Opinião

Licenciamento ambiental e desastres

Autores

  • Délton Winter de Carvalho

    é pós-doutor em Direito Ambiental e dos Desastres University of California Berkeley EUA (com bolsa CAPES); doutor e mestre em Direito Unisinos; professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS nível Mestrado e Doutorado.

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

14 de março de 2023, 6h08

No Brasil, o tema dos desastres ganhou maior visibilidade após os caso da Samarco (5 de novembro de 2015) e da Vale (25 de janeiro de 2019), ocorridos respectivamente nos municípios de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, tendo em vista o rastro de mortes humanas e de muita degradação causados pelo rompimento de barragem de rejeitos da mineração. Antes disso, no entanto, o assunto já era objeto de preocupação da academia e do próprio legislador, que procurou dispor sobre os institutos jurídicos relacionados ao assunto.

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Nesse cenário foi editada em 2010 a Lei 12.340, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil (Sindec), sobre as transferências de recursos para ações de socorro, assistência às vítimas, restabelecimento de serviços essenciais e reconstrução nas áreas atingidas por desastre e sobre o Fundo Especial para Calamidades Públicas, e a Lei 12.334, que estabeleceu a Política Nacional de Segurança de Barragens e criou o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens, cujo objetivo foi criar uma política pública e um sistema de integração dos diversos órgãos e dos diversos entes federativos no intuito de assegurar a integridade das barragens, de maneira a proteger os seres humanos que delas dependam ou que vivam no seu entorno, bem como o próprio Estatuto da Cidade passou a tratar da questão da prevenção aos desastres, por meio de alterações feitas inicialmente pela Medida Provisória 547/2011 e depois pela Política Nacional de Proteção e Defesa Civil trazida pela Lei 12.608/2012, que inseriram a alínea h do inciso VI do artigo 2o e os artigos 42-A (incisos III e IV) e 42-B (inciso II). Esta política nacional é o centro nervoso da regulação jurídica dos desastres no Brasil. A realidade é que no contexto das mudanças climáticas, tema que é objeto de várias discussões e documentos jurídicos internacionais, a exemplo do Acordo de Paris, e que inclusive foi disciplinado no país pela Lei 12.187/2009, a qual instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), não é mais possível não enfrentar a questão dos desastres de maneira sistemática e a partir de uma abordagem especializada, visto que os desafios são cada vez maiores.

Entretanto, a ideia de tentar prevenir ou mitigar os desastres sempre esteve presente na gênese do Direito Ambiental, ainda que muitas vezes de forma embrionária, seja porque a política ambiental estava começando, seja porque não existia uma discussão sistematizada sobre a necessidade de um tratamento jurídico especializado para os desastres. Nesse contexto, se a ideia da prevenção era impedir a ocorrência de danos, é evidente que os desastres ambientais ocupam um papel central nessa discussão, uma vez que qualquer controle ambiental minimamente sério não pode deixar de considerar também o dano latente ou o risco ambiental. A Lei 6.938/1981, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) e instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), e que continua sendo a lei ambiental mais importante do país, abraçou essa perspectiva ao dispor na sua redação original que o licenciamento ambiental leva em conta tanto a poluição efetiva quanto a poluição potencial, também falando sobre qualquer forma de degradação [1].

O licenciamento ambiental é o instrumento mediante o qual a Administração Pública procura controlar as atividades que degradam ou que simplesmente podem degradar o meio ambiente, de forma que a mera possibilidade de haver impactos negativos já torna a atividade sujeita ao controle ambiental. Ele tem se destacado como o mais importante mecanismo de defesa e preservação do meio ambiente, já que é por meio dele que se impõe condições e limites para o exercício das atividades poluidoras. A função de controlar tais atividades está expressamente estabelecida pelo inciso V do §1º do artigo 225 da Constituição de 1988, que reza que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado, incumbe ao Poder Público "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente". Sua importância é tamanha que a instalação ou a operação de alguma atividade atrelada a ele sem a devida licença ambiental ou em desacordo com ela estão sujeitos ao enquadramento nas esferas administrativa, cível e criminal na medida da responsabilidade das partes envolvidas.

A finalidade do licenciamento é assegurar que o meio ambiente seja respeitado quando do planejamento, da instalação ou do funcionamento dos empreendimentos e obras tidos como efetiva ou potencialmente poluidores. Por meio dele, o órgão ambiental fará com que a atividade se adapte à legislação e aos procedimentos de gestão ambiental indicados tendo em vista as peculiaridades do caso. Tal controle é exercido em regra antes da instalação ou da operação da atividade econômica, pois para serem mais efetivos os instrumentos de política ambiental devem se pautar por uma atuação eminentemente preventiva. Por isso vários autores o consideram o principal instrumento público de gestão ambiental [2]. A intenção é fazer com que, mediante análises técnicas e avaliações de impacto ambiental, os impactos positivos possam ser aumentados e os negativos evitados, diminuídos ou compensados. O impacto é negativo quando a ação resultar em prejuízo à qualidade de um fator ou parâmetro ambiental, e positivo quando resultar na melhoria.

É normal que a ideia dos impactos negativos esteja mais relacionada ao licenciamento do que a dos impactos positivos, pois esse instrumento surge principalmente como uma forma de prevenção. É nesse diapasão que o artigo 3º da Lei 6.938/81 traz definições diretamente ligadas ao conceito de impacto negativo sobre o meio ambiente, como degradação, poluição e poluidor [3]. De fato, se só existissem impactos positivos não haveria razão para a PNMA ter sido criada, de maneira que é a possibilidade de existência de impactos negativos que justifica o licenciamento e os demais instrumentos da política e do Direito ambiental. Contudo, é preciso reiterar que o impacto não precisa ser efetivo, podendo ser apenas potencial, pois dentro do papel preventivo do Direito Ambiental se observa que o potencial de impacto é às vezes mais importante do que o impacto efetivo, já que por vezes uma atividade licenciada pouco ou nada polui efetivamente mas tem um potencial degradador imenso caso venha a acontecer um acidente.

A despeito disso, por muito tempo houve a tendência de os órgãos ambientais considerarem apenas os impactos efetivos, e talvez os impactos potenciais mais óbvios, deixando de fazer uma análise mais ampla e relacional destes, sem analisar a possibilidade de ocorrência ou de influência na ocorrência de desastres. Porém, em face do crescente histórico de desastres ambientais dos últimos anos, tanto no cenário nacional quanto internacional, o licenciamento ambiental vem ganhando especial importância nessa seara em razão da sua preponderante função preventiva. Como é sabido, a magnitude de eventos extremos, justifica e enaltece a necessidade de uma ênfase preventiva, que se reflete em expressões tais como "redução de riscos de desastres — RDD" ou mesmo "gerenciamento circular do risco" [4]. Os cientistas têm feito alertas a respeito da intensificação da periodicidade e gravidade dos eventos climáticos extremos, que estão diretamente relacionados ao fenômeno do aquecimento global.

Nesse cenário social de grande incremento de desastres ambientais, o licenciamento deve cumprir a função fundamental de instrumento de gestão administrativa de risco [5]. Esse papel é ainda mais premente no que diz respeito às atividades consideradas significativamente degradadoras, que são aquelas de maior caráter poluidor e que por isso dependem da apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), nos termos do inciso IV do §1º do artigo 225. A Resolução do Conama 01/1986, que regulamentou o instituto, já previa que os EIAs analisassem os impactos ambientais de potencial catastrófico, mediante a referência à necessidade de identificação de sua magnitude, de seu grau de reversibilidade e de suas propriedades cumulativas e sinergéticas [6]. Portanto, as atividades potencialmente causadoras de significativa degradação devem ponderar os "piores cenários" e, por conseguinte, apontar as medidas cabíveis para sua prevenção, resposta e monitoramento. Obviamente, estas medidas devem ser razoáveis, legais, motivadas e proporcionais aos riscos identificados [7].

Todavia, a avaliação de risco de desastres no licenciamento não deve se limitar ao estudo ambiental. Os instrumentos de prevenção a desastres que devem ser utilizados, inclusive no licenciamento, podem ser classificados [8] como gerais ou específicos. No caso dos instrumentos gerais que se prestam a avaliar riscos de desastres estão o licenciamento ambiental, os estudos ambientais, o Zoneamento Econômico e Ecológico (ZEE), o Sistema Nacional de Informações sobre Meio Ambiente (Sinima), entre outros. Já os instrumentos específicos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei nº 12.608/12), que devem ser levados em consideração em casos de riscos com potencial catastrófico, são os Mapas de Riscos confeccionados por meio de cartas geotécnicas, os Planos Diretores que devem observar estes mapeamentos, os Planos de Bacia Hidrográfica quanto aos riscos hidrológicos regionais, e mesmo os Planos de Contingência com suas medidas orientadoras da resposta emergencial.

Destarte, enquanto processo administrativo, o licenciamento ambiental desponta como a melhor arena para a articulação dos demais instrumentos de políticas públicas haja vista a necessidade de tratamento holístico do assunto, o que é próprio da agenda ambiental. No entanto, essa relação deverá ser abordada de forma mais detalhada em artigo posterior a ser publicado. De toda sorte, fica claro que a simples possibilidade de ocorrência ou de ampliação de desastres deve ser levada em consideração, uma vez que o licenciamento é um mecanismo de gestão de riscos também [9].

 


[1] Redação original do artigo 10 da Lei 6.938/1981: "A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento por órgão estadual competente, integrante do Sisnama, sem prejuízo de outras licenças exigíveis". Redação atual: "Artigo 10.  A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental".

[2] ANTUNES. Política nacional do meio ambiente (PNMA): comentários à Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, p. 145-146; FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 8. ed., p. 21; HENKES, Silvana Lúcia; KOHL, Jairo Antônio. Licenciamento ambiental: um instrumento jurídico disposto à persecução do desenvolvimento sustentável. In: BENJAMIN, Herman (org.). Paisagem, natureza e direito, p. 397; OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira e licenciamento ambiental, p. 367; RIBEIRO, José Cláudio Junqueira. O que é licenciamento ambiental. RIBEIRO, José Cláudio Junqueira (org). Licenciamento ambiental: herói, vilão ou vítima? Belo Horizonte: Arraes, 2015, p. 10; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Licenciamento ambiental. Fórum de Direito Urbano e Ambiental (FDUA), p. 113.

[3] "Artigo 3º – Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: (…) II – degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente; III – poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos; IV – poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (…).

[4] Para esta expressão todas as fases de um desastre devem ser permeadas prioritariamente pelo gerenciamento do risco. Neste sentido, ver: FARBER, Daniel Farber. Disaster Law and Emerging Issues in Brazil. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). 4 (1), jan-jun., 2012. p. 06. Disponível em:  https://research.fit.edu/media/site-specific/researchfitedu/coast-climate-adaptation-library/latin-america-and-caribbean/brazil/Farber.–2012.–Disaster-Law–Emerging-Issues-in-Brazil..pdf; FARBER, Daniel et al. Disaster Law and Policy. 3. ed. New York: Wolters Kluwer, 2015.

[5] CARVALHO, Délton Winter de. Gestão Jurídica Ambiental. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 176-182.

[6] "Artigo 6º. O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas: (…) II – Análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais".

[7] A Lei 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica – LLE) veda a exigência de medidas ou prestações mitigatórias ou compensatórias abusivas, descabidas ou desproporcionais: "Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (…) XI – não ser exigida medida ou prestação compensatória ou mitigatória abusiva, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica no direito urbanístico, entendida como aquela que: a) (VETADO); b) requeira medida que já era planejada para execução antes da solicitação pelo particular, sem que a atividade econômica altere a demanda para execução da referida medida; c) utilize-se do particular para realizar execuções que compensem impactos que existiriam independentemente do empreendimento ou da atividade econômica solicitada; d) requeira a execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situação além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica; ou e) mostre-se sem razoabilidade ou desproporcional, inclusive utilizada como meio de coação ou intimidação; e" (…). Esse assunto foi tratado pela OJN 33/2022, que foi publicada pela Procuradoria Federal Especializada junto ao ICMBio no dia 14 de abril de 2022 e que dispõe sobre os parâmetros jurídicos para a fixação das condicionantes em matéria ambiental.

[8] CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 89-102.

[9] CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 24-46 e CARVALHO. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica, p. 82-114.

Autores

  • é advogado, professor do programa de pós-graduação em Direito da Unisinos e pós-doutor em Direito Ambiental e dos Desastres pela University of California (EUA) e doutor e mestre em Direito.

  • é advogado e professor da graduação e da pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB.

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