Opinião

Invasões, Estatuto da Terra e a reforma agrária

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

21 de março de 2023, 20h42

A reforma agrária é tema de permanente interesse, com ciclos de maior ou menor destaque na imprensa e nas conversas. Foi obstaculizada ao extremo nos idos do governo João Goulart (1961-1964) e, no primeiro governo militar, editou-se o Estatuto da Terra, que até hoje a regula.

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A questão ganhou fôlego, diante das frequentes notícias sobre novas invasões de terra.

Tudo isso exige, à luz do Direito Positivo vigente, a categorização dessas invasões e o seu cotejo com a reforma agrária, para mais clara compreensão dos fenômenos e fatos jurídicos a respeito.

Invadir: conduta invasiva, interferência
Invadir é um verbo que soa antipático, notadamente diante das contemporâneas batalhas contra as relações abusivas, o estupro, o desrespeito à privacidade e à intimidade, etc.

O verbo nos remete à ideia de penetração à força, de ocupação de modo abusivo, de violência como elemento definidor da ação praticada.

Indica um facere, uma atividade: conduta comissiva.

Por tudo isso, diante de tantas lutas e modernas construções teóricas, invadir terras soa démodé, inclusive quando posicionamentos há, de incômodo e crítica, à visão idílica do descobrimento do Brasil e das Américas, preferindo se tratar o fenômeno como verdadeira invasão por parte dos povos europeus.

Ademais, é definida como crime em lei especial [1] e no Código Penal [2].

Além disso, usualmente não se trata de invasão de res nullius, com o significado de terra de ninguém, como retratado no Direito Romano.

As invasões se dão em terra que são de alguém  sob a natureza de posse ou de propriedade, direitos, como tal definidos, reconhecidos e protegidos, pela legislação e pelo sistema constitucional  sendo Direito expressamente protegido pela Constituição, que dele cuida em vários dispositivos, notadamente, para os fins deste parágrafo, no artigo 5º, caput e inciso XXII. Nesta senda, as invasões ocorrem em terras de particulares —  pessoas físicas ou jurídicas — ou públicas.

Significam inversão da ordem jurídica e a intenção de substituir a República e os princípios republicanos e democráticos pela vontade individual. Representa a imposição de um desejo individual contra a ideia republicana de que a coisa pública (res publica) pertence a todos os brasileiros.

No mesmo rumo de ideias, não pode importar em priorização de tratamento a quem invadiu, para fins de reforma agrária, porquanto isto significaria que o ente público teria de descumprir o princípio constitucional da impessoalidade, o que viciaria por nulidade o ato praticado e sujeitaria os gestores públicos à lei de improbidade.

La Casa de Papel: as lições da canção Bella Ciao, contra os invasores
A popular série televisiva (intitulada La Casa de Papel [3]) reacendeu o interesse pela canção Bella Ciao [4], popular música italiana que tornou-se símbolo da resistência dos partinsans italianos contra o fascismo e, obviamente, contra os invasores.

Em livre tradução, fala alto a frase inicial daquela canção: "Uma manhã, eu acordei e encontrei um invasor".

Este é mais um exemplo de histórica resistência contra invasores.

O poder de polícia é, em essência, indelegável
Embora louvável o Direito à Terra, não seria legítima a ação de invasão, como o hipotético exercício de um poder de denunciar ou fazer justiça pelas próprias mãos (como em casos de grilagem de terras [5], etc), como se a ação comissiva representasse um tipo de autodelegação de poder de polícia.

A questão é que o poder de polícia é imanente à função pública e, portanto, em essência, indelegável.

Apesar de, modernamente, se admitir a delegação de parcelas do exercício do poder de polícia, soa consolidado que não é possível a delegação do uso coercitivo da sua força.

Interpretemos: se não é delegável o uso da força, muito menos seria jurídico admitir-se a "autodelegação" desse papel.

A doutrina clássica tem este sentido e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.717  MG [6], segue no mesmo rumo:

"não parece possível […] em face do ordenamento constitucional, […]  a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado".

Sobre invadir: Qual a mensagem e para quem?
Em semiótica, ciência hábil ao estudo dos significados dos signos, da simbologia das palavras e da linguagem verbal ou não, tem elevada importância a mensagem e como esta chega do emitente ao destinatário.

De fato, sobre a invasão em si, pode ser fácil identificar o invasor mas, a partir daí, qual seria a mensagem emitida e quem seria o seu destinatário?

Essa indagação  de alta relevância  talvez mereça detida análise e estudos mais profundos e qualificados do que o limitado e despropositado espaço destas breves linhas.

Todavia, não é crível que tenhamos o Estatuto da Terra  vigendo desde 1964 (portanto, há cerca de 58 anos)  e que, após tantos governos que se sucederam e com tantas mudanças, aqui e no mundo, ainda ocorram invasões de terra como instrumento de luta no lugar de gestões político-jurídicas em torno do Direito à Terra.            

Não é demais lembrar que, na década de 1950, aqui e noutros países, como na Nicarágua [7] e na Itália, havia movimentos de luta pela terra, outros afins, mais focados em resistência a posturas imperialistas e de enfrentamento, algo que não parece encontrar fundamento de existência no cotidiano nacional.

Supremo Tribunal Federal e as invasões de terras
Em 19 de setembro de 2022, ao julgar o Mandado de Segurança (MS) 25.119 – AgR, do qual foi relator o ministro Nunes Marques [8], o Supremo Tribunal Federal decidiu que:

"Nos termos do artigo 2º, §6º, da Lei nº 8.629/1993, não pode haver avaliação, vistoria ou desapropriação em imóvel rural objeto de esbulho possessório ou de invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, bem como nos dois anos seguintes à desocupação."

O julgado é coerente com anterior posicionamento da Corte, como demonstra a decisão proferida em 17 de junho de 2015, no julgamento do Mandado de Segurança (MS) 32752-AgR [9], do qual foi relator o ministro Celso de Mello.

A prática ilícita do esbulho possessório que compromete a racional e adequada exploração do imóvel rural qualifica-se, em face do caráter extraordinário que decorre dessa anômala situação, como hipótese configuradora de força maior, constituindo, por efeito da incidência dessa circunstância excepcional, causa inibitória da válida edição do decreto presidencial consubstanciador da declaração expropriatória, por interesse social, para fins de reforma agrária, notadamente naqueles casos em que a direta e imediata ação predatória desenvolvida pelos invasores culmina por frustrar a própria realização da função social inerente à propriedade.

Convém, ainda, citar trecho do que foi decidido pelo STF, em 4 de abril de 2022, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.213-MC [10], da qual foi relator o ministro Celso de Mello:

O sistema constitucional não tolera a prática de atos, que, concretizadores de invasões fundiárias, culminam por gerar — considerada a própria ilicitude dessa conduta — grave situação de insegurança jurídica, de intranquilidade social e de instabilidade da ordem pública.

Neste rumo de ideias, por este entendimento do Supremo Tribunal Federal, as invasões não ajudam a regularizar, via reforma agrária, as terras invadidas.

A reforma agrária, no Brasil: algumas linhas
A  luta pelo direito à terra esteve presente em guerras, batalhas e na história de vários povos e nações.

Contudo, essa luta difere da tomada desta, por invasão ou esbulho  condutas vedadas pela legislação.

Seria impossível se fazer tratamento profundo deste rico tema, no limitado espaço deste artigo. Apesar disso e das pautas cíclicas de reclamos por terra, convém registrar muito se desgastou a imagem do governo João Goulart, por fortes posicionamentos contra a sua proposta de reforma agrária, numa sucessão de pressões, manobras e fatos, até o ocorrido naquela madrugada de 02 de abril de 1964, quando o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vaga [11] a Presidência da República e desligou os microfones da Casa. Embora a comentada declaração de vacância não se enquadrasse nas atribuições do Senado e nem correspondesse à realidade, visto que Jango permanecia em território nacional, o fato consumou-se, já que, após a sua ocorrência, se procedeu à interina posse do deputado Federal Ranieri Mazzilli, até que o Congresso elegesse Castello Branco. Este, em 30 de novembro de 1964, editou a Lei nº 5.504 [12], de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra), que trata da reforma agrária.

Diz o seu Artigo 1º, Parágrafo 1º:

Considera-se reforma agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade.

A diretriz da norma, que ainda vige, mesmo após decorridos 58 anos e tantos sucessivos governos com diretrizes diferentes, essencialmente prioriza as terras públicas para fins de reforma agrária, ao delas tratar no seu artigo 9º, cuidando das terras particulares no artigo 10.

Esta posição jurídica das terras públicas e privadas no texto legal é interessante fator para análise do tema das invasões, porquanto se estas ocorrem em terras privadas, de pessoas físicas ou jurídicas, como suposto meio de forçar os governos a agir naquela terra, evidencia propósito de quebra do princípio constitucional da impessoalidade, por pretender que se dê preferência àquela área sobre outras (invertendo a preferência do legislador).

Além disso, ferido estaria o mesmo princípio constitucional se pretendesse beneficiar a alguns em lugar de tantos outros que, no Brasil, estão na mesma posição e qualidade jurídica.

Sem muito avançar nestes aspectos legais e constitucionais e apenas nos prendendo ao princípio da impessoalidade e ao teor dos artigos 9º e 10 daquela norma de Direito positivo, é possível concluir que a lógica jurídica estaria subvertida e que, pela Teoria dos Motivos Determinantes, que qualifica os atos administrativos de conteúdo decisório (fazendo com que os motivos externados integrem a substância do ato praticado), haveria ilegalidade e falha no processo, equivalendo à nulidade de pleno direito, afetando, assim, a existência, validade e eficácia da decisão, já que o ato nulo não produz efeito.

Outra importante nuance: a reforma agrária, por vontade do Estatuto da Terra, é instrumento de interesse do ente público, como ato de Estado, de gestão, mais do que de governo ou de interesse privado, segundo a lógica de que o interesse público e coletivo prevalecem sobre o interesse particular.

Neste rumo, a ação pública deve levar em conta o propósito de aumento da produtividade, como expressamente consta no artigo 1º, parágrafo 1 º, do Estatuto da Terra, quando fala no seu propósito: "a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade".

As ações públicas devem levar em conta as questões de justiça social e de aumento da produtividade, sendo crível que este elemento relaciona-se com o princípio constitucional da eficiência [13]. Ademais, atraem a incidência dos constitucionais regramentos de Direito Econômico, como a livre iniciativa (CF, artigo 170), a livre concorrência (artigo 170, IV), a defesa do meio ambiente (artigo 170, VI).

Como visto, a reforma agrária e as invasões de terra possuem relação com vários aspectos da vida constitucional e legal e da política social e fundiária, do Brasil. Temos normas bastante hábeis a regular a matéria, terras em profusão e muitas medidas adotadas  no contexto da reforma agrária  embora faça falta a propagação das varas agrárias especializadas, previstas pela Constituição de 1988 (artigo 126) [14].

Decerto há pendências, em decorrência de problemas estruturais, crescimento da população, migrações, questões de macroeconomia e de geopolítica, venda de terras a estrangeiros e mudanças na legislação [15], dentre outros motivos, do mesmo modo que ocorre em vários outros seguimentos, seja no transporte público e intermodal, na saúde, na moradia e noutros contextos, não constando que invasões de hospitais colaborem para a aceleração de ações governamentais ou melhoria do setor, o mesmo ocorrendo com escolas, universidades, etc e, no foco de análise, na reforma agrária.


[1] Lei nº 4.947 de 06 de Abril de 1966, artigo 20: Invadir, com intenção de ocupá-las, terras da União, dos Estados e dos Municípios: Pena: Detenção de seis meses a três anos. Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, com idêntico propósito, invadir terras de órgãos ou entidades federais, estaduais ou municipais, destinadas à Reforma Agrária.

[2] Código Penal. Artigo 161 – Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia: Pena – detenção, de um a seis meses, e multa. §1º – Na mesma pena incorre quem: {omissis} II – invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório.

[3] NETFLIX. LA CASA DE PAPEL. 2017. https://www.netflix.com/ar/title/80192098

[5] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Ed. Imagem. Rio de Janeiro. 2017.

[6] BRASIL. STF. Tribunal Pleno. ADI 1717-MG, relator ministro. Sydney Sanches. Julgamento 22/09/1999 Publicação: 25/02/2000 — https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente="ADI%201717"&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true

[7] COLBY, Gerard e Charlotte Dennett. Thy Will Be Done: The Conquest of the Amazon: Nelson Rockefeller and Evangelism in the Age of Oil. Open Road Integrated Media Incc, New York, EUA, 2017, 960 pages.

[11] BRASIL. SENADO. NOTÍCIAS. Auro de Moura Andrade, à serviço do Golpe, declarou vaga a Presidência. Fonte: Agência Senado: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/03/27/auro-de-moura-andrade-a-servico-do-golpe-declarou-vaga-a-presidencia

[12] BRASIL. LEGISLAÇÃO. LEI 4504/64 – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm

[13] BRASIL. Constituição Federal, artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…).

[14] BRASIL. CF, art. 126: Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

[15] DEVISATE, Rogério Reis. PL 2633/2020 — Regularização e Reforma Agrária com anistia de irregularidades. 11.8.2021. artigo publicado no site direitoagrario.com — https://direitoagrario.com/pl-2633-2020-regularizacao-e-reforma-agraria-com-anistia-de-irregularidades/

Autores

  • é advogado, membro da Academia Internacional de Direito e Ética, da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Fluminense de Letras, do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Ubau, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB-RJ e do Ibap, defensor público (RJ) junto ao STF, STJ e TJ-RJ, escritor, palestrante e autor de artigos e dos livros Grilos e Gafanhotos — Grilagem e Poder (2016), Diamantes no Sertão Garimpeiro (2019) e Grilagem das Terras e da Soberania (2017).

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