Opinião

A coisa julgada tributária
e o Supremo Tribunal Federal

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30 de março de 2023, 9h19

Fala-se muito, nas últimas semanas, sobre a coisa julgada tributária, em discussão no Supremo Tribunal Federal. Aguarda-se a publicação do acordão que julgou os Recursos Extraordinários 949.297 e 955.227 (Temas 881 e 885), devendo ser apresentados, provavelmente, embargos de declaração. Durante o julgamento dos recursos, a discussão, viva fora da Corte, levou a alegações de que se estaria "quebrando as decisões definitivas", "relativizando a coisa julgada" e por aí afora. Aliás, muitos argumentaram que deveria ter sido proposta ação rescisória.

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Porém, quando se está diante de coisa julgada que recai sobre uma relação jurídica continuativa — a coisa julgada tipicamente tributária —, sempre é possível perguntar a respeito da cessação da sua eficácia. Ao se analisar a coisa julgada relativa à decisão que, incidentalmente, reconheceu a inconstitucionalidade da contribuição social sobre o lucro, indagando-se qual seria o efeito sobre ela de posterior decisão firmada em ação direta ou de precedente estabelecido em recurso extraordinário, sequer se poderia cogitar sobre revisão da coisa julgada ou a respeito da sua rescindibilidade.

Note-se que ninguém falou em vício na decisão, capaz de contaminar a coisa julgada e permitir a sua rescisão. No entanto, deixou-se de perceber, desde logo e com clareza, que não se estava tentando rediscutir a decisão acobertada pela coisa julgada ou mesmo desconstitui-la.

Evidentemente, era possível apenas discutir sobre a eficácia temporal da coisa julgada. Em outras palavras, caberia somente investigar se a decisão que declarou a constitucionalidade da contribuição social sobre o lucro, na ADI 15-2-DF, fez cessar a eficácia temporal da coisa julgada — que, em momento anterior e sem a prática de qualquer vício, formou-se sobre decisão que legitimamente declarou a inconstitucionalidade da contribuição social (em controle difuso).

Afirmar a cessação da eficácia temporal da coisa julgada, como salta aos olhos, nada tem a ver com pretender desconstituir a coisa julgada sob a acusação de que a lei, que se supôs inconstitucional, foi posteriormente declarada constitucional. Isso é obviamente impossível, ou apenas viável para quem confunde efeitos da lei com coisa julgada.

Ora, respeitar a coisa julgada não significa reconhecer (ou não) efeitos a uma lei (in)constitucional, mas reconhecer (ou não) efeitos a uma lei que determinado juízo teve por (in)constitucional, ou melhor, reconhecer os efeitos de um legitimo juízo acerca da constitucionalidade[1].

Como é sabido, a coisa julgada opera como lex specialis, separando a disciplina do direito feito valer em juízo da norma geral e abstrata, daí decorrendo a inoperatividade da superveniente declaração de (in)constitucionalidade da norma geral e abstrata com base em que se decidiu[2].

Caso uma decisão de (in)constitucionalidade, revestida por coisa julgada, pudesse ser desfeita em razão de posterior decisão do STF em sentido inverso, não apenas se poderia dizer, com toda razão, que a coisa julgada estaria sendo negada, mas também que a própria existência do controle difuso estaria sendo desconsiderada. Nesse caso é que caberia falar em desrespeito ou em relativização (o que é o mesmo) da coisa julgada.

Não há como confundir a coisa julgada material com a sua eficácia temporal. Se a coisa julgada impede a rediscussão e um novo julgamento sobre o que já foi decidido, a sua eficácia temporal, nas relações duradouras ou continuativas, certamente tem limites. Esses limites são ditados pela alteração dos fatos e da ordem jurídica, em que a causa de pedir se funda para dar origem à coisa julgada.

Diante de uma relação duradoura no tempo, a "modificação no estado de direito" (artigo 505, CPC) faz cessar a eficácia temporal da coisa julgada. Não fosse assim, a decisão que, por exemplo, isenta alguém de pagar alimentos por falta de lei que lhe atribua dever alimentar, seria uma imunidade contra o legislador ou a alteração da ordem jurídica.

Portanto, o que realmente importaria, a princípio, é se uma decisão de constitucionalidade, firmada em ação direta de inconstitucionalidade, constitui "modificação no estado de direito" capaz de paralisar a eficácia temporal de coisa julgada incidente sobre decisão que afirmou a inconstitucionalidade da lei. Nessa linha, aliás, é oportuno lembrar que é indispensável saber se todo e qualquer precedente vinculante do Supremo Tribunal, firmado em recurso extraordinário, pode paralisar a eficácia de coisa julgada.

Considerando-se o debate que recentemente se travou sobre a interpretação dos artigos 46 e 51 do CTN em torno da incidência do IPI, do qual resultaram decisões que transitaram em julgado no STJ (Superior Tribunal de Justiça) em favor dos contribuintes seguida de precedente do Supremo que interpretou os mesmos dispositivos legais em sentido oposto (RE 946.648-SC; tema 906), não há como deixar de ver a diferença entre i) decisão de (in)constitucionalidade que segue coisa julgada com sinal inverso e ii) decisões interpretativas da lei nos termos da Constituição em sentidos diferentes. A alteração da jurisprudência, ou da interpretação da lei, evidentemente não representa "modificação do estado de direito", requisito exigido pelo artigo 505 do CPC para a cessação da eficácia da coisa julgada.

Não é preciso muito esforço para perceber que não há modificação no "estado de direito" quando uma interpretação é contrariada por outra. A alteração da jurisprudência ou da interpretação faz parte do modo de ser do sistema de distribuição de justiça, de modo que, caso a eficácia temporal da coisa julgada houvesse de cessar em razão de mera mudança interpretativa, a coisa julgada, à partida, jamais poderia alcançar o seu escopo ou tutelar a segurança jurídica.

No caso ora em análise na Corte, deixou-se de questionar acerca da necessidade de a cessação da eficácia da coisa julgada ser declarada judicialmente na própria decisão que declarou a constitucionalidade. A eficácia da coisa julgada está no plano normativo, não podendo cessar como se dependesse da vontade de alguém ou, pior ainda, da interpretação de um dos litigantes submetidos à própria coisa julgada.

Caso a afirmação da alteração do direito e, por consequência, a paralisação da eficácia da coisa julgada, houvesse sido deixada às partes, o direito teria instituído o caos no local em que buscou instaurar a segurança jurídica. Se a coisa julgada tutela a segurança jurídica daquele que obteve uma decisão favorável, bem como a estabilidade do sistema de distribuição de justiça, é absurdo imaginar que o litigante não satisfeito com a perpetuação da coisa julgada no tempo tem o direito de invocar a modificação do direito para deixar de observá-la. Fosse assim, ter-se-ia admitido não apenas espaço para a negação unilateral da coisa julgada, mas à própria transgressão da segurança jurídica, inaugurando-se uma situação mais insegura do que aquela que se quis evitar com a instituição da coisa julgada.

Do mesmo modo que a coisa julgada, ainda que viciada, prevalece diante da inércia do interessado em propor ação rescisória, a eficácia temporal da coisa julgada só desaparece mediante declaração judicial. Ou seja, não é porque um Juiz absolutamente incompetente proferiu uma sentença sujeita a desconstituição por meio de ação rescisória, por exemplo, que alguém pode se opor à coisa julgada viciada sem uma decisão de rescisão. Esse exemplo, embora banal, também serve para demonstrar que a cessação dos seus efeitos temporais exige a declaração de um Juiz ou de uma Corte.

A declaração judicial da cessação da eficácia da coisa julgada é necessária porque a decisão de (in)constitucionalidade não é suficiente, por si, para fazer cessar a eficácia temporal da coisa julgada, da mesma forma que a lei não é. Quando um (novo) dispositivo legal ou decisão de (in)constitucionalidade incide sobre relação jurídica definida com autoridade de coisa julgada, é necessária decisão judicial que reconheça a pertinência e a suficiência da alteração do direito para fazer a eficácia temporal da coisa julgada cessar[3].

Uma decisão só paralisa a eficácia temporal da coisa julgada quando expressamente assim declara. Sublinhe-se que uma decisão da Corte altera a ordem jurídica, para efeito de paralisar a coisa julgada no tempo, apenas quando inverte o sinal da (in)constitucionalidade que ampara decisão acobertada pela coisa julgada. Não é qualquer precedente que tem a potencialidade de fazer a coisa julgada cessar, assim como não é qualquer coisa julgada (que ainda regula uma relação jurídica) que pode ser afetada por um precedente. Por isso, é preciso que a Corte, ao estabelecer a decisão ou o precedente vinculante, declare que a coisa julgada perdeu eficácia.

A garantia da coisa julgada seria um flatus vocis se não fosse a necessidade de declaração judicial para a sua cessação. A suposição de que um fato, lei, decisão ou precedente vinculante é suficiente para fazer cessar os efeitos temporais da coisa julgada é simplesmente retirar do Judiciário o poder de garanti-la e zelar pela sua preservação. E o pior: transferindo-o aos litigantes — ou seja, aos que estão envolvidos na situação litigiosa acobertada pela coisa julgada —, os quais, por essa simples razão, evidentemente não têm autoridade para afirmar que a coisa julgada cessou. Bem por isso, Canotilho é contundente quando, ao analisar o artigo 282, 3, da Constituição portuguesa, adverte que, mesmo nas hipóteses de coisas julgadas em matérias de ilícito penal, ilícito disciplinar e ilícito de mera ordenação social, a exceção à ressalva da coisa julgada "não opera automaticamente como mero corolário lógico da declaração de inconstitucionalidade". "A revisão de sentenças transitadas em julgado deve ser expressamente decidida pelo Tribunal em que se declare a inconstitucionalidade da norma [4]."

Isso tudo quer dizer que, quando a decisão/precedente nada diz sobre a coisa julgada, a sua cessação fica naturalmente na dependência de ação ou de declaração incidental proferida em ação envolvendo os mesmos litigantes que discutiram o direito que deu origem à coisa julgada. Não obstante, segundo o que até aqui foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, a decisão proferida na ADI 15-2-DF, mesmo sem nada declarar, paralisou a eficácia temporal da coisa julgada, como se a sua cessação fosse um efeito "anexo" de determinadas decisões gerais e vinculantes.

Essa é a primeira vez que se afirma, na jurisdição brasileira, que uma decisão de constitucionalidade, proferida em uma ação de inconstitucionalidade, faz cessar a eficácia temporal da coisa julgada para todos sem nada declarar. E aí surge a questão, também mal entendida, da modulação dos efeitos temporais da decisão. Certamente, não há como pensar na modulação da eficácia temporal da decisão proferida no ADI 15-2-DF, como se a modulação de efeitos pudesse operar em face de uma decisão tomada no passado, mas na modulação dos efeitos da decisão que está para ser publicada.

Na verdade, se as decisões do Judiciário transmitem confiança para os jurisdicionados, permitindo-lhes estabelecer seus projetos de vida e programas empresariais com base nos seus pronunciamentos, é certo que nenhum contribuinte poderia imaginar que, em uma decisão de constitucionalidade tomada em ADI, a declaração da cessação da eficácia temporal da coisa julgada é "invisível" ou "implícita", até porque que nenhuma decisão, na história da jurisprudência brasileira, assim já havia afirmado.


[1] Miguel Galvão Teles, Inconstitucionalidade pretérita, Nos dez anos da Constituição, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 329; Miguel Galvão Teles, Temporalidade jurídica e Constituição, 20 Anos da Constituição de 1976, Coimbra: Coimbra Ed., 2000, p. 226 e ss.

[2] Andrea Proto Pisani, Appunti sul giudicato civile e sui suoi limiti oggettivi, Rivista di Diritto Processuale, 1990, p. 390.

[3] Luiz Guilherme Marinoni, Processo Constitucional e Democracia, 2ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 1182-1183.

[4] J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.005.

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