Opinião

O caso Daniel Alves e as repercussões no direito à nacionalidade

Autor

  • Luiz Felipe Costa Santana

    é mestre em Direito Processual pela Ufes pós-graduando em Direito Internacional e Direitos Humanos pela PUC-MG e membro do Observatório Brasileiro de Direito Internacional Público e Privado (Obradipp).

12 de março de 2023, 6h30

A nacionalidade é o vínculo jurídico-político que une um indivíduo a um Estado soberano. Comumente também chamada de cidadania, muito embora os conceitos guardem algumas diferenças entre si, ser nacional de um país é a forma como a pessoa se identifica com essa nação, seja do ponto de vista social, cultural, afetivo, ou até mesmo por relações advindas pelo exercício de uma atividade profissional em um determinado local.

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Nesse sentido, dizer que alguém é brasileiro implica dizer que essa pessoa está diretamente conectada à República Federativa do Brasil e à sua autoridade se submete. A nacionalidade pode ser encarada a partir de duas dimensões: uma vertical, que é exatamente essa que liga o nacional à sua pátria, e uma horizontal, que faz do indivíduo um dos elementos constitutivos do Estado, isso é, o povo [1].

Diversos documentos internacionais dispõem sobre a nacionalidade, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos — o famoso Pacto de San José da Costa Rica —, de 1969; e a Convenção da Haia sobre Conflitos de Nacionalidade, de 1930. No entanto, por se tratar de um dos elementos que compõem o Estado, as legislações internas de cada país, normalmente as suas Constituições, ganham especial relevo na discussão sobre o tema.

Cada Estado disciplina a matéria à sua maneira, influenciado por seus modos de ser, agir e pensar, os quais se refletem em suas respectivas culturas jurídicas. Desse modo, verifica-se que a nacionalidade se manifesta em duas espécies: a originária e a adquirida. A nacionalidade originária, também chamada de primária ou atribuída, é aquela que é involuntária; a pessoa nasce com o atributo de ser nacional do Estado. Isso pode ocorrer de diferentes maneiras: pelo lugar em que nasceu (jus soli), pela nacionalidade de seus ascendentes à época em que nasceu (jus sanguinis), ou ainda, por qualquer relação tida como relevante pelo Estado para se atribuir a nacionalidade a uma pessoa.

Por seu turno, a nacionalidade adquirida, também chamada de secundária, derivada ou de eleição, é aquela em que a pessoa voluntariamente escolhe ser nacional de um Estado soberano. O indivíduo não nasceu no território do país, não tem ascendentes que sejam nacionais daquele país, mas, mesmo assim, torna-se nacional da soberania que escolheu. Essa opção é muito conhecida pelo nome de naturalização. Para isso, é preciso satisfazer requisitos dispostos nas legislações internas de cada Estado, os quais variam em cada situação, mas que, de maneira geral, estão ligados ao tempo em que se vive no território da nação.

É justamente quanto a esse aspecto de aquisição voluntária de uma outra nacionalidade que a lei brasileira apresenta, atualmente, uma característica de maior rigidez aos seus súditos. O §4º do artigo 12 da nossa Constituição afirma que será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro em duas hipóteses: a primeira em caso de cancelamento da naturalização em razão de atividade nociva ao interesse nacional e a segunda nas situações em que se adquire outra nacionalidade, salvo nas hipóteses de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei do país que a concede, como ocorre já de maneira consagrada com a Itália, e quando o país ao qual o brasileiro se nacionaliza impõe tal medida como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis.

Assim, fora dessas hipóteses elencadas pelo artigo 12, §4º, inciso II, da Constituição, a mera aquisição, pelo brasileiro, de outra nacionalidade levará à perda da condição de nacional em nosso país. Esse foi o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do processo de extradição 1.462/DF, no qual foi autorizada a extradição de uma brasileira, que havia anteriormente perdido essa condição após ato normativo do Ministério da Justiça, aos Estados Unidos para responder pelo crime de homicídio.

Recentemente, a ex-esposa do ex-presidente Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle, investigada no Brasil por esquemas de desvio de dinheiro para pagamento de assessores parlamentares ("rachadinha"), perdeu a nacionalidade brasileira por ter se naturalizado norueguesa de forma voluntária, conforme Portaria do Ministério da Justiça publicada no Diário Oficial da União do último dia 7 de fevereiro.

O jogador de futebol Daniel Alves, que está preso preventivamente na Espanha desde o dia 20 de janeiro deste ano sob a acusação de estupro, também pode estar na mesma situação. Na tentativa de obter a liberdade condicional do lateral da seleção brasileira na última Copa do Mundo, a sua defesa entregou os passaportes brasileiro e espanhol do ex-jogador do Barcelona à Justiça catalã como prova de que ele não fugirá da Espanha. Esse intento, no entanto, se mostrou fracassado, uma vez que a prisão dele foi mantida.

O fato de Daniel Alves possuir um passaporte do Reino da Espanha é um forte indício de que ele se naturalizou espanhol voluntariamente, sem se enquadrar, a priori, nas hipóteses de exceção de perda da nacionalidade brasileira mencionadas anteriormente. Isso é, em tese, o jogador, que por anos defendeu a seleção canarinho, não é mais brasileiro. E essa condição é a de milhares e milhares de brasileiros expatriados mundo afora, que, por contingências de uma vida fora do país por muitos anos, espontaneamente decidiram optar por uma naturalização.

Nesse contexto, o Senado Federal aprovou, em junho de 2021, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6/2018, que altera o artigo 12 da Constituição para suprimir a perda da nacionalidade brasileira em razão da mera aquisição de outra nacionalidade e acrescentar a possibilidade de a pessoa requerer a perda da própria nacionalidade — o que atualmente inexiste no nosso ordenamento jurídico —, ressalvada situações que acarretem apatridia, isso é, a configuração de uma pessoa sem nenhuma nacionalidade.

A PEC, que agora tramita na Câmara dos Deputados sob o nº 16/2021, corrige uma anomalia produzida pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994, no sentido de que a perda da nacionalidade brasileira pela mera aquisição voluntária de uma outra poderá, potencialmente, gerar uma situação de pessoa apátrida. Além disso, na atual conjuntura socioeconômica brasileira, em que o número de expatriados do país cresce diuturnamente, especialmente entre os que têm como destino EUA e Portugal, não é razoável impor a perda da nacionalidade brasileira para aqueles que optaram por tentar uma outra vida no exterior.

A alteração dessa disposição gera também ao Estado brasileiro a necessidade de se levar com responsabilidade os ditames da cooperação jurídica internacional, especialmente ante a garantia fundamental de não extradição do brasileiro, conforme dispõe o artigo 5º, inciso LI, da Constituição. É preciso ter a cautela de que, em situação de plurinacionalidade, essa garantia não se transforme num passaporte para a impunidade.

 


[1] DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Direito internacional privado. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 117.

Autores

  • é mestre em Direito Processual pela Ufes, pós-graduando em Direito Internacional e Direitos Humanos pela PUC-MG e membro do Observatório Brasileiro de Direito Internacional Público e Privado (Obradipp).

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