Opinião

Sistemas de valoração das provas no processo penal

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20 de março de 2023, 16h08

Prova é tudo que contribui para a formação do convencimento do magistrado, a fim de demonstrar, com veracidade, os fatos alegados pelas partes no processo. O convencimento do julgador é o anseio das partes que litigam em juízo, que procurarão fazê-lo por intermédio do manancial probatório carreado aos autos. (TÁVORA; ALENCAR, 2015, p. 560) [1].

Lima (2016, p. 793) [2] afirma que a prova deriva das ideias de verificar, inspecionar, examinar e está associada ao campo de operações do intelecto na busca e comunicação do conhecimento verdadeiro.

Dessa forma, por meio de um arranjo probatório sólido, dentro do que é trazido aos autos, pode-se alcançar uma verdade viável e produzir uma condenação.

Importante destacar que a prova não se confunde com os elementos de informação, que são colhidos no bojo de inquérito policial, sem a observância plena do contraditório e ampla defesa.

As provas visam reconstruir, ao máximo, os fatos e, desse modo, formar o convencimento do órgão julgador para a resolução da demanda. "A prova, assim, é a verificação do thema probandum e tem como principal finalidade (ou objetivo) o convencimento do juiz" (RANGEL, 2015, p. 462) [3].

Fonte de prova são as pessoas (ofendido, acusado, perito, testemunha) ou coisas (documentos em sentido amplo) das quais se emanam as provas. Tudo que possa servir para esclarecer o fato criminoso é fonte de prova. Elas são anteriores ao processo, ou seja, derivam do fato delituoso independentemente da existência do processo. A partir delas é possível o conhecimento, por exemplo, de quais pessoas presenciaram o fato e podem servir como testemunhas. Estas, por sua vez, são introduzidas ao processo através dos meios de prova.

Em relação aos meios de prova, conforme os ensinamentos de Badaró (2012) [4], os documentos e as testemunhas são fontes de provas, mas a sua incorporação ao processo, isto é, as declarações das testemunhas são meios de prova. O autor também cita o exemplo do livro contábil como fonte de prova e a perícia contábil como meio de prova. Portanto, meio de prova é uma atividade endoprocessual, que se desenvolve na presença do magistrado, destinando-se à produção da prova de forma imediata, sob o manto de proteção do contraditório e da ampla defesa.

Cabe frisar que os meios de prova podem ser lícitos ou ilícitos, a teor do artigo 157 do Código de Processo Penal.

Ressalta-se que, para o professor Nucci (2008, p. 389-390) [5], os meios de prova ilícitos não se limitam ao disposto no Código de Processo Penal:

"[…] os meios ilícitos abrangem não somente os que forem expressamente proibidos por lei, mas também os imorais, antiéticos, atentatórios à dignidade e à liberdade da pessoa humana e aos bons costumes, bem como os contrários aos princípios gerais de direito."

Por sua vez, os meios de obtenção de prova ou meios de investigação de prova são, em regra, extraprocessuais (não há rigor na observância da ampla defesa e do contraditório) e visam obter fontes de prova ou meios de prova. Além disso, podem ser realizados por funcionários diferentes do juiz, a exemplo das autoridades policiais.

O doutrinador Lima (2016) exemplifica os meios de obtenção de prova como uma busca domiciliar determinada pelo juiz e, assim que os documentos frutos desta apreensão são juntados aos autos, tornam-se meios de prova. O autor cita, ainda, as interceptações telefônicas também como meio de obtenção de prova.

Deveras, eventuais vícios quanto aos meios de prova terão como consequência a nulidade da prova produzida, haja vista referir-se a uma atividade endoprocessual. Lado outro, verificando-se qualquer ilegalidade no tocante à produção de qualquer meio de obtenção de prova, a consequência será o reconhecimento de sua inadmissibilidade no processo, diante de violação de regras relacionada à sua obtenção (CF, artigo 5°, LVI), com o consequente desentranhamento dos autos do processo (CPP, artigo 157, caput). (LIMA, 2016, p. 801).

Importante abordar o fenômeno do encontro fortuito de provas relativo a fato delituoso diverso daquele que é objeto das investigações, também conhecido por princípio da serendipidade (TÁVORA; ALENCAR, 2015). Tal princípio ocorre no momento em que a autoridade policial encontra, inesperadamente, provas/fonte de prova relativas a infração penal diferente da infração investigada ou a novas pessoas que ainda não eram alvo das investigações. Nesses casos, surge a discussão acerca da validade da prova casualmente obtida.

Para exemplificar, Rangel (2015) cita a situação de um juiz que autoriza a infiltração policial em um crime de entorpecentes e o agente descobre também um crime de contrabando. Outro exemplo é a autorização de interceptação telefônica para investigar o planejamento de um crime de roubo a banco e a autoridade policial descobre diversos homicídios praticados pela organização criminosa em diferentes contextos.

Portanto, a teoria do encontro fortuito de provas ou princípio da serendipidade é bastante útil para a persecução penal, sobretudo para as interceptações telefônicas, uma vez que é comum que estas, quando autorizadas pelo magistrado, constatarem outros crimes diversos do que as motivaram.

Assim como qualquer outro direito fundamental, o direito à prova não é absoluto. Encontra limitações nos demais direitos que são igualmente protegidos pelo ordenamento jurídico. Não é razoável uma persecução penal ilimitada, na qual os fins justificam meios, violadora de direitos e garantias constitucionais, sob pena até de retorno ao período ditatorial, o que é antagônico ao Estado democrático de Direito.

Acerca das provas ilícitas, o ministro Celso de Melo disserta:

"[…] a ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do 'due process of law', que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. — A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, artigo 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, artigo 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a  cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em consequência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do 'male captum, bene retentum'. (BRASIL, 2007, não paginado)." [6]

Nesse sentido, exemplo de prova ilícita seria a confissão obtida mediante tortura. Já exemplo de prova ilegítima seria o laudo pericial subscrito por apenas um perito não oficial (artigo 159, §1º do CPP). 

Em relação às provas ilegítimas, de acordo com a maior parte da doutrina, resolve-se seguindo os procedimentos da teoria das nulidades. Dessa forma, a nulidade absoluta pode ser arguida a qualquer tempo, enquanto não houver sentença condenatória. Nas hipóteses de sentença condenatória ou absolutória imprópria, a nulidade pode ser arguida a qualquer momento por meio da revisão criminal.

Já a nulidade relativa deve ser sustentada em momento oportuno, sob pena de preclusão, e deve haver a indispensável comprovação do prejuízo. Contudo, se a nulidade relativa for sanada ou houver preclusão em face de sua não arguição em momento oportuno, a prova ilegítima poderá ser validamente utilizada, tanto pela acusação, como pela defesa.

Prova ilícita por derivação (teoria dos frutos da árvore envenenada ou teoria da ilicitude por derivação ou teoria da mácula)

Consoante Grinover, Gomes Filho e Fernandes (2001) [7], a prova obtida de forma ilícita, em observância aos princípios e normas constitucionais, transmite a sua ilicitude às provas derivadas, provocando o seu banimento do processo.

No Brasil, a teoria foi adotada em 1999 pelo Supremo Tribunal Federal e com o advento da Lei n° 11.690/2008, a teoria passou a constar expressamente no ordenamento pátrio (artigo 157, §1º do CPP).

São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

Princípio da razoabilidade/proporcionalidade

O Supremo Tribunal Federal, a partir de um juízo de ponderação entre direitos fundamentais, permite provas ilícitas a favor da acusação. No entanto, trata-se de julgado isolado, uma vez que o princípio da proporcionalidade não pode ser aplicado para reduzir direitos e garantias individuais, sob a justificativa de combate ao crime organizado. Além disso, tornaria letra morta o dispositivo artigo 5º, inciso LVI da Carta Magna.

Por isso, em regra, a doutrina e a jurisprudência admitem a aplicação do princípio da proporcionalidade a fim de permitir o uso de provas ilícitas em favor do réu. Os direitos constitucionais de defesa e a presunção de inocência se sobrepõem ao direito de punir do Estado.

Com efeito, seria inadmissível o Estado condenar injustamente um indivíduo inocente pelo simples fato de sua inocência ter sido comprovada por meio de uma prova oriunda de meios ilícitos. Ademais, ao Estado não interessa a condenação de um inocente, mas a punição do criminoso.

Por fim, cabe reforçar que o julgador, no emprego do princípio da proporcionalidade/razoabilidade no processo penal, precisar agir com imensa sensibilidade, uma vez que a flexibilização de garantias pode ensejar um Estado instável e intolerante, o que pode equiparar o Estado ao infrator.

Sendo assim, a doutrina, de forma quase uníssona, tolera a aplicação do princípio da razoabilidade somente no que tange à preservação dos interesses do acusado.

Sistemas de valoração das provas
A gestão da prova e sua apreciação pelo magistrado está diretamente associada ao sistema de valoração da prova adotado pelo ordenamento jurídico (TÁVORA; ALENCAR, 2015). Este sistema indica a forma como a autoridade judicial está (ou não) vinculada a determinada modalidade de prova.

Sistema da íntima convicção do magistrado/certeza moral do juiz
O juiz tem plena liberdade para julgar, despido de qualquer limite. Ele pode trazer suas íntimas convicções para o processo penal, utilizando, por exemplo, critérios religiosos, culturais, científicos, etc. Não há necessidade da fundamentação das decisões. As provas não possuem qualquer valor probatório e o julgador pode decidir contrariamente às provas.

Em regra, este sistema não foi adotado pela Constituição Federal de 1988.

Sistema da prova tarifada ou da certeza moral do legislador
Método de valoração de provas é típico do sistema inquisitivo, estabelece que as provas possuem valor fixado previamente pelo legislador. O magistrado age de forma vinculada. Dessa forma, cabe ao juiz apenas aplicar o valor do conjunto probatório estabelecido em lei, o que aniquila a liberdade de apreciação do magistrado.

Ainda se verifica resquício deste sistema no ordenamento jurídico pátrio no artigo 155 do Código de Processo Penal.

Sistema do livre convencimento motivado ou persuasão racional

Sistema vigente no ordenamento jurídico brasileiro, o qual determina que o juiz está livre para apreciar e valorar as provas, desde que suas decisões sejam devidamente fundamentadas, bem como estejam em observância ao conjunto normativo pátrio. Está previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição, alhures e no artigo 15 do Código de Processo Penal.

Lima (2016, p. 835) destaca as consequências da adoção do livre convencimento motivado, em suma, aduzidas: a. O magistrado, em sua fundamentação, deve valorar todas as provas produzidas no processo, mesmo que para refutá-las, uma vez que as partes possuem o direito de verem apreciados todos os seus argumentos e provas; b. Não há hierarquia de provas, ou seja, todas provas têm valor relativo. Dessa forma, a confissão não pode ser considerada a rainha das provas. O seu valor deve ser apreciado pelo juiz em decisão devidamente fundamentada; c. Somente são válidas as provas constantes dos autos. Conhecimentos privados do magistrado não podem ser considerados.

 


[1] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 10. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2015.

[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2016.

[3] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2012. (Universitária, 1).

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 82-788-RJ. Relator: ministro Celso de Mello. Brasília, DF, 12 de abril de 2005. Diário da Justiça, Brasília, 2 jun. 2006a. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC%2 4%2ESCLA%2E+E+82788%2ENUME%2E%29+OU+%28HC%2EACMS%2E+ADJ2+82788%2EACMS%2E%29&amp;base=baseAcordaos&amp;url=http://tinyurl.com/anmjc2j>.Acesso em: 12 mar. 2023.

[7] GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarence. As nulidades no processo penal. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

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