Controvérsias Jurídicas

A vulnerabilidade de crianças e adolescentes no mercado de consumo

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

24 de março de 2023, 15h23

Qualquer segmento da vida humana que permita a atuação de crianças e adolescentes deve ser analisado com o máximo cuidado pela sociedade. Considerando as características específicas de grandes metrópoles, como São Paulo, não são raras as vezes em que assistimos à presença de jovens em ambientes que anteriormente eram majoritariamente formados por adultos, como debates políticos, discussões sobre o ecossistema e a degradação dos recursos naturais ou na problematização do modus vivendi tradicional. A mistura intergeracional dos participantes do debate público é salutar, tendo em vista que cada um exporá seu ponto de vista de acordo com os valores sedimentados em um lapso temporal determinado. Todavia, tal fenômeno pode trazer consequências negativas para a formação biopsíquica de crianças e adolescentes, uma vez que deve ser levado em consideração que ainda estão em formação, e é nessa idade que os conflitos existenciais tendem a se intensificar.

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Não há dúvidas que o processo de sexualização precoce de jovens, por exemplo, pode gerar mudanças comportamentais que comprometerão toda a vida do indivíduo, tais como a gravidez indesejada; ou, em hipóteses mais severas, na formação de compulsões. Contudo, não só a sexualidade é desenvolvida prematuramente nas sociedades ocidentais contemporâneas, como também o comportamento voltado para o consumo. Cada vez mais cedo, crianças e adolescentes se veem como parte integrantes da sociedade de consumo, tendo, inclusive, um nicho de mercado segmentado de produtos e serviços especializados para cada faixa etária.

Por essa razão encontramos produtos (ex: bonecas, carrinhos, brinquedos e congêneres) e serviços (ex: jogos on-line, plataformas de entretenimento, streamings) voltados para crianças e adolescentes. Para disseminação de tais produtos, os profissionais de publicidade desenvolveram métodos de persuasão e captação de clientela cada vez mais eficazes, garantindo, assim, público comprador fiel de suas mercadorias.

Sabemos que, na sociedade de consumo, pessoas que não conseguem gerir bem suas finanças e controlar seus impulsos de compra podem sofrer graves consequências, tais como o desenvolvimento de distúrbios de acumulação e superendividamento. Por essa razão, cada vez mais faz-se premente a discussão acerca do desenvolvimento sustentável, visando a construção de um mercado economicamente vigoroso, porém, sem levar ao esgotamento de recursos naturais ou à destruição emocional e financeira do indivíduo.

O ato de consumir muitas vezes pode servir como forma compensatória de problemas de outras naturezas, comprar passa a preencher um vazio existencial ou causa sentimento instantâneo de recompensa. Desta forma, produtos e serviços podem ser adquiridos sem a menor necessidade, servindo apenas como válvula de escape de problemas cotidianos.

Os especialistas em propaganda e marketing conhecem esses mecanismos compensatórios e investem cada vez mais em publicidade de segmento, bombardeando a todo momento o cidadão com propagandas de todos os tipos de produtos e serviços. Se a sociedade como um todo se vê refém das propagandas em massa, imagine aqueles em situação de hipervulnerabilidade e pouca experiência de vida, como crianças e adolescentes.

Visando a dar maior proteção aos jovens como destinatários de publicidades, o artigo 37, § 2º, CDC, entendeu ser abusiva a oferta publicitária que explore a inexperiência de crianças: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança".

O CDC consagrou a ideia de presunção de vulnerabilidade do consumidor, vez que este apresenta condição de fragilidade ante os fornecedores. Alguns deles, em razão de circunstâncias específicas, apresentam vulnerabilidade mais acentuada do que outros, demandando, assim, especial atenção. É o caso, por exemplo, de consumidores portadores de deficiência, idosos e crianças e adolescentes, que passaram a ser chamados pela doutrina de hipervulneráveis.

"Nas relações de consumo, podemos considerar que todos os consumidores são vulneráveis, mas alguns são mais vulneráveis que outros, necessitando de proteção maior do que os consumidores em geral. São eles as pessoas portadoras de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes, que possuem proteção especial na Carta Magna" [1].

A vulnerabilidade pode ser técnica, informacional, jurídica ou fática, bastando a verificação de uma delas para que o consumidor, em situação de inferioridade, precise de especial assistência do Estado em sua proteção. Ressalte-se que vulnerabilidade não deve ser confundida com hipossuficiência, vez que esta última se trata de critério processual demonstrativo de dificuldade do consumidor em fazer a prova em juízo em razão de inferioridade cultural, técnica ou financeira. Nesses casos, o juiz ou a própria lei determinam a inversão do ônus da prova, tal como preceitua o artigo 6º, VIII, CDC: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor. VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências".

Dentre as razões fundantes desta especial proteção dada a crianças e adolescentes, está a falta de maturidade e de discernimento para decidir acerca de atos do dia a dia. Essa é a razão pela qual a própria Constituição Federal, em seu artigo 226, determinou que a é dever comum do Estado, família e sociedade, o zelo pelo melhor interesse dos menores.

A Psicologia é uma das áreas do conhecimento que mais se destaca no estudo do desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial de crianças e adolescentes, sendo que tais aspectos são segmentados em cinco períodos da infância, quais sejam: pré-natal, primeira infância, segunda infância, terceira infância e puberdade. O desenvolvimento físico diz respeito ao crescimento cerebral e do corpo como um todo; o cognitivo, por sua vez, analisa o desenvolvimento das habilidades mentais, e por derradeiro, o psicossocial foca em questões de padrões e mudança de personalidade, bem como nas relações sociais estabelecidas pela criança.

Cada um dos cinco períodos da infância supramencionados é separado por faixa etária, nos quais a primeira infância varia dos 0 aos 3 anos de idade; a segunda infância dos 3 aos 6 anos; a terceira infância dos 6 aos 11; e a puberdade dos 11 aos 20, sendo esta última um período de especial atenção, haja vista que estudos demonstram que é nesse período que o jovem pode desenvolver problemas relacionados a compulsões (álcool, drogas, alimentos).

Nesse sentido, a preocupação acerca da publicidade direcionada para crianças e adolescentes ganha contornos ainda mais robustos, posto que, sem o devido amadurecimento emocional, a compulsão pela compra pode, em verdade, estar escondendo um problema emocional subjacente.

"O desenvolvimento cerebral completo ocorre em torno dos 21 anos, e durante a fase de desenvolvimento dos impulsos comportamentais (que são regulados pelo córtex pré-frontal) tendem a ser mais difíceis de controlar, dificultando o adolescente de concentrar-se por períodos longos e de planejar atividades, e algumas pesquisas sugerem que há nessa fase maior vulnerabilidade em relação a vícios" [2].

A proteção aos menores também ocorre no âmbito civil, uma vez que possuem capacidade de direito, mas não de fato. A capacidade de direito é aquela atribuída ao ser humano que nasce com vida, conforme o artigo 1º, CC. Já por capacidade de fato entende-se como a aptidão pessoal para o efetivo exercício dos atos da vida civil, sendo que os indivíduos podem ser absolutamente ou relativamente incapazes para tal exercício, conforme condição de expressar livre e conscientemente sua vontade. São absolutamente incapazes os menores de 16 anos, razão pela qual devem ser representados pelos seus pais, sob pena de nulidade do negócio jurídico. Aqueles que estão entre os 16 e 18 anos de idade são considerados relativamente incapazes, devendo ser assistidos por seus pais ou representantes legais, sob pena de anulabilidade do ato. Contudo, tais vedações não protegem completamente os menores quando atuam em uma relação consumerista, posto que será considerado consumidor, independentemente de sua capacidade civil.

Crianças e adolescentes serão consumidores por equiparação, nas hipóteses dos artigos 2º, 17 e 29, CDC, em caso de acidente de consumo (artigos 12 a 26, CDC); e dos artigos 30 a 45 em caso de prática abusiva. De igual forma, serão consumidores quando, independentemente da assistência de seus pais ou representantes legais, adquirirem produtos e serviços disponibilizados no mercado (jogos de internet, alimentos, ingressos de cinema ou como espectadora de um programa de televisão ou um canal de streaming).

 


[1] DENSA, Roberta. Proteção Jurídica da Criança Consumidora, Ed. Foco, 2018, p. 38

[2] DENSA, Roberta. Proteção Jurídica da Criança Consumidora, Ed. Foco, 2018, págs. 57/58

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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