Opinião

Processo e narrativa: o advogado como roteirista do caso

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21 de março de 2023, 14h08

O processo é uma sucessão de atos destinados a um fim (a sentença), que põe termo ao conflito de interesses apresentado pelas partes. Ela é proferida por um terceiro, o julgador, que, por meio de decisão  judicial, arbitral ou administrativa , resolverá a contenda, com vistas à pacificação social. Dentre esses atos, está um que parece ser a essência de um litígio, qual seja: a apresentação das narrativas. Elas serão avaliadas por um julgador, seja ele um juiz, árbitro ou júri.   

As normas processuais regulam a forma pela qual as narrativas são apresentadas. São regras que garantem o equilíbrio entre as partes e dirigem os seus comportamentos para que se alcance o resultado derradeiro de pacificação social. Conquanto alguns aspectos de ordem prática possam ser usados no processo civil, penal e administrativo, o foco desse texto é a abordagem das regras gerais do Código de Processo Civil, que, em seu artigo 2º, estabelece que "[o] processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial (…)".

Essa iniciativa constitui-se pela apresentação de uma petição inicial perante o juízo competente, que, dentre outros requisitos, deve indicar "os fatos e fundamentos do pedido" (artigo 319, III do Código de Processo Civil). Eis aí a narrativa ou causa de pedir. É na descrição fática que a parte apresenta a sua versão, capaz de sustentar o pedido formulado com vistas a buscar alcançar um resultado positivo para a sua pretensão. Entre todos os requisitos, a construção de narrativas é o mais importante e o que exige mais talento, intelecto e dedicação do advogado.

A descrição dos fatos não é um procedimento mecânico, opaco e frio. É nela que a parte busca persuadir o julgador de que seus pedidos merecem acolhida. Quem se limita, portanto, a relatar fatos, sem construir uma verdadeira história com personagens, além de começo, meio e fim, faz um desserviço ao cliente e ao julgador. Antes de belíssimas teses jurídicas, qualquer um que esteja na posição de decidir quer entender qual é o problema que levou a parte a chamá-lo para solucionar.

Só se consegue entender um problema se houver uma narrativa (ou história) clara e simples de ser entendida  por mais complexo que o caso seja. Por isso, não basta lançar fatos ao papel. Há que se entender o problema por todos os ângulos possíveis e concatenar ideias. Tudo isso é feito no processo de construção da narrativa. Sem isso, o texto apresentado ao julgador pode estar falho, impreciso e lacunoso. Hipérboles, adjetivos e erudição não são sinônimos de uma boa redação. São meras ferramentas, que, caso mal utilizadas, acabam se tornando o prenúncio de um desastre.

Pois bem. A causa de pedir, obviamente, é uma narrativa: o problema é como fazer. Existem algumas técnicas para isso. Há muito tempo os advogados americanos se dedicam a estudar o que eles chamam de storytelling (a narrativa). Em grande parte, esse desenvolvimento se deu pela estrutura do processo americano [1], onde, salvo exceções, as demandas serão julgadas por um júri (tanto as cíveis quanto as criminais [2][3].

Se um júri, composto de cidadãos, irá decidir a causa, o foco está na narrativa. A história das partes vale mais ou tanto quanto os preceitos legais. Esclareça-se, nesse ponto, que na processualística americana cabe ao juiz explicar ao júri as normas legais aplicáveis ao caso e regular a produção de provas.

Essa circunstância obrigou os advogados americanos a desenvolver a arte da narrativa ou storytelling. Por essa razão, vale mesclar algumas técnicas americanas, adaptando para a nossa cultura. Grandes advogados de nosso país são exímios contadores de histórias, e sabem, como poucos, usar todas as ferramentas de persuasão que estão ao seu alcance. O problema é que esse conhecimento nunca foi sistematizado. Acabamos aprendendo no dia a dia.

Seres humanos estão acostumados a ouvir histórias desde o início de suas vidas. Ainda no berço, nossos pais nos leem histórias para dormir. Somos enfeitiçados por uma boa história [4] e nos entediamos quando elas são mal construídas, mal concatenadas e incoerentes. Não fosse só isso, raciocinamos em termos de histórias [5]. Isso se vê, inclusive, na filosofia grega. Se você quer a atenção de alguém, vale começar com a seguinte frase "deixe eu contar uma história". Após dizer essa frase, há um reflexo automático que nos leva focar nossa atenção. Pode parecer bobagem, mas a psicologia social mostra o contrário.

O famoso advogado americano Edward Bennett Willians, fundador de Williams & Connolly, "com sabedoria relacionava litígios a apresentações dramáticas, nas quais o advogado é o produtor, diretor, ator e diretor de palco, mas todos dentro dos limites das provas e do direito" [6]. Eu acrescentaria mais uma atividade, a de roteirista. É o advogado, em conjunto com o cliente, que constrói o roteiro ou a narrativa para o caso  base para todas as outras atividades destacadas por Williams. Não se está falando, de forma alguma, em mentir em um litígio. Não é essa a questão. O ponto é que fatos precisam de contexto, e como um processo se desenvolve de forma dialética, a construção da narrativa também segue esse modelo.

É fácil dormir em um cinema, quando o roteiro do filme é ruim. O julgador cochila  perde a atenção — quando a história de um caso ou a sustentação oral é cansativa, mal concatenada, monocórdia e sem os elementos fundamentais de uma boa narrativa. Mas onde encontrar recursos para aprimorarmos estas habilidades? A resposta tem quatro aspectos. De início, somente adquirimos bagagem para a boa escrita lendo literatura de alto nível. Não há atalhos. É preciso ler os grandes escritores. Em seguida, após a leitura obsessiva dos clássicos  Ítalo Calvino que o diga , deve-se iniciar o estudo de estruturas, aprender a verter o aprendizado dos grandes livros para a redação de peças processuais. Além disso, é crucial aprender dialética e lógica (principalmente as falácias). Finalmente, é essencial estudar as ferramentas de persuasão, amplamente desenvolvidas pela psicologia social e devidamente comprovadas pela economia comportamental.

 


[1] "The Seventh Amendment to de United States Constitution, which became effective in 1791, provides that: 'In suits at common law, where the value in controversy shall exceed twenty dollars, the right of trial by a jury, shall be preserved, and no fact tried by a jury, shall be otherwise reexamined in any court of the United States, than according to the rules of the common law'". (Jack H. Friedenthal, Mary Kay Kane and Arthur Miller, "Civil Procedure", Fourth Edition, Thompson West, 2005, p.507)

[2] "The most conspicuous characteristics of American civil procedure is the jury system. No other legal system employs juries as the norm in civil cases, although in many civil law systems there are nonlawyer members of certain specialized courts, particularly ones having competence in labor matters". (Geoffrey C. Hazard, Jr. and Michele Taruffo, "American Civil Procedure — an introduction", Yale University Press, New Haven, 1993, p. 128).

[3] "The adoption of jury trial early in the thirteenth century vitally influenced common law procedure. It led to trials at which witness presented oral testimony, while courts on the European continent relied instead on judges sifting written evidence".  (Fleming James, Jr., Geofrey Hazard, Jr. and John Leubsdorf — Civil Procedure, Fith Edition, Fundation Press, New York, 2001, p. 15).

[4] "People, including judges and jurors, understand an restate events in terms of stories. They take the available evidence and weave it into a coherent whole. If pieces are missing, they will fill in the gaps based on intuition, probability, or prejudgment about 'what must have happened', or 'how somebody like that would have acted'. Some writers call this process of filing in 'confabulation'. A lawsuit is a contest between two different stories". Michael E. Tigar, "Examining Witness", Second Edition, American Bar Association, 2003, p. 5.

[5] "Stories have a unique ability to convey information—no other device can simultaneously entertain and educate. The ability to create a story and immerse an audience gives one great power, since stories capture our attention instantly, and we humans have an innate ability to extract lessons from them. (…) Captivating an audience in a story is like casting a spell — if you take the right steps, draw out the tension, and deliver a character arc well, then the audience follows you willingly and loves you for the experience. If you bungle by explaining too much or neglecting your characters and their interrelated dramas, then the magic is lost". Baldie, Jonathan. "The 24 Laws of Storytelling: A Practical Handbook for Great Storytellers". Subject Zero Ltd. Kindle Edition. Localização 169.

[6] Tradução livre: Michael E. Tigar, "Examining Witness", Second Edition, American Bar Association, 2003, p. 1.

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