Direito Civil Atual

O que observar na proposta de reforma do Direito de Família alemão (parte 2)

Autor

  • Adisson Leal

    é advogado no Sturzenegger e Cavalcante Advogados Associados e doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.

20 de março de 2023, 11h15

Na primeira parte deste artigo, trouxemos um panorama da proposta de reforma do Direito de Família alemão formulada pelo governo de coalizão que se formou na sequência das eleições parlamentares de 2021, com foco na controvertida ideia de criação de um novo instituto para ladear o casamento, a comunhão de responsabilidade (Verantwortungsgemeinschaft).

ConJur
Agora, traremos informações sobre o estado da arte da discussão na Alemanha, destacando as críticas formuladas pela oposição, e algumas considerações reflexivas a respeito da proposta e sua contextualização com o cenário jurídico brasileiro.

Em janeiro de 2022, em resposta à defesa da comunhão de responsabilidade pela então ministra da Família, Terceira Idade, Mulheres e Juventude, Anne Spiegel, a deputada Dorothee Bär (CDU/CSU) consignou que "a coalizão confunde modernidade com arbitrariedade" e que "o casamento e a família recebem proteção da Constituição por um bom motivo".

Aduzindo que já é suficientemente difícil garantir o bem-estar do menor em um contexto de separação de duas pessoas, a parlamentar registrou que a criação da comunhão de responsabilidade poderia tornar o cenário ainda mais problemático, pouco sobrando daquela proteção constitucional [1].

Sob o prisma jurídico, a primeira e mais óbvia barreira é imposta pela própria Constituição alemã, que assevera, em seu artigo 6º, que "o casamento e a família têm especial proteção da ordem estatal". Apesar da aparente abertura para outras conformações familiares, sob a epígrafe "família", a cultura jurídica alemã mantém-se assentada sobre o paradigma do casamento, restando ainda relevantes distinções de fato e de direito em relação às outras figuras citadas anteriormente, a parceria de vida registrada (Eingetragene Lebenspartnerschaft) e a comunhão de vida não matrimonial (Nichteheliche Lebensgemeinschaft), mesmo que, nos últimos tempos, os debates em torno da extensão de sua tutela jurídica e aceitação sociocultural venham se ampliando.

Outra relevante barreira para a implementação do instituto da comunhão de responsabilidade decorre da sua própria natureza. Diversamente do que ocorre nas formatações familiares com algum reconhecimento jurídico, fundadas em "relacionamentos amorosos" (Liebesbeziehungen, na expressão constante do acordo de coalizão), a Verantvortungsgemeinschaft proposta pelo governo alemão assenta-se na livre assunção de responsabilidade.

A afetividade, que, ao menos no Brasil, assumiu contornos bastante significativos, apesar de não se poder confundir com amor [2], compõe o contexto da comunhão plena de vida, um critério [3] de identificação de relações familiares horizontais (ou de conjugalidade em sentido amplo) presente tanto no casamento quanto na união estável.

No Brasil, postos em comparação, casamento e união estável trazem consigo a comunhão plena de vida como pilar. A diferença está, para além de outras no plano dos efeitos jurídicos, em que a comunhão de vida é uma decorrência do casamento (artigo 1.511 do Código Civil brasileiro: "o casamento estabelece comunhão plena de vida…"), enquanto que, na união estável, a comunhão é pressuposto do seu reconhecimento (artigo 1.723 do Código Civil brasileiro: "é reconhecida como entidade familiar a união…").

Tal distinção decorre da ausência, na união estável, das formalidades constitutivas do matrimônio, já que a comunhão nasce dos fatos e somente é reconhecida enquanto tal após a sua extinção.

As diversas responsabilidades interpessoais são uma decorrência (efeito) do estabelecimento de uma relação familiar (fattispecie) em formato juridicamente reconhecido.

No caso da comunhão de responsabilidade, primeiro, a comunhão de vida passaria a ser irrelevante para a constituição ou caracterização do vínculo interpessoal, prevalecendo, como elemento causal, a mera assunção de responsabilidade. Tratar-se-ia de verdadeira subversão de causa (relação familiar) e efeito (responsabilidades) no âmbito do direito de família.

Segundo, apesar de a coalizão propor que a comunhão de responsabilidade se baseie no império da autonomia, já se observam elementos de heteronomia no discurso de seus partidários, a exemplo da ideia de um "período de transição" após a manifestação de vontade de extinguir a relação, o que pode ser uma porta de entrada para a incidência impositiva de efeitos e até mesmo para o reconhecimento impositivo a partir da configuração fática dos elementos constitutivos daquele instituto.

Terceiro, a coalizão claramente situa a comunhão de responsabilidade no contexto do direito de família, utilizando-se da referência ao Pacte Civil de Solidarité. No entanto, o instituto francês tem natureza estritamente contratual, servindo como instrumento para resguardar alguns efeitos jurídicos, eminentemente patrimoniais, que, sem ele, não adviriam do direito de família em razão do não reconhecimento daquele formato como entidade familiar.

Ademais, ainda que o consideremos no contexto do direito de família, no Código Civil francês, mesmo estando previsto um componente fundamental de comunhão de vida (vie commune), englobando inclusive a coabitação, o Pacte Civil de Solidarité ladeia o concubinato, não o casamento, como dá a entender os diversos registros da proposta da coalizão alemã [4].

Diante de todos esses aspectos da comunhão de responsabilidade, o que pode parecer uma inofensiva ampliação da noção jurídica de família, à guisa de inclusão humana e social, pode representar uma verdadeira quebra do paradigma fático de família, abandonando-se a centralidade da "comunhão de vida" da qual decorrem responsabilidades, para dar espaço a um conceito de família praticamente coincidente com a noção genérica de relacionamento humano, ocasionando uma possível hipertrofia do âmbito de incidência do relevante reconhecimento da família como base da sociedade e da especial proteção devida pelo Estado.

A proposta de implementação da comunhão de responsabilidade ainda tem um longo caminho até que se possa falar em um instituto maduro para debate legislativo e, ainda mais, até que possa eventualmente compor a ordem jurídica alemã.

De todo modo, fica aqui um primeiro alerta para um sempre presente risco de importação acrítica de institutos jurídicos estrangeiros. Não se pode duvidar que a nossa engenhosa, criativa e voluntariosa cultura jurídica, no ímpeto de reconhecimento jurídico de relações que se podem dizer, no máximo, "parafamiliares", avance no desenvolvimento de uma comunhão de responsabilidade "à brasileira".

Um movimento nesse sentido seria, no mínimo, temerário, já que o direito de família brasileiro não tem tradição de autonomia e contratualização, podendo a importação abrir espaço para o reconhecimento de diversas formas de relacionamento humano de forma heterônoma, com a respectiva atribuição de efeitos não desejados e não previstos até mesmo pelos próprios envolvidos.

Aqui, não custa relembrar que os países que avançam para modelos baseados na liberdade e na autonomia normalmente não têm institutos de reconhecimento heterônomo de entidades familiares, como ocorre com a nossa união estável. Somente isso já seria suficiente para afastar qualquer tentativa de importação de tais institutos para a realidade brasileira.

Enfim, sempre temos registrado que, no direito de família, o próximo passo nunca é o último. Assim, cada "avanço" vai abrindo margem para um gradual abandono das suas bases dogmáticas e para um consequente enfraquecimento do seu potencial de proteção.

Afinal, se tudo for família, nada mais será família.

 

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

 


[1] Geplante Verantwor­tungs­gemeinschaft stößt auf Kritik. Disponível em: https://www.bundestag.de/dokumente/textarchiv/2022/kw02-de-familie-874494. Acesso em 11 mar. 2023.

[2] Segundo Otavio Luiz Rodrigues Junior, "o amor (…), definitivamente, não é jurídico". Ademais, "o amor não pode ser utilizado como fundamento ao discurso jurídico, qualquer que seja ele, dogmático, legislativo ou jurisprudencial". JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Amor e Direito Civil: Normatividade, Direito e Amor. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da; BASSET, Ursula Cristina (coord.). Família e Pessoa: uma questão de princípios. Publicação da Associação de Direito de Família e das Sucessões. São Paulo: Editora YK, 2018. p. 555 e 565.

No mesmo sentido, já destacamos que "o amor é um mundo pelo qual o jurista não deve se aventurar. Noção anímica, enclausurada na psique das pessoas, pode ser um fértil objeto para análise por parte de outras ciências, tais como a psicologia, e um objeto de inspiração para as artes. Para o Direito, o amor é um terreno inapreensível, é um tema ajurídico. Assim, se se pretender reconhecer valor jurídico e certa utilidade ao afeto, o primeiro passo é afastá-lo da ideia de amor". LEAL, Adisson; CORREIA, Atalá e FILHO, Venceslau Tavares Costa. Direito de Família: problemas e perspectivas. p. 27. São Paulo: Almedina, 2022.

[3] Para Maria Vital da Rocha e Álisson José Maia Melo, "não se pode negar que as questões socioafetivas exercem um papel principal para a definição dos laços familiares", (…) "no entanto, entendemos que (…) a exaltação da afetividade como elemento legítimo da formação das famílias não pode simplesmente ser elevado a único e exclusivo fundamento". ROCHA, Maria Vital; MELO, Álisson José Maia. Direito ao conhecimento das origens genéticas no Brasil. Revista de Direito de Família e das Sucessões: RDFAS, v. 1., nº 2, out./dez. 2014. p. 148.

[4] No Brasil, a partir das discussões em torno do Projeto de Lei nº 1151/1995, da então deputada federal Marta Suplicy (PT-SP), que ensaiou uma disciplina da união civil entre pessoas do mesmo sexo, o então Deputado Federal Roberto Jefferson apresentou o Projeto de Lei nº 5.252/2001, que se propôs a disciplinar o Pacto de Solidariedade. Entre outros aspectos, a proposta assegurava a duas pessoas o estabelecimento de pacto visando à proteção de direitos de propriedade e sucessórios, mediante formalização em cartório.

Autores

  • é coordenador da Filial Brasília do escritório Magro Advogados, doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, professor e coordenador do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília, foi pesquisador-visitante da Ludwig-Maximilians-Universität München e foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

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