Opinião

Perfilamento racial é uma espécie de fishing expedition racial

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14 de março de 2023, 18h33

Fishing expedition é uma pesca probatória em que o agente "lança suas redes com a esperança de pescar qualquer prova para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar uma ação já iniciada" [1].

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Embora no Brasil o desembargador Amado de Faria tenha discorrido de forma brilhante acerca desta questão no Habeas Corpus nº 0073.182-68.2013.8.2600 [2], fato é que esse conceito ganhou destaque, no Brasil, após lançamento do livro Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e Apreensão, escrito por Viviane Ggizoni, Philipe Benoni e Alexandre Morais da Rosa (Florianópolis: EMais, 2019) [3].

Várias são as hipóteses de pesca probatória: interceptar o assessor para "pescar" alguma coisa do chefe do assessor; vasculhar o celular para "pescar" algum outro crime qualquer; achar o objeto determinado na busca e apreensão e continuar a diligência para ver se "pesca" mais crimes; mandado de busca genérico para "pescar" pessoas ou objetos em quaisquer residências, dentre vários outros exemplos.

A tese aqui por mim lançada é que o perfilhamento racial é uma espécie de fishing expedition (racial) fundada na busca pessoal em razão da raça [4]. O que gera a pesca probatória nesse caso é a fundada suspeita estar associada à raça negra, por conta do racismo estrutural. A fim de facilitar a tese aqui lançada, permita-me explicá-la começando pelo mandado genérico.

Nesse tipo de mandado, tem-se uma fishing expedition racial, pois o Estado lança sua rede contra as residências de vários moradores de favelas, sem especificar a residência, conforme determina a lei, até "achar o peixe" que ele deseja. O mandado de busca genérico, como se vê, assemelha-se às viagens de pescadores na medida em que os pescadores não sabem, antecipadamente, se haverá peixe, tendo apenas a convicção.

O mesmo ocorre com as expedições de mandados genéricos em que os juízes que expendem o mandado não sabem, antecipadamente, se há crimes em todas as residências, tendo apenas convicção baseada em racismo estrutural e geográfico (Milton Santos). Por isso é incompleto caracterizar o mandado de busca genérico como exemplo de fishing expedition, pois nunca tendo havido um mandado deste na zona sul do Rio de Janeiro, fica nítido que se trata de uma fishing expedition racial.

Repare que, muitas vezes, a pesca probatória pode até nascer de um ato legal, como é o mandado de busca e apreensão, para se subverter em um ato ilegal, como é o mandado de busca genérico.

Por isso a fishing expedition deve ser combatida desde a sua gênese porque, uma vez admitida, ela — necessariamente — incorrerá em ilegalidades que precisarão ser convalidadas pelos agentes violadores da lei. Eis o alerta do juiz Alexandre Morais da Rosa acerca desta temática:

"Se o primeiro passo do fishing expedition é mascarar a ilegalidade dos procedimentos de investigação, o próximo passo é a tentativa de legitimar o ato [5]."

Essa afirmação pode ser comprovada pela forma surpreendente com que pessoas negras abordadas a partir do perfilhamento racial são "sempre encontradas com drogas" ou como os mandados de busca genéricos "sempre encontram drogas e armas", para citar apenas estes exemplos.

Ora, a partir do momento em que juristas do estado de exceção defendem o mandado de busca genérico, mesmo sendo contrário à lei, esses mesmos juristas do estado de exceção precisam dar legitimidade a esse ato e às suas consequências. Qual a saída? Surpreendentemente, residências aparecem com drogas e/ou armas, sendo esses crimes permanentes. Resultado: tudo passa a ser "legal", porque o ingresso na residência está "legitimado", agora, não mais pelo mandado de busca genérico, mas sim pelo crime permanente. Bingo!

O mandado de busca genérico é uma artimanha para achar o que não se sabe onde está, mas que se imagina onde esteja. Sem provas…  só convicção. E artimanha!

Moral da história: o que começa ilegal necessariamente precisar-se-á ser "legitimado". Foi a investigação que levou até o que eles encontraram? Não. O que levou até o que eles encontraram foi o mandado de busca genérico. E tudo isso resta "legitimado" por mantras como este retirado do próprio site do Superior Tribunal de Justiça: "Indícios de crime permanente legitimam ingresso da polícia em imóvel sem ordem judicial" [6].

Num país organizado pelo racismo estrutural, conforme demonstrou Silvio Almeida [7] , é evidente que as pessoas negras estarão sujeitas a uma pesca probatória que, lá na frente, pode ser legitimada a partir de mantras como o de que indícios de crime permanente legitimam a abordagem policial. Por isso, o que estou denominando aqui de fishing expedition racial precisa ser combatido desde a sua gênese sob pena de, se admitida tal como ocorre com os mandados de buscas genéricos, muitas pessoas negras continuarem a temer uma simples caminhada na rua.

Ora, o que se está a discutir é se o Estado passará a permitir que pessoas negras possam andar na rua sem se preocupar, depois que "o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação" (Súmula 70 TJ-RJ).

Quem perfila racialmente faz uma pesca probatória racial baseada na convicção racista de que aquela pessoa negra porta alguma arma, droga ou instrumento de crime em razão da sua cor. Repito: o que o Estado está a fazer é tentar dar uma dupla tranquilidade às pessoas negras: de que não serão abordadas em razão de perfilhamento racial e que o Estado não mais legitimará provas oriundas de fishing expedition racial.

Sugestão de tese: perfilhamento racial é fishing expedition racial fundada na busca pessoal em razão da raça desprovida de fundada suspeita.


[2] TJSP. Habeas Corpus: HC 0073.182-68.2013.8.2600. Rel. Des. Alberto Leme Cavalheiro. Julgado em: 16.07.2013, publicado em 13.08.2013. Disponível em: http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/get.Arquivo.do?cdAcordao=6924983&cdForo=0. Acesso em 20 de Junho de 2018.

[3] SILVA, Viviani Ghizoni da; SILVA, Philipe Benoni Melo e; ROSA, Alexandre Morais da. Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e na Apreensão: um dilema oculto no processo penal. Florianópolis: Emais, 2019.

[4] MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020 e DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani (1ª Ed.). São. Paulo: Boitempo, 2016, 248 pp. ISBN.

[5] MORAIS DA ROSA, Alexandre. https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal. Acesso em: 14 de março de 2023.

[7] ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

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