Opinião

​​​​​​​Problemas de uma matriz de alocação de riscos mal formulada

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31 de março de 2023, 11h06

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos tratou da matriz de alocação de riscos de uma maneira mais abrangente em relação à legislação anteriormente existente. Agora, qualquer contrato poderá prever a matriz e em certos casos ela será obrigatória. Dessa forma, a análise de riscos passa a assumir um papel importante na formulação dos contratos administrativos.

Ocorre que um processo adequado de identificação e gerenciamento dos riscos é custoso e é necessário avaliar quando ele poderá trazer mais benefícios do que custos. Isso é especialmente verdade para contratações que envolvem objetos comuns e/ou relações jurídicas de curta duração.

Em regra, a matriz de alocação de riscos será facultativa, mas a lei prevê que ela será obrigatória para obras e serviços de grande vulto [1]. A justificativa para tanto reside no fato de que os grandes valores envolvidos nesses contratos normalmente representam maior complexidade, o que atrai a necessidade de uma alocação prévia das responsabilidades pelos riscos relativos à execução do objeto.

Sendo a matriz de alocação de riscos facultativa na maioria dos casos, é necessário avaliar com cautela os seus requisitos e os custos envolvidos em sua elaboração para que a decisão sobre a previsão ou não da matriz seja fundamentada.

Com efeito, o artigo 103 da Lei nº 14.133/2021 prevê que o contrato poderá identificar riscos contratuais previstos e presumíveis e, diante disso, estabelecer matriz de alocação de riscos entre os contratantes. Com isso, haverá a indicação dos riscos a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados.

Como é cediço, a execução contratual está sujeita à interferência de riscos externos às vontades dos contratantes. Esses riscos, caso verificados, podem ter como resultado o desequilíbrio das contraprestações e, diante disso, será necessário identificar qual parte da relação contratual deve responder pelos prejuízos. Dessa forma, a lei faculta à Administração a previsão expressa e prévia de como ocorrerá a alocação das responsabilidades diante desses eventos.

Essa matriz de alocação de riscos tem alguns requisitos mínimos estabelecidos pela própria Lei nº 14.133/2021 em seu artigo 6º, XXVII. Um dos requisitos essenciais é que haja uma listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato que possam causar impacto em seu equilíbrio econômico-financeiro e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo por ocasião de sua ocorrência.

Nesse sentido, a matriz de alocação de riscos não é exatamente um instrumento de gerenciamento de riscos da contratação como um todo, incluindo, por exemplo, riscos relativos à publicação do edital. Ela serve, na verdade, para prever eventos supervenientes à assinatura do contrato, ou seja, relativos à execução contratual.

Uma confusão muito comum envolve os conceitos de matriz de riscos e de matriz de alocação de riscos. É possível, dentro de um procedimento de gerenciamento de riscos em projetos, estabelecer uma matriz de riscos que não envolve a necessidade de alocação de riscos contratuais. Ela pode simplesmente servir para a classificação dos riscos envolvidos em projetos ou em determinada instituição.

Outra situação envolve a matriz de alocação de riscos. A matriz de riscos é uma etapa prévia da alocação de riscos e serve para identificar riscos contratuais, classificá-los de acordo com os impactos e as probabilidades de ocorrência, bem como para prever medidas de mitigação. Feita essa matriz em relação aos riscos envolvidos na execução contratual, torna-se possível distribuir entre os contratantes responsabilidades.

O procedimento básico de elaboração da matriz de riscos (ainda sem alocação dos riscos) envolve certas etapas. Seguindo o padrão internacional, o Departamento de Transportes da Califórnia [2], por exemplo, estabelece as seguintes etapas em sua metodologia de gestão de riscos em contratos: 1) planejamento da gestão dos riscos; 2) identificação de riscos; 3) análise qualitativa dos riscos; 4) análise quantitativa dos riscos; 5) desenvolvimento de respostas aos riscos; 6) monitoramento dos riscos identificados.

Um procedimento posterior é que vai envolver a devida alocação dos riscos identificados relativos à execução contratual entre as partes. Para tanto, Timothy Irwin [3] propõe um interessante princípio para a alocação de riscos, baseado na capacidade de cada parte do contrato para lidar com diferentes aspectos do evento de risco. Nesse contexto, a alocação determinada pelo princípio levará em consideração os seguintes aspectos: 1) capacidade de influência sobre a probabilidade de ocorrência do fator de risco; 2) capacidade para se antecipar ou dar uma resposta ao fator de risco; 3) capacidade para absorção dos impactos evento de risco.

A previsão da matriz já no momento de publicação do edital da licitação tem uma vantagem clara: a de permitir que o cálculo do valor estimado da contratação leve em consideração taxa de risco compatível com o objeto a ser contratado e com os riscos atribuídos ao contratado. Uma vez estabelecida a matriz de riscos, o contrato deverá refletir a alocação de responsabilidades realizada, especialmente quanto:

1) às hipóteses de alteração para o restabelecimento da equação econômico-financeira do contrato nos casos em que o sinistro seja considerado na matriz de riscos como causa de desequilíbrio não suportada pela parte que pretenda o restabelecimento;

2) à possibilidade de resolução quando o sinistro majorar excessivamente ou impedir a continuidade da execução contratual; e

3) à contratação de seguros obrigatórios previamente definidos no contrato, integrado o custo de contratação ao preço ofertado.

No entanto, a formulação adequada de uma matriz de alocação de riscos é essencial e, caso adotados procedimentos ineficazes, uma matriz mal elaborada poderá gerar diversos problemas:

a) Problemas no preço estimado e na licitação: como a matriz afeta o preço estimado da contratação pela incidência de uma taxa de riscos, se ela for mal formulada é possível que o valor contratado fique distorcido, gerando sobrepreço e potencial dano aos cofres públicos.

Além disso, a matriz também pode prever a contratação de seguros obrigatórios que são desnecessários, fazendo com que o contratado incorra em custos que não precisaria realmente incorrer. Outro ponto a ser observado é o fato de que uma matriz mal formulada pode permitir a atuação oportunista de alguma das partes que, na verdade, detinha capacidade para mitigar o risco, mas pode resolver não comunicar tal situação para obter benefícios com a ocorrência do risco em caso de má alocação;

b) Problemas na execução contratual: uma matriz mal formulada pode gerar conflitos acerca da alocação de riscos caso alguma das partes venha a discordar posteriormente da responsabilidade assumida. Ademais, a matriz deficiente pode fazer com que uma das partes do contrato assuma riscos de maneira excessiva, gerando um desequilíbrio de responsabilidades e tornando muito oneroso o contrato.

Também é possível que a matriz traga uma má avaliação quantitativa da probabilidade de ocorrência dos riscos, o que trará distorções na execução do contrato e poderá gerar onerosidade excessiva.

Percebe-se, assim, que não adianta adotar procedimentos muito simplificados para a elaboração da matriz de alocação de riscos, já que uma matriz frágil pode trazer prejuízos concretos. É necessário que a decisão acerca da previsão ou não da matriz no contrato envolva uma análise de custo-benefício, de modo que não sejam elaboradas matrizes inadequadas.

Cabe ressaltar que, ainda que o contrato não contenha matriz de alocação de riscos, a realização de um adequado gerenciamento de riscos de todo o procedimento de contratação é essencial para uma gestão pública eficaz.

 


[1] Além disso, a matriz também será obrigatória para contratações que adotem os regimes de contratação integrada e semi-integrada (artigo 22, §3º, da Lei nº 14.133/2021). Nesses casos, a necessidade decorre de uma maior incerteza a respeito dos elementos do projeto a ser desenvolvido.

[2] California Department of Transportation (Caltrans). Project Risk Management Handbook: A Scalable Approach, 2012

[3] IRWIN, Timothy. Government guarantees: allocating and valuing risk in privately financed infrastructure projects. Nova Iorque: World Bank Publications, 2007. E-book. p. 56-62.

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