Opinião

ADI 4.757, LC 140 e a competência dos municípios em matéria ambiental

Autores

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

  • Andrea Struchel

    é advogada diretora de Licenciamento Ambiental da Secretaria do Verde de Campinas (SP) mestre em Urbanismo PUC-Campinas e diretora jurídica da Anamma (Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente).

  • Marcelo Marcondes

    é reitor do Instituto Anamma.

25 de março de 2023, 12h15

A Lei Complementar 140/2011 regulamentou a competência administrativa ambiental, fixando normas para a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal. Essa norma teve por escopo promover a descentralização da gestão ambiental, a otimização dos esforços e recursos públicos e a segurança jurídica, de forma a contribuir para a efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado.

Spacca
A ADI 4.757 foi proposta pela Associação Nacional dos Servidores do Ibama (Asibama), a qual defendia que a LC 140 era inteiramente inconstitucional por entender que a competência administrativa ambiental não poderia ser objeto de disciplinamento. A ministra Rosa Weber foi a relatora da ação, cujo objetivo foi declarar a inconstitucionalidade integral dessa lei, ou ao menos dos seguintes dispositivos, que foram questionados com maior ênfase: artigo 4º, V, VI, artigo 7º, XII, XIV, h e parágrafo único, artigo 8º, XIII e XIV, artigo 9º, XIII e XIV, artigo 14, §§ 3º e 4º, artigo 15, artigo 17, §§ 2º e 3º, artigo 20 e artigo 21).

O julgamento da ADI 4.757 referendou a constitucionalidade da LC 140, consagrando de forma unânime a ideia do federalismo ecológico e da descentralização da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) [1]:

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4. Da interpretação do art. 225 da Constituição Federal, fundamento normativo do Estado de Direito e governança ambiental, infere-se estrutura jurídica complexa decomposta em duas direções normativas. A primeira voltada ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em uma perspectiva intergeracional. A segunda relacionada aos deveres de proteção e responsabilidades atribuídos aos poderes constituídos, aos atores públicos e à sociedade civil em conjunto. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente, densificada nos seus deveres fundamentais de proteção, impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir legislativo e administrativo. O que significa dizer que tanto a Política Nacional do Meio Ambiente, em todas as suas dimensões, quanto o sistema organizacional e administrativo responsável pela sua implementação, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, dos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, devem traduzir os vetores normativos do constitucionalismo ecológico e do federalismo cooperativo.

5. A Lei Complementar nº 140/2011, em face da intricada teia normativa ambiental, aí incluídos os correlatos deveres fundamentais de tutela, logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo. Cumpre assinalar que referida    legislação não trata sobre os deveres de tutela ambiental de forma genérica e ampla, como disciplina o art. 225, §1º, IV, tampouco regulamenta o agir legislativo, marcado pela repartição concorrente de competências, inclusive no tocante à normatização do licenciamento em si.

6. O modelo federativo ecológico em matéria de competência comum material delineado pela Lei Complementar nº 140/2011 revela quadro normativo altamente especializado e complexo, na medida em que se relaciona com teia institucional multipolar, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), e com outras legislações ambientais, como a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei de Infrações penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente    (Lei nº 9.605/1998). O diálogo das fontes revela-se nesse quadro como principal método interpretativo.

(…)"

Houve ressalva a apenas dois itens, que foram a demora na análise da renovação da licença ambiental deverá instaurar a competência supletiva dos demais entes, e a possibilidade de o órgão não responsável por licenciar aplicar sanções administrativas ambientais se comprovada a omissão ou a insuficiência na tutela fiscalizatória, conforme consta no acórdão:

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14. Improcedência dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 4º, V e VI, 7º, XIII, XIV, h, XV e parágrafo único, 8º, XIII e XIV, 9º, XIII e XIV, 14 § 3º, 15, 17, caput e §§ 2º, 20 e 21, Lei Complementar nº 140/2011 e, por arrastamento, da integralidade da legislação. 15. Procedência parcial da ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal: (i) ao § 4º do art. 14 da Lei Complementar nº 140/2011 para estabelecer que a omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional na manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais instaura a competência supletiva dos demais entes federados nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, como previsto no art. 15 e (ii) ao § 3º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011, esclarecendo que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória"

No que diz respeito aos municípios, é importante destacar que esse julgado serviu para reforçar a descentralização da competência administrativa ambiental, ajudando a fortalecer a atuação dos entes locais:

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7. Na repartição da competência comum (23, III, VI e VII CF), não cabe ao legislador formular disciplina normativa que exclua o exercício administrativo de qualquer dos entes federados, mas sim que organize a cooperação federativa, assegurando a racionalidade e a efetividade nos encargos constitucionais de proteção dos valores e direitos fundamentais. Ademais, os arranjos institucionais derivados do federalismo cooperativo facilita a realização dos valores caros ao projeto constitucional brasileiro, como a democracia participativa, a proteção dos direitos fundamentais e a desconcentração vertical de poderes, como fórmula responsiva aos controles social e institucional. Precedentes.

8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública.

9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos arts. 14, § 4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional.

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Essa é a razão da referência ao princípio da subsidiariedade, que preza pela descentralização das ações e das políticas públicas, que assim seriam exercidas de forma mais próxima à população. Isso implica dizer que essa decisão vai em encontro aos acórdãos das ADIs 6.288/CE e 2.142/CE, julgamentos recentes e por unanimidade, que entenderam que os Municípios possuem competência administrativa originária em matéria ambiental nos assuntos de interesse local predominante. A ementa das ADI 6.288/CE, que também teve como relatora a ministra Rosa Weber, é bastante didática a respeito da autonomia dos entes locais em matéria ambiental:

"Ementa: ação direta de inconstitucionalidade. Direito ambiental e constitucional. Federalismo. Repartição de competências legislativas. Resolução do conselho estadual do meio ambiente do Ceará Coema/CE nº 02, de 11 de abril de 2019. Disposições sobre os procedimentos, critérios e parâmetros aplicados aos processos de licenciamento e autorização ambiental no âmbito da superintendência estadual do meio ambiente — Semace. Cabimento. Ato normativo estadual com natureza primária, autônoma, geral, abstrata e técnica. Princípio da predominância do interesse para normatizar procedimentos específicos e simplificados. Jurisprudência consolidada. Precedentes. Criação de hipóteses de dispensa de licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos potencialmente poluidores. Flexibilização indevida. Violação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225 da constituição da república), do princípio da proibição do retrocesso ambiental e dos princípios da prevenção e da precaução. Resolução sobre licenciamento ambiental no território do Ceará. Interpretação conforme para resguardar a competência dos municípios para o licenciamento de atividades e empreendimentos de impacto local. Procedência parcial do pedido."

Em igual sentido, o intuito da ADI 2.142/CE, que teve como relator o ministro Luís Roberto Barroso, foi garantir a interpretação conforme para restringir a aplicação da norma ao âmbito estadual, bem como fazer com a competência concorrente estadual em matéria ambiental não tenha o condão de afastar a atribuição municipal no que diz respeito aos assuntos de interesse local predominante:

"É inconstitucional interpretação do art. 264 da Constituição do Estado do Ceará de que decorra a supressão da competência dos Municípios para regular e executar o licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos de impacto local."

Habilitada no julgamento na condição de amicus curiae na gestão de Mauro Buarque, a Anamma (Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente) apresentou a sua derradeira manifestação na gestão de Marçal Cavalcanti, seu atual presidente, sempre no intuito de defender a descentralização da política ambiental. O fato é que não há dúvidas acerca da competência administrativa originária dos municípios em matéria ambiental nas atividades de interesse local predominante, sendo inconstitucional qualquer norma que dispuser sobre a matéria de forma diferente.

A publicação do acórdão da ADI 4.757 reforça a autonomia municipal para atuar na seara ambiental, seja em matéria de fiscalização, de sanções administrativas ou de licenciamento ambiental. A competência administrativa ambiental dos entes locais foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, cabendo agora aos gestores públicos aprofundar e aperfeiçoar cada vez mais o processo de descentralização da PNMA.

 


[1] O acórdão está disponível no seguinte site: https://digital.stf.jus.br/publico/publicacoes.

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