Opinião

Regime jurídico do concurso de créditos tributários entre entes federados

Autor

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

29 de março de 2023, 18h27

O julgamento da ADPF 357/STF foi uma consagração do federalismo aplicado à seara tributária. O julgamento previu que o estabelecimento de hierarquia e preferências na cobrança de créditos de dívida pública entre União, estados, Distrito Federal e municípios e suas respectivas entidades da administração indireta contrariaria o pacto federativo [1]. O objetivo foi garantir um federalismo de equilíbrio e a isonomia entre entes federados.

A consequência imediata foi a declaração de não recepção do artigo 187 do CTN [2] e do parágrafo único do artigo 29 da LEF [3]. Na decisão, também houve a determinação de cancelamento da Súmula 563/STF [4]. O enunciado previa que o artigo 187 do CTN seria compatível com o disposto no artigo 9º, I, da CF.

Posteriormente, a 1ª Seção do STJ determinou o cancelamento da Súmula 497/STJ por aplicação do entendimento firmado na ADPF 357/STF. O enunciado previa que os créditos de autarquias federais prefeririam os créditos estaduais em relação a penhoras sobre o mesmo bem [5].

 A decisão na ADPF 357 foi revolucionária e fortalecedora do federalismo brasileiro. Contudo, a ausência de previsão de qual seria o critério para o concurso de credores entre entes federados potencializou o debate e permitiu o surgimento de uma celeuma aparente sem ainda solução sedimentada.

O enunciado sumular cancelado 497/STJ dava indícios de um entendimento possível. Expressamente, associava-se a matéria à prévia penhora.

De fato, a regra da "anterioridade da penhora" encontra respaldo no artigo 908, §2º, do CPC e a conclusão pela aplicação desse critério seria quase que uma consequência imediata [6].

O dispositivo associado ao artigo 797 do CPC, que estabelece a penhora como a concretização do direito de preferência sobre um determinado bem pelo exequente que a requereu consagra a tese de que a ordem de preferência seria estabelecida pelo momento de efetivação da penhora [7]. O artigo 797 prevê ainda que esse procedimento somente não seria aplicável no caso de insolvência civil.

Essa interpretação inicial e natural foi utilizada pela Procuradoria da Fazenda Nacional no Parecer SEI nº 18295/2021/ME. O mencionado parecer distinguiu os devedores solventes dos devedores insolventes. Para os solventes, deveria ser aplicado a regra da "anterioridade da penhora" pela aplicação dos artigos 797 c/c 908, §2º, ambos do CPC. Para os devedores insolventes, deveria ser aplicada a regra do artigo 962 do CC, que prevê o rateio na proporção do crédito [8].

 Essa visão inicial de aplicação dos artigos 797 c/c 908, §2º, do CPC foi, inclusive, adotada por diversos julgados, como é possível perceber pela seguinte ementa do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina):

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. INSURGÊNCIA CONTRA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE REJEITOU A IMPUGNAÇÃO. ALEGAÇÕES DE NULIDADE DA PENHORA E DE ABANDONO DA CAUSA. 1. O STF, ao julgar a ADPF nº 357/DF, decidiu que as normas previstas no parágrafo único do artigo 187 da Lei nº 5.172/1966 ( Código Tributário Nacional) e no parágrafo único do artigo 29 da Lei nº 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais) não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988. 2. Em decorrência, a celeuma envolvendo, in casu, a multiplicidade de penhoras, é resolvida pela regra do artigo 908 do CPC, a ser observada na época de pagamento aos credores. (…) RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO". (TJSC. AI 50054606820228240000, desembargadora Vera Lúcia Ferreira Copetti, 4ª Câmara de Direito Público, Data de Julgamento: 30/6/2022).

No entanto, a conclusão de aplicação da regra da "anterioridade da penhora" para entes federados é equivocada. A ADPF 357/STF não só estabeleceu a não recepção do artigo 187 do CTN e do artigo 29, parágrafo único da LEF, ela também impôs a impossibilidade de preferência entre entes federados e igualdade de acesso ao crédito. Portanto, a proibição constitucional de estabelecimento de preferência é aplicável ao CTN, mas também ao CPC.

Como se não bastasse essa linha de argumentação, o STJ, no julgamento do EREsp nº 1.603.324/SC, dispensou a existência de ordem de penhora na execução fiscal para a habilitação de crédito de natureza tributária nos autos da execução de título extrajudicial em que é realizada a arrematação de bem do devedor [9].

Com a impossibilidade de estabelecimento de preferência pela legislação infraconstitucional e a desnecessidade de penhora, a única regra aplicável aos entes federados é a prevista no artigo 962 do CC, que prevê a proporcionalidade de crédito e a igualdade entre credores.

Nesse sentido, é possível a observância da seguinte ementa do TJ-PR (Tribunal de Justiça do Paraná):

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA EM CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PAGAMENTO DO PRECATÓRIO REQUISITÓRIO JÁ EFETUADO. ANOTAÇÃO DE PENHORAS NO ROSTO DOS AUTOS EM DETRIMENTO DE CESSIONÁRIAS DOS CRÉDITOS. INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE CONCURSO DE CREDORES NO TOCANTE AO CRÉDITO DE UMA DAS CESSIONÁRIAS. RECONHECIMENTO DA NÃO RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 DAS NORMAS DO ARTIGO 187, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CTN E DO ARTIGO 29, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEF PELO STF, AS QUAIS ESTABELECIAM A PREFERÊNCIA DOS CRÉDITOS DA FAZENDA NACIONAL SOBRE A ESTADUAL E MUNICIPAL, BEM COMO DA ESTADUAL SOBRE A ÚLTIMA NO ÂMBITO DA ADPF Nº 357. NECESSIDADE DE ESTABELECER A FORMA DE RATEIO A SER OBSERVADA ENTRE OS CRÉDITOS DE MESMO PRIVILÉGIO DA FAZENDA PÚBLICA FEDERAL E DA FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL. POSICIONAMENTO REITERADO DO STJ NO SENTIDO DE QUE DEVE SER ASSEGURADA A PROPORCIONALIDADE ENTRE OS CREDORES, POUCO IMPORTANDO A ANTERIORIDADE DA PENHORA. QUESTÃO REGIDA PELO ARTIGO 962 DO CC. PRECEDENTES. DECISÃO MANTIDA.RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO". (TJPR. AI 00411853120228160000, desembargadora Maria Aparecida Blanco de Lima, 4ª Câmara Cível, Data de Julgamento: 12/3/2023, Data de Publicação: 13/3/2023).

Em resumo, a partir do julgamento da ADPF 357/STF, cinco conclusões são possíveis:

a) o artigo 187 do CTN e o artigo 29, parágrafo único, da LEF não foram recepcionados pela Constituição;

b) o STF vedou o estabelecimento de preferências pela legislação infraconstitucional por ofensa ao pacto federativo;

c) o STF proibiu interpretações de legislação infraconstitucional que estabeleçam preferências entre entes federados;

d) o entendimento adotado no Parecer SEI nº 18295/2021/ME é inconstitucional por permitir preferência entre entes federados pela cronologia da penhora;

e) a adoção da regra do artigo 962 do CC, de proporcionalidade dos créditos, permite o atendimento do comando normativo estabelecido pela ADPF 357/STF.

Assim, a ADPF 357/STF vincula não só pelo comando específico de não recepção dos artigos 187 do CTN e 29, parágrafo único, da LEF, mas também pelo pressuposto de impossibilidade de estabelecimento de preferências entre entes federados, o que veda a regra da "anterioridade da penhora" e impõe a aplicação do artigo 962 do CC.


[1] STF. ADPF 357/DF, ministra Cármen Lúcia, Data do julgamento: 24/06/2020, Data da Publicação: 07/10/2021.

[2] Artigo 187 do CTN. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005) (Vide ADPF 357).

Parágrafo único. O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem: (Vide ADPF 357)

I – União; (Vide ADPF 357)

II – Estados, Distrito Federal e Territórios, conjuntamente e pró rata; (Vide ADPF 357)

III – Municípios, conjuntamente e pró rata. (Vide ADPF 357)

[3] Artigo 29 da LEF. A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento. (Vide ADPF 357).

Parágrafo Único – O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem: (Vide ADPF 357).

I – União e suas autarquias; (Vide ADPF 357).

II – Estados, Distrito Federal e Territórios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata; (Vide ADPF 357).

III – Municípios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata. (Vide ADPF 357)

[4] Súmula 563/STF (cancelada). O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do artigo 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no artigo 9º, I, da Constituição Federal.

[5] Súmula 497/STJ (cancelada). Os créditos das autarquias federais preferem aos créditos da Fazenda estadual desde que coexistam penhoras sobre o mesmo bem.

[6] Artigo 908 do CPC. Havendo pluralidade de credores ou exequentes, o dinheiro lhes será distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas preferências.

§1º No caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem sobre o bem, inclusive os de natureza propter rem , sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência.

§2º Não havendo título legal à preferência, o dinheiro será distribuído entre os concorrentes, observando-se a anterioridade de cada penhora.

[7] Artigo 797. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal, realiza-se a execução no interesse do exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados.

Parágrafo único. Recaindo mais de uma penhora sobre o mesmo bem, cada exequente conservará o seu título de preferência.

[8] Artigo 962 do CC. Quando concorrerem aos mesmos bens, e por título igual, dois ou mais credores da mesma classe especialmente privilegiados, haverá entre eles rateio proporcional ao valor dos respectivos créditos, se o produto não bastar para o pagamento integral de todos.

[9] STJ. EREsp nº 1.603.324/SC, relator ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 21/9/2022, DJe de 13/10/2022.

Autores

  • é doutor, mestre e bacharel em Direito pela USP, professor permanente do mestrado profissional do Cers, professor adjunto da UPE e da Asces/Unita, membro da Annep e do IEA da Asces/Unita, ex-assessor de ministro do STJ, advogado, procurador do estado de Pernambuco e coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE.

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