Opinião

Projeto de nova Lei de Impeachment: cautelas contra retrocessos e omissões

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28 de março de 2023, 6h05

No último dia 23 de março fora apresentado no Senado o PLS 1.388/2023[1], dispondo a respeito dos crimes de responsabilidade e disciplinando o respectivo processo de julgamento. A proposição pretende substituir a Lei 1.079 de 10 de abril de 1950 que atualmente trata da matéria. Por isso uso a alcunha "impeachment".

Ayrton Vignola/Fiesp
Ayrton Vignola/Fiesp

É preciso, antes de qualquer avaliação posterior, verificar que a despeito da expressão "crime" de responsabilidade, de fato não se trata necessariamente de uma legislação "criminal" clássica. Como bem descreve o glossário disponível no sítio eletrônico do Senado:

Crime de responsabilidade
A rigor, não é crime, e sim a conduta ou comportamento de inteiro conteúdo político, apenas tipificado e nomeado como crime, sem que tenha essa natureza. A sanção nesse caso é substancialmente política: perda do cargo ou, eventualmente, inabilitação para exercício de cargo público e inelegibilidade para cargo político.[…][2]

Busca-se muito mais uma salvaguarda política contra abusos atentatórios ao Estado de Direito. Como referem Luiz Regis Prado e o professor Diego Prezzi Santos:

As infrações em referência operam como instrumentos de contenção na salvaguarda da coluna vertebral do Estado de Direito: a separação dos poderes, as instituições democráticas, o livre exercício dos direitos, a segurança e probidade, o respeito às diretrizes normativas orçamentárias, entre outras situações imprescindíveis à estabilidade política, econômica e jurídica do país.[3]

Projeto de Lei 1.833: avanços, retrocessos e omissões
Por certo o PL traz alguns avanços. Finalmente elucida que os crimes de responsabilidades quanto a autoridades judiciárias não estão limitados aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Mas é preciso cautela.

A proposta legislativa deve deixar mais claro que a denúncia de crime de responsabilidade contra um magistrado não implica em instância revisora da decisão judicial proferida.

Ainda que seja uma decisão judicial seja o ato que supostamente viole as regras da nova Lei de Impeachment. Caso a parte deseje alterar a "decisão" deverá usar os recursos cabíveis. Mas, a denúncia por crime de responsabilidade não está adstrita ao recurso. Nem servirá como substituto. Nem influenciará na avaliação do recurso, e o julgamento do recurso não necessariamente excluirá o cometimento do crime de responsabilidade.

Em suma, deve-se deixar mais clara a não comunicação das instâncias. Estranho? De forma nenhuma. Apenas um exemplo: um magistrado pode ter recebido vantagem indevida (artigo 14, inciso IV do PL), para proferir de forma mais célere uma decisão cujo conteúdo seja legítimo. Logo, a manutenção da decisão, em seu conteúdo, não afasta o crime de responsabilidade do recebimento de vantagem indevida.

Cabe advertência severa quanto à redação proposta para o parágrafo único do artigo 14 e o §3º do artigo 17 quando tratam de evitar o que a doutrina denomina "crime de hermenêutica", ou crime uma divergência de interpretação jurídica. Ocorre que essas verdadeiras excludentes de ilicitude estão direcionadas exclusivamente para a proteção da Magistratura e do Ministério Público. Isso é um erro.

Um legislador, na tramitação de um processo legislativo, também realizada a mesmíssima interpretação de fatos e de regras de direito. Um agente do Poder Executivo, quando requisita um parecer de sua Procuradoria, estará agindo com base em uma interpretação do direito igualmente legítima. Ora, se a "mera interpretação jurídica" não pode ser crime para o Ministério Público, igualmente não poderá ser para o legislador. E se não será crime para a magistratura, igualmente não poderá ser para o Poder Executivo.

Caso contrário, seria permitir que órgãos e poderes não-eleitos, pudessem fazer uma opção política quando os agentes eleitos, pudessem realizar a opção legítima entre duas posições jurídicas plenamente defensáveis jurisprudencial e/ou doutrinariamente. O Direito raramente terá, para um mesmo problema, uma única opção jurídica. Havendo mais de uma, a legitimidade da escolha deverá ser um ato "político", no mais elevado sentido da expressão. E, como tal, deverá fazê-lo o detentor da legitimidade por meio do voto.

Outra questão muito flagrante, especialmente quando se trata do cometimento de crime de responsabilidade pelos governadores de Estado, é a omissão quanto a um tipo que combata a "violação da autonomia municipal". O Brasil é o maior país municipalista do mundo. Mas, ainda hoje, os municípios são enfraquecidos por invasão de suas competências por autoridades estaduais. Não é preciso mencionar situações específicas, mas há casos de toda espécie apontando a violação da autonomia local. Não são alvo de correção pois, hoje, o remédio disponível seria a intervenção federal nos Estados (artigo 34, VII, "c" da Constituição). E todos sabemos que uma intervenção federal tem um poder destruidor para toda a federação. Por exemplo: interrompem-se as tramitações de Propostas de Emendas Constitucionais, ex vi artigo 60, §1º da Constituição. Se a própria Constituição taxa a violação da autonomia municipal como ato que possa sujeitar a pessoa jurídica (Estado) a uma intervenção, de maior sorte, pode a Lei de Crime de Responsabilidade tratar como ilícito o ato da pessoa física (autoridade) que der causa a tamanha violação constitucional. E mais: não será preciso comprometer a federação com uma intervenção na pessoa jurídica.

Outro retrocesso é restrição da legitimidade para oferecer denúncias. Na atual legislação os artigos 14, 41 e 75 autorizam qualquer cidadão a oferecer denúncia. No texto do projeto fica restrita a partidos, à OAB, e Entidades. Quanto a pessoas físicas, precisarão coletar milhares de assinaturas. A denúncia de impeachment é um ato de proteção da democracia. Não deve ser limitado, mas aberto. Cabe ao Parlamento, logicamente, o filtro sensível de cada situação. A limitação proposta na redação do projeto de Lei enfraquece o cidadão, e, acima disso, retira do Parlamento a análise dos casos sensíveis que não viriam como decorrência de tamanha restrição da legitimidade para oferecimento de denúncias.

O projeto de lei como se encontra cria ainda duas dificuldades para recurso contra o indeferimento da denúncia pela Presidência da Casa de Leis responsável pela tramitação. Primeiro, restringe o direito de recurso, excluindo o denunciante, e, até mesmo para os parlamentares, restringindo a uma proporção muito grande da composição da Casa de Leis. Segundo, cria uma fase intermediária (recurso para a mesa diretora), que não é sequer necessária, pois se pode submeter o recurso quanto a admissibilidade diretamente à soberania do plenário. Não se trata de decisão de mérito, mas, de mera admissibilidade. Tanto que é comum parlamentares votarem pela admissão de um procedimento, por estar formalmente adequado, mas, no mérito, votarem contra, pois não concordam com o conteúdo. Logo, as regras recursais podem ser, portanto, simplificadas.

O projeto ainda cria um conceito indeterminado extremamente perigoso contra os denunciantes. Usa o conceito de "abuso de direito" de denunciar. Conceito que no Brasil tem justificado toda sorte de arbitrariedades. Não é o povo que precisar temer as autoridades, mas o contrário: é a autoridade que precisa saber que se encontra sob o escrutínio popular. Quando o Ministério Público entra com uma ação civil pública que no final se vê vazia de conteúdo, mas que arruinou a vida de pessoas ao longo de décadas, não existe sequer condenação em sucumbência. Como diz a lei: "exceto em caso de comprovada má fé". Má fé já é um conceito perigoso. Menos perigoso que "abuso de direito". Pode-se usar a comprovada má-fé, com presunção da boa-fé, e ônus probatório ao denunciado.

Por fim, o PL cria tipos específicos para o Ministério Público. Ocorre que hoje, após decisão do Supremo na ADI 4.636 e no RE 1.240.999 a Defensoria aproxima-se de um órgão "ministerial", como poderes assemelhados ao do MP. Logo, deve existir um capítulo específico para a Defensoria, ou um dispositivo que determine a aplicação por simetria das regras do Ministério Público na citada legislação.

Nessas linhas gerais — pois há uma infinidade de potenciais alterações — o PL representa uma virada na visão nacional a respeito do crime de responsabilidade, especialmente quanto ao Poder Judiciário, ao MP e às autoridades militares. Mas, deve ser melhor colmatado para não se afastar do real objetivo: expurgar da coisa pública autoridades violadoras de regras republicanas, que criem instabilidade institucional.

Conclusão
O debate apenas se inicia. Que o Congresso pondere cada elemento contido no projeto de lei para a que a "Nova Lei de Impeachment" de fato e direito se converta em um avanço democrático e não em mais um fardo sobre os Poderes Executivo e Legislativo, acarretando, via transversa, o gigantismo judicial e do ministério público. Lado outro, igualmente, que não se converta em mero ato de vingança contra os órgãos de controle ou contra a jurisdição.

Essa sintonia fina, certamente, será obtiva no fluxo e contrafluxo do processo legislativo.

E viva a democracia!

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