio CNJ para pesquisar e aprimorar o tema (Portaria 209/2021).

O line-up (alinhamento justo e simultâneo) é, segundo as pesquisas qualificadas no campo da psicologia do testemunho, o método mais confiável e adequado a ser adotado, tornando-se medida de prevenção do risco de um reconhecimento equivocado ou aleatório, como destacado no relatório final do grupo de trabalho sobre reconhecimento de pessoas do CNJ [5], no relatório de pesquisa do Innocence Project Brasil [6] e na cartilha de orientações do Instituto de Defesa do Direito de Defesa [7].

É claro que o line-up por si só não garante a confiabilidade do procedimento, que depende da imprescindível prévia descrição livre, sem perguntas indutivas ou fornecimento de informações da pessoa investigada, das características da pessoa a ser reconhecida por parte da vítima ou testemunha, etapa que deve ser formalizada e reduzida a termo antes do alinhamento.

Porém, o parágrafo único do artigo 139 da Consolidação acaba por diminuir a importância da previsão do caput, uma vez que faz a ressalva de que a autoridade policial competente poderá justificar "eventuais circunstâncias ou obstáculos que prejudiquem ou inviabilizem a observância integral do artigo 226 do Código de Processo Penal", o que abre enorme margem para a discricionariedade e nos conduz para o mesmo lugar que tem chancelado as errôneas práticas feitas nos distritos policiais.

Isso porque não está claro qual justificativa pode ser idônea para permitir a inobservância do procedimento prescrito pelo artigo 226 do Código de Processo Penal, o qual exige a prévia descrição das características do suspeito pela vítima ou testemunha e a colocação do indivíduo a ser reconhecido em linha com outras "que com ela tiverem qualquer semelhança".

Talvez se possa pensar na impossibilidade de distritos policiais de comarcas pequenas conseguirem reunir cinco pessoas semelhantes para a realização do procedimento, mas nestes casos, absolutamente excepcionais, deverá haver fundamentação adequada e concreta.

Não bastasse isso, a nova Consolidação Normativa da DGP ainda confere expressa autorização para que as delegacias façam o reconhecimento fotográfico em caso de "impossibilidade justificada" (artigo 139), o que é ressaltado nos artigos 141 e 143 a 146, que preveem a necessidade de constatação de informações sobre a fonte da imagem utilizada e de alinhamento de fotografias para apresentação em conjunto (nunca isoladamente) para a vítima ou testemunha.

A possibilidade de justificação da impossibilidade do reconhecimento presencial por alinhamento — também presente no artigo 4º da Resolução nº 484/2022 do CNJ — abre espaço para a realização do reconhecimento fotográfico através de fundamentação discricionária e pode servir como carta branca para que se mantenham as mesmas práticas que têm resultado em erros judiciários.

O melhor caminho para resolver esses dois impasses, presentes tanto na Resolução do CNJ quanto na Consolidação das Normas da DGP de São Paulo, seria o seguinte: a) a exclusão de todas as relativizações quanto à observância do artigo 226 do Código de Processo Penal, removendo a abertura para hipóteses de impossibilidade justificada, evitando a sua indeterminação e insegurança jurídica; e b) o afastamento de todas as menções ao reconhecimento fotográfico no texto normativo e o acréscimo de um dispositivo proibindo expressamente a realização do procedimento por meio de fotografia, seja em linha, seja isolada.

Por sua vez, através do artigo 140, a Consolidação buscou renovar a credibilidade do reconhecimento de pessoas, dispondo que o delegado de polícia deve zelar para "evitar equívocos" na orientação do procedimento, o que se deve principalmente ao fato de que foram constatados inúmeros erros judiciários oriundos de reconhecimentos equivocados feitos em delegacias de Polícia em todo o Brasil.

Trata-se de problema que tem levado ao descrédito, pelo Poder Judiciário (ao menos pelo STJ e pelas Varas e Câmaras Criminais que têm seguido o seu entendimento pacificado nas duas Turmas Criminais), da própria prova de reconhecimento produzida pela instituição policial.

O § 1º do artigo 140 dispõe pontualmente que a prova de reconhecimento é irrepetível, ou seja, impassível de correção ou convalidação futura caso tenha sido conduzida de forma viciada inicialmente, o que está de acordo com as conclusões do relatório de pesquisa do Innocence Project Brasil e das decisões mais recentes do ministro Rogério Schietti Cruz (vide: STJ, HC 712.781/RJ, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 22/03/2022).

Assim como feito nos artigos 5º a 10 da Resolução nº 484/2022 do CNJ, os artigos 141 a 143 da Consolidação são bastante detalhistas ao disciplinar as etapas do reconhecimento de pessoas desde uma entrevista prévia, para a qual já estão determinados o que deve ser descrito pelo reconhecedor e quais indagações devem ser feitas (artigo 142), até o procedimento de alinhamento dos indivíduos e a posterior redução formal a termo.

Para evitar a criação de falsas memórias, o artigo 143, em seu inciso I, dispõe que sejam dadas instruções à vítima ou à testemunha, cientificando-a de que "a pessoa investigada pode ou não estar entre aquelas que lhes serão apresentadas".

Outros pontos dignos de destaque estão no artigo 144: a) o alinhamento deverá buscar características físicas semelhantes, em especial raça e cor (caput); b) deve ser evitado o "show-up", que consiste na apresentação isolada da pessoa ou de sua fotografia (§ 4º); e c) necessidade do mecanismo "duplo cego" para a autoridade condutora do procedimento também não saber quem é o suspeito a ser reconhecido (§ 5º), muito embora haja a condição de que será utilizado "se possível", que deveria ser excluída para dar maior efetividade e poder cogente à norma.

Apesar de algumas falhas dos dispositivos da nova Consolidação das Normas de Serviço da Polícia Judiciária do Estado de São Paulo, não se pode ignorar o caráter positivo apresentado pela elaboração de uma normativa institucional própria para regulamentar, detalhada e especificamente, como os próprios membros da Polícia Civil (escrivães, investigadores e delegados) deverão conduzir o procedimento do reconhecimento de pessoas.

A regulamentação interna, embora não tenha força legal, exerce maior poder de influência sobre a tomada de decisões dentro de uma instituição como a Polícia Civil, porque atinge diretamente as "metarregras" [8] institucionais e, consequentemente, pode acarretar mudanças mais efetivas na realidade cotidiana do sistema de justiça criminal. Afinal, o procedimento criminal se inicia na Delegacia de Polícia e muitas vezes a "prova" produzida nesta fase inquisitiva, sem contraditória, é decisiva para orientar toda a instrução e a sentença que será proferida pelo juízo competente.

Justamente por esses motivos, a portaria emitida pela DGP pode ajudar a mitigar a quantidade de reconhecimentos ilícitos e/ou equivocados que acontecem no Estado de São Paulo e, consequentemente, reduzir a incidência de erros judiciários no sistema penal brasileiro.

Não é possível prever, ainda, o grau de efetividade que esta regulamentação poderá trazer na prática e se mostrará necessária a fiscalização ativa de seu cumprimento por parte da Corregedoria da Polícia Civil em suas correições periódicas, assim como seria fundamental que fosse estabelecida a obrigatoriedade da gravação visual de todo o procedimento conduzido na delegacia de polícia, por algum tipo de câmera (até mesmo de celular), e a juntada aos autos do link para acesso ao vídeo, como condição de credibilidade de que realmente foram seguidas as regras estabelecidas.

O importante é que as subsequentes normativas publicadas para regular a matéria têm se somado, junto à Resolução nº 484 do CNJ, de 19 de dezembro de 2022, para estabelecer diretrizes para agentes da Polícia Investigativa e do Poder Judiciário seguirem, com a finalidade de evitar excessos e equívocos que, ao fim e ao cabo, resultam em condenações e prisões de inocentes em todo o Brasil.

O reconhecimento equivocado de pessoas é uma das principais causas de erro judiciário no Brasil, o que tem se constatado em dados concretos do STJ e em pesquisas empíricas sendo conduzidas sobre o tema. Portanto, a sua regulamentação e a restrição técnica da margem de discricionariedade dos agentes de criminalização secundária na condução do procedimento e na valoração da prova de reconhecimento são medidas fundamentais de prevenção e mitigação de erros judiciários.

Com a publicação de sua Consolidação das Normas de Serviço, a Polícia Civil do Estado de São Paulo dá um passo importante nessa direção, mas alguns degraus são ainda necessários para esse objetivo, em especial no que tange à eficácia de seus dispositivos na prática.

 


[1] Trata-se de resolução que “estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário”. CNJ. RESOLUÇÃO N. 484, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original2118372022122763ab612da6997.pdf. Acesso em 31 out 2023.

[3] Apesar de certa discussão sobre a inadequação do meio utilizado, por eventual conflito com a competência exclusiva da União para legislar em matéria penal e processual penal (artigo 22, inciso I, da Constituição Brasileira), a Lei Estadual nº 10.141/2023 não é inconstitucional porque não inova na legislação processual penal, mas apenas procedimentaliza e busca dar efetividade ao artigo 226 do Código de Processo Penal.

[4] DELEGACIA GERAL DE POLÍCIA. Portaria DGP-26, de 30 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.policiacivil.sp.gov.br/portal/ShowProperty?nodeId=/dipolContent/UCM_067949//idcPrimaryFile&. Acesso em 31 out. 2023.

[5] CNJ. GRUPO DE TRABALHO: RECONHECIMENTO DE PESSOAS. 17 out. 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/05/relatorio-gt-reconhecimento-de-pessoas-v5-17-10-2022.pdf. Acesso em 31 out. 2023.

[6] INNOCENCE PROJECT BRASIL. Prova de Reconhecimento e Erro Judiciário. 2020. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/_files/ugd/800e34_dde9726b4b024c9cae0437d7c1f425bb.pdf. Acesso em 31 out. 2023.

[7] IDDD. Reconhecimento de Pessoas e Prova Testemunhal: orientações para o sistema de justiça. Disponível em: http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/2021/04/iddd-reconhecimento-de-pessoas-e-prova-testemunhal-orientacoes-para-o-sistema-de-justica.pdf. Acesso em 31 out. 2023.

[8] As metarregras, que derivam da recepção alemã do paradigma da reação social, são conceituadas como o modo de interpretação e aplicação das regras do direito penal pelos agentes do sistema de justiça criminal, o que sofre a influência de determinações culturais, sociais, econômicas e políticas.

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