Opinião

Reflexão sobre o uso dos mitos no processo penal

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21 de março de 2023, 6h33

Falar de justiça no processo penal e o recorrente debate sobre a função do processo penal poderia ser dividido em dois grandes grupos: o primeiro seria o de fazer justiça aos olhos da vítima e da sociedade, que esperam respostas; e, no outro extremo, ser um lugar de garantias mínimas ao réu para que somente haja uma punição dentro dos limites da lei. Seriam estes dois extremos mitos, ao menos em uma lógica pelo filtro dos algoritmos. Com certeza diversas vítimas não viram no processo penal a justiça, assim como muitos réus dizem que seus direitos não foram resguardados.

Logo, e por evidente, todo o processo penal nasce em um ambiente desmitificado da busca por aplicação da justiça e, por isso, deve laicizá-lo, é preciso compreender ele como ele realmente é: um processo penal (em sua individualidade) seguirá em livre curso dentro das opções sociais, dogmáticas e estruturais que lhe circundam.

A atual intervenção do Estado dentro dos processos penais não busca aperfeiçoamento rumo a uma sociedade de bem-estar e justiça, seja por qual lado se estude, da vítima ou do réu. Existe uma conjuntura ignorada ou acrítica de soluções possíveis, pois tidos como problemas distantes daqueles que têm o poder de decidir em nome do Estado. Essa dor somente é sentida quando um processo é selecionado dentre o volume de decisões, principalmente em razão da mídia ou de pressão social, expondo e descortinando o grande mito que é a segurança pública pelo processo penal.

A evolução histórica do processo penal sempre apontou no sentido de que as suas crises estruturais são tidas como normais, cabendo ação estatal somente para remediar casos pontuais. Ou seja, a maior ou menor presença de atenção crítica do Estado em um determinado processo segue uma regra bem construída do próprio sistema — ainda que haja pequenas exceções que não dão conta do rumo da correnteza. Não se pode afirmar que uma mudança na lei ou conjunto de normas tenham por função proporcionar justiça. Se proporcionam ou não um melhor rumo (e para quem proporcionam), isso depende de aferição ex post, ou seja, após a ocorrência de muitas decisões judiciais no tempo, mediante pesquisa de campo.

O que se percebe é que existe a possibilidade de melhoras por meio das normas de oxigenação do modelo do processo penal, mas é fato que o Estado introduz e deixa à mão de variáveis compulsórias ou facultativas ao cálculo do agente julgador, pois permite a livre influencia em sua tomada de decisões pelo exercício de sua liberdade em fazer uso de um outro mito: o livre convencimento.

Ninguém pode afirmar que o processo penal em sua realidade vivida nos tribunais se prestou a primordialmente proteger o mais fraco do mais forte, fazer justiça a vítima ou ser garantia dos direitos ao réu. Conduzir as atividades da persecução penal não é em prol da realização da justiça idealizada ou de um bem comum público esquecido por outros atores sociais, por um simples fato: ao final não deixará de ser processo penal se as decisões não conduzirem a esses fins.

Aceitar a realidade desses mitos e levar para as novas regulações que devem recair sobre o processo penal por sua finalidade de estimular, reprimir ou alterar o rumo de práticas que precisam ser revistas, não cristalizará a realização da justiça. É preciso receber como técnicas de atuação estatal, utilizadas de acordo com as avaliações que realmente interessam ser conhecidas para poder priorizar esta ou aquela solução, dentre várias possíveis. E essa intervenção estatal, que sempre ocorreu por meio do Legislativo e das interpretações do Judiciário, continuará alvo das pressões, das necessidades, do jogo político e da capacidade dos agentes na tomada de decisões. É dizer, por fim, que é um mito que exista a melhor fórmula para o processo penal, mas também é um mito que não existam soluções possíveis para o atual modelo.

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