Direito Digital

O incentivo às boas práticas setoriais na moderação de conteúdo online

Autor

  • Maria Gabriela Grings

    é mestre e doutora em Direito processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) coordenadora do Legal Grounds Institute e advogada.

14 de março de 2023, 8h00

Ao longo dos anos, as plataformas digitais, especialmente as de grande alcance, desenvolveram e aperfeiçoaram instrumentos próprios de checagem e bloqueio/remoção de conteúdo ilícito. Ainda que prevaleça a noção de que inexiste um dever de atuação preventiva e de monitoramento ativo e constante em busca de conteúdos indevidos publicados por usuários desses serviços, é do conhecimento geral que as plataformas realizam algumas atividades de checagem de publicações, algumas delas de maneira automática, no instante em que uma foto é compartilhada, por exemplo [1].

123RF
A intenção é verificar se o material está ou não em conformidade com os termos de uso incidentes, que refletem a legislação do país de origem da plataforma, mas que costumam abarcar parâmetros considerados mínimos, como a impossibilidade de divulgação de conteúdos envolvendo nudez, pornografia infantil, drogas, armas de fogo, incitação ao ódio etc. A realidade indica que essa espécie de monitoramento é suscetível a inúmeras falhas, ora por permitir a divulgação e o compartilhamento desses materiais, ora por bloquear conteúdos que buscam alertar e conscientizar sobre esses temas, sem cometimento de atos de incitação [2].

O DSA consolida o exercício de funções jurisdicionais por entes privados que, ao mesmo tempo, realizam prescriptive, adjudicatory e enforcement jurisdiction [3]. A nova configuração, ainda que não impeça a parte interessada de acessar a justiça estatal com o intuito de obter uma ordem judicial que tenha como objeto o conteúdo supostamente ilícito disponibilizado online, legitima, instrumentaliza e detalha a autorregulação privada.

Todavia, em igual medida, o DSA estabelece e refina instrumentos de corregulação, prevendo em diversos dispositivos que o Estado, por meio da Comissão Europeia, apoiará e promoverá o desenvolvimento e a implementação de standards voluntários e códigos de conduta elaborados pelos entes regulados (artigos 34 a 36). O objetivo almejado é a aplicação do texto legal, fruto do processo legislativo tradicional, em que há prevalência do respeito aos direitos e garantias fundamentais consolidados no texto constitucional, mas com observância quanto às especificidades que permeiam cada espécie de intermediário online ou até mesmo suas relações com terceiros, como entre as plataformas e provedores de intermediação de serviços de publicidade, por exemplo.

Nesse contexto, há incentivo à adoção de boas práticas setoriais. Ainda que não haja definição estanque do seu significado legal, com escolha pelo emprego de conceito jurídico indeterminado [4], a expressão é utilizada em diversas passagens legais. Em uma das mais importantes, é determinado que as plataformas de muito grande dimensão — aquelas com número médio mensal de 45 milhões de usuários ativos na União Europeia (Artigo 25) — devem observar os relatórios emitidos anualmente pela Comissão e pelo Comitê, com o intuito de reduzir riscos sistêmicos identificados [5] e indicar boas práticas para sua mitigação (artigo 27(2)). Além disso, a edição das diretrizes gerais aplicáveis no caso de riscos sistêmicos específicos, com apresentação de boas práticas e medidas recomendadas, elaboradas pela comissão em cooperação com os Coordenadores de Serviços Digitais dos Estados-Membros, previstas no artigo 27(3), deverão ser precedidas de consultas públicas, reforçando a noção de regulação público-privada que permeia todo o texto. Segundo o Considerando 67, mesmo os intermediários online que não se encaixam na definição legal de plataformas de muito grande dimensão poderão aderir aos mesmos parâmetros, adotando boas práticas e se beneficiando das diretrizes estatais, via adesão aos mesmos códigos de conduta.

A referência às boas práticas não está restrita ao contexto dos riscos sistêmicos e emerge também da menção à observância ao conjunto de ações aprovadas e recomendadas em determinado setor, previstas na regulação privada. No caso do DSA, os objetivos traçados pelos interessados serão constantemente monitorados pelo Estado, que avaliará seu cumprimento, de acordo com os indicadores de performance estabelecidos em códigos de conduta (artigo 35(5)). Dessa forma, crê-se que as métricas fixadas possuem maior probabilidade de serem alcançadas e, quiçá, superadas, considerando que foram determinadas pelo próprio ente regulado, tendo como parâmetro as vicissitudes por ele experimentadas em sua rotina operacional e técnica.

A ideia de códigos de conduta privados para regulação de setores específicos não é em si nova. Já estava presente, por exemplo, no General Data Protection Regulation (GDPR), que possui seção dedicada ao assunto (seção 5), com direcionamentos claros sobre os papeis promocional e de supervisão a cargo do Estado. Resta evidente [6] o reconhecimento do nível de complexidade das atividades desenvolvidas por diferentes setores ligados à indústria 4.0 e à economia fomentada, gerida e voltada aos dados, com suas necessidades únicas e mutáveis, que transbordam o texto legal de base. Semelhante intento foi incorporado na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), no artigo 50.

O Substitutivo ao PL 2.630/2020, que disciplina a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, conhecido como PL das Fake News, possui previsão sucinta sobre códigos de conduta, incluindo, dentre as atribuições do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), a de apresentar diretrizes para a elaboração dos códigos e a de validar os documentos produzidos (artigo 33, II e III). Parece-nos que a previsão poderia ser mais extensa, detalhando requisitos mínimos a serem seguidos pelas normas privadas, além de traçar parâmetros para áreas sensíveis como publicidade online, proteção de crianças e adolescentes e acessibilidade para pessoas com deficiência, como contido nos artigos 46 e 47 do DSA. O mesmo ocorre com relação ao dever de monitoramento do cumprimento dos códigos aprovados, não previsto na redação atual.

É perceptível a ausência de dispositivo sobre entidades de autorregulação regulada, que poderiam ser reconhecidas como tal pelo CGI.br, e, assim, realizarem as atividades propostas, nos termos da NetzDG alemã (§ 3º (6)), o que muito contribuiria para a desoneração do Estado. Ainda, não há qualquer menção aos riscos sistêmicos decorrentes das atividades das plataformas e a como estes poderiam ser objeto dos códigos de conduta. Não é demais recordar que os códigos de conduta são instrumentos ótimos para sistematização de boas práticas setoriais que estão à disposição do legislador e que podem e devem ser empregados na regulação da sociedade hiper complexa, em que há muito o poder estatal deixou de ser proprietário e até possuidor das tecnologias da informação, centralizadas em entes privados [7].

 


[1] KLONICK, Kate. The Facebook Oversight Board: creating an independent institution to adjudicate online free expression. The Yale Law Journal, v. 129, n. 2418, 2020, p. 2429/2430.

[2] Notório é o exemplo do caso brasileiro analisado pelo Comitê de Supervisão do Facebook sobre campanha de prevenção ao câncer de mama em que foram expostos mamilos femininos. Inicialmente removido por supostamente violar a política de nudez da plataforma, o material foi restaurado após análise do Comitê. Disponível em https://www.oversightboard.com/sr/decision/004/Portuguese, acesso em 10/03/2023.

[3] O que significa dizer que elaboram suas normas internas (prescriptive jurisdiction); as aplicam no caso concreto (adjudicatory jurisdiction) e adotam medidas executivas para cumprimento de suas próprias decisões (enforcement jurisdiction), exercendo funções que no sistema de justiça tradicional são divididas pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. SVANTESSON, Dan. Solving the internet jurisdiction puzzle. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 159.

[4] Karl Engish afirma que os conceitos jurídicos indeterminados seriam aqueles em que o conteúdo e a extensão são em larga medida incertos. Seriam compostos por dois elementos: haveria o que o autor chama de núcleo conceitual, onde se mostra possível a verificação uma noção clara do seu conteúdo, e o halo conceitual perceptível quando da dúvida acerca da abrangência do conceito. Engish traz como exemplo a noção de escuridão a qual é inequívoca quando por volta da meia noite e controversa no crepúsculo. ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, 6ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, p. 208/209.

[5] O tema dos riscos sistêmicos foi abordado em texto específico disponibilizado nessa coluna. CAMPOS, Ricardo; SANTOS, Carolina Xavier e OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de. Riscos sistêmicos no Digital Services Act e suas lições para o Brasil, disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/direito-digital-riscos-sistemicos-dsa-licoes-brasil, acesso em 10/3/2023.

[6] A seguinte passagem ilustra bem o novo fenômeno: "No campo regulatório, o primeiro ponto No campo regulatório, o primeiro ponto importante a ser atestado não é apenas a quase intuitiva assimetria de conhecimento entre o Estado e os novos modelos de negócios digitais. Uma regulação que vise ser eficaz no contexto da comunicação em rede também deve, portanto, se desenvolver como regulamentação em redes heterarquicas, pelo que a estrutura regulatória deve necessariamente abrir espaço para a construção e inclusão de múltiplos pontos de vista além do Estado e do próprio modelo de negócios. Como a construção dos novos espaços públicos no mundo digital emerge primeiro das relações bilaterais privadas, e somente num segundo momento toma a forma do cenário de plataformização de Internet descrito acima, a dependência resultante do exercício dos direitos fundamentais relacionados à comunicação nos serviços de mediação dos novos intermediários mostra que as formas tradicionais de controle das normas comunitárias pelos tribunais estatais parecem incompatíveis com a dinâmica da nova comunicação em rede. Esse fato é acompanhado pela necessidade de transferir a proteção jurídica para o próprio meio e estabelecer um mecanismo dinâmico e procedimental de relacionamento entre os tribunais estatais e a resolução de conflitos dentro das próprias plataformas através dos próprios tribunais de arbitragem digitais. Isto se apresenta como uma oportunidade para posicionar o direito não apenas como uma ação 'no tempo', mas também 'com a ajuda do tempo', e assim também para trazer novas instituições para um direito cada vez mais orientado na epistemologia social das plataformas como um modelo de ordem jurídica híbrido." CAMPOS, Ricardo. Metamorfoses do direito global, São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 324/325.

[7] WU, Tim, Impérios da comunicação: do telefone à internet, da AT&T ao Google, Rio de Janeiro: Zahar, 201, p. 315.

Autores

  • é mestre e doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora do Legal Grounds Institute, membro do Grupo de Estudos em Novas Regulações de Serviços Digitais no Direito Comparado do Legal Grounds Institute e advogada.

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