Novo caminho

Modelo de autorregulação de redes sociais está ultrapassado, afirma Gilmar Mendes

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13 de março de 2023, 20h21

O modelo de autorregulação das plataformas digitais, estabelecido pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), está ultrapassado e permitiu a disseminação de publicações abusivas e violadoras de direitos. Para aperfeiçoar a moderação das redes sociais, o ideal é buscar o meio do caminho entre um regime de liberdade total das plataformas e outro de controle estatal completo do conteúdo. Uma boa opção é estabelecer regras que não incidam sobre o conteúdo, mas sobre os processos de gestão de conteúdo das empresas de internet.

Cris Vicente
Gilmar Mendes disse que é preciso revisar o modelo do Marco Civil da Internet
Cris Vicente

Foi o que afirmou nesta segunda-feira (13/3) o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Ele participou, no Rio de Janeiro, do seminário "Liberdade de expressão, redes sociais e democracia", organizado pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento, em parceria com a Rede Globo e com apoio do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Em palestra, Gilmar, que também é professor do IDP, disse que as discussões sobre redes sociais ganharam novo fôlego após os "espantosos episódios do dia 8 de janeiro de 2023" em Brasília.

"A brutalidade das cenas de ataques às instituições democráticas foi antecedida da circulação de conteúdos online produzidos por grupos extremistas nos dias que antecederam os atos de massacre e de terrorismo. Há uma grande conscientização em curso de que os episódios cruéis vivenciados no início do ano foram orquestrados virtualmente, sem que os intermediários que participam da difusão desses conteúdos tivessem adotados medidas mínimas para lidar com os riscos sistêmicos gerados por publicações odiosas", afirmou o decano do Supremo.

Diante desse cenário, há um consenso de que o papel exercido pelas plataformas digitais na formação do discurso público requer uma política regulatória democrática que aprimore a sua responsabilidade na moderação de conteúdos danosos.

O ministro explicou que, no mundo, há dois paradigmas de regulação da liberdade de expressão online, e eles estão em conflito. O primeiro é o paradigma da proteção da neutralidade de conteúdo online (content neutrality), associado à tradição de direitos negativos de liberdade de expressão.

"Esse primeiro paradigma, que é tradicionalmente adotado, se estrutura a partir de regimes jurídicos de responsabilidade fraca dos intermediários pelo conteúdo de terceiros. Para além das leis estatais, a moderação do conteúdo online é majoritariamente desempenhada por mecanismos de autorregulação das próprias plataformas. Em linhas gerais, o artigo 19 do Marco Civil da Internet corresponde a esse paradigma de neutralidade do conteúdo."

De acordo com Gilmar, a atuação dos provedores não é neutra e afeta a comunicação na internet. Muitas vezes, as redes sociais ficam incumbidas de mediar situações de conflitos entre direitos fundamentais. Elas também têm uma função normativa, ao estabelecerem regras para publicações e definirem o que é proibido.

Porém, essas regras particulares são insuficientes para a proteção integral dos direitos dos usuários relacionados à liberdade de expressão, segundo o ministro. Nesse cenário, afirmou ele, há dúvidas sobre a suficiência da legislação brasileira, concentrada no modelo de autorregulação por parte das plataformas.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece que o provedor de internet "somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente".

Para Gilmar, o dispositivo — que é questionado no STF — foi importante para a construção de uma internet plural e aberta no país, mas está ultrapassado.

"A corroborar esse diagnóstico, diversas iniciativas estrangeiras têm construído regimes de responsabilidade mais sofisticados para a operação de plataformas digitais. É importante buscar um meio do caminho entre um regime de liberdade total das plataformas e um regime de controle estatal completo do conteúdo. Essa tem sido, até aqui, a tentativa de jurisdições democráticas estrangeiras."

Já o segundo paradigma, mais recente, é o de regulação procedimental do discurso online, de acordo com Gilmar.

"Esse paradigma nasce da presunção de que a liberdade de expressão na internet requer não apenas uma proteção contra a intervenção do Estado, mas uma intervenção estatal ativa que promova direitos fundamentais e garanta mecanismos de proteção de uma mídia democrática como um benefício social da pluralidade. Tal paradigma está sendo desenvolvido nas legislações europeias recentes. Ele se baseia na criação de obrigações positivas para a redes sociais, sobretudo voltadas a uma maior transparência nas decisões de moderação de conteúdo e na assunção de compromissos de maior cautela no tratamento de manifestações ilícitas na internet."

A União Europeia e a Alemanha adotaram recentemente normas que seguem tal paradigma. O foco dessas regulações, conforme Gilmar, não incide sobre o conteúdo, mas sobre o "design dos serviços, sobre seus modelos de negócios e sobre a forma como essas plataformas gerenciam riscos e tratam a exposição dos usuários aos riscos da difusão de conteúdos danosos".

Ou seja, as normas exigem que as redes sociais adotem rotineiramente práticas de moderação, transparência e mitigação de risco quem impeçam ou limitem o surgimento de riscos à democracia.

Na visão do decano do Supremo, é "urgente e necessária" uma regulação mais rígida e moderna para moderação de conteúdo em redes sociais no Brasil. Tal norma, a seu ver, deve aumentar a confiabilidade e a previsibilidade na moderação de conteúdos, a partir de garantias processuais e de mecanismos de resolução de disputa mais transparentes nas plataformas.

"A opção de focar mais no processo e menos na substância do conteúdo, que vêm sendo desenhada nas legislações estrangeiras, parece ser um caminho importante de debate. Adicionalmente, não podemos fugir do fato de que a demarcação da ilicitude de um conteúdo online possui intima relação com a própria tutela penal já existente. A tipificação dos crimes contra o Estado democrático de Direito, por exemplo, é exterior e precede qualquer iniciativa regulatória", avaliou Gilmar.

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