Opinião

Internet for Trust (i4T) e o caso Gonzalez vs. Google nos EUA

Autor

  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

9 de março de 2023, 7h07

Na semana retrasada, foi realizada na sede da Unesco em Paris a conferência "Internet for Trust" (i4T — A global dialogue to guide regulation worldwide [1]) organizada pelo brasileiro Guilherme Canela, chefe da seção de liberdade de expressão e segurança de jornalistas na Unesco —, cujo tema principal foi o estabelecimento de princípios (guidelines globais) de regulação das plataformas digitais sob uma perspectiva multidisciplinar.

No contexto histórico, o combate ao discurso de ódio se destacou após a 2ª Grande Guerra, e a Unesco foi criada em 1945 com a missão de "contribuir para a manutenção da paz e da segurança, fortalecendo, por meio da educação, da ciência e da cultura, a colaboração entre as nações, a fim de assegurar o respeito à justiça universal, ao direito, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para a todos" [2].

Em 1˚ de junho de 2011, a Organização dos Estados Americanos (OEA) publicou a Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e Internet. O documento dispõe que a liberdade de expressão se aplica à internet do mesmo modo que a todos os meios de comunicação. As restrições à liberdade de expressão na internet só são aceitáveis quando cumprem os padrões internacionais, que dispõem, entre outras coisas, que elas devem estar previstas pela lei, buscar uma finalidade legítima reconhecida pelo direito internacional e ser necessárias para alcançar essa finalidade (o teste "tripartite").

Em 5 de outubro de 2012 a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou o The Rabat Plan of Action [3] sobre a proibição da defesa do ódio nacional, racial ou religioso que constitui incitamento à discriminação, hostilidade ou violência com conclusões e recomendações de vários workshops de especialistas da OHCHR (realizados em Genebra, Viena, Nairóbi, Bangkok e Santiago), nos termos do artigo 4˚ da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, internalizada no Brasil pelo decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969.

Nesse caminho de direcionamento global, a ONU possui como objetivo: (1) obter uma melhor compreensão dos padrões legislativos, práticas judiciais e políticas relativas ao conceito de incitamento ao ódio nacional, racial ou religioso, garantindo ao mesmo tempo o pleno respeito à liberdade de expressão, conforme delineado nos artigos 19 e 20 [4] do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ICCPR); (2) realizar uma uma avaliação abrangente do estado de implementação da proibição de incitamento em conformidade com a legislação internacional de direitos humanos e (3) identificar possíveis ações em todos os níveis.

De acordo com a mutação no espaço e no tempo concernente à proteção das liberdades fundamentais na internet, em 2015 a Conferência Geral da Unesco endossou os princípios Doam4 [5] (Droits de l'homme, l'Ouverture, l'Accessibilité à tous et être alimenté par la participation Multipartite), que enfatizam a importância dos direitos humanos, abertura, acessibilidade e governança multissetorial para o desenvolvimento, crescimento e sustentabilidade.

No mesmo sentido, o balanceamento entre as disposições previstas no artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) [6], concernente à liberdade de expressão, e no artigo 20, referente ao combate ao discurso de ódio, são importante vetores na aplicação do teste tripartite e na proporcionalidade da surveillance numérique [7].

i4T – A global dialogue to guide regulation worldwide
A Conferência da Unesco realizada em Paris focou nas seguintes questões: o combate à desinformação, às fake news, ao discurso de ódio e às diversas teorias da conspiração que propagam a desconfiança nas instituições democráticas em um conflito latente e emergente entre o direito à liberdade de expressão e o respeito aos direitos humanos.

Neste sentido, a finalidade da conferência foi justamente iniciar o debate a respeito da criação de guidelines globais a fim de realizar um desejável sopesamento entre a proteção da credibilidade das plataformas digitais e os direitos de primeira dimensão ou geração de seus usuários.

A primeira versão do "i4T" (princípios de regulação das plataformas digitais) se concentra nos seguintes pilares: (1) exigência de transparência; (2) processo de gestão de conteúdo; (3) meio ambiente digital favorável aos usuários; (4) mecanismos de "signalement" dos usuários; (5) gestão de conteúdos nefastos que ameaçem a democracia e os direitos do homem; (6) acesso aos dados de gestão por parte de pesquisadores; (7) multilinguismo e acessibilidade digital; (8) procedimentos de avaliação de riscos; (9) integridade das eleições e (10) promoção da educação relativa às mídias e à informação.

No âmbito do "i4T", participaram da Conferência da Unesco representantes dos Estados, setor privado, organização da sociedade civil, mundo acadêmico, além de outros experts. No contexto, foram publicados os cinco princípios a serem seguidos por parte das plataformas digitais: (1) a plataforma deve ser dotada de políticas e práticas de boa governança conforme os direitos humanos; (2) as plataformas devem ser transparentes; (3) as plataformas devem responsabilizar os utilizadores; (4) as plataformas devem prestar contas (accountability) e (5) deve existir um sistema de fiscalização independente.

O Secretário Geral da ONU, António Gutierres, ressaltou que "um espaço digital seguro passa pela proteção da liberdade de expressão, mas isso não é suficiente. Os governos, as empresas e as plataformas de redes sociais possuem a responsabilidade de combater de forma preventiva o discurso de ódio, a intimidação e a desinformação, que minam os direitos humanos, a democracia e a ciência" [8].

Communications Decency Act de 1996 e o caso Gonzalez vs. Google
Hodiernamente, por meio de Gonzalez vs. Google [9], reverbera nos Estados Unidos o atentado terrorista ocorrido em Paris em 2015 com a análise jurídica da seguinte questão: as plataformas digitais podem ser responsabilizadas pelos conteúdos que os algoritmos recomendam aos seus usuários, notadamente, em casos de difusão de discurso de ódio?

A Suprema Corte dos Estados Unidos analisará a responsabilidade do Google na "recomendação" de vídeos com conteúdos extremistas através dos algoritmos no cooptação de usuários da plataforma. Dois tribunais inferiores decidiram a favor do Google, julgando que a plataforma estava protegida pela Seção 230 do Communications Decency Act de 1996.

O precedente marca a primeira vez que a Suprema Corte estadunidense é instada a definir o escopo da Seção 230 e determinar se plataformas como YouTube, Facebook e Twitter estão protegidas quando seus algoritmos direcionam os usuários a determinadas informações. Em artigo publicado no New York Times a socióloga Zeynep Tüfekçi registrou que "dado seu um bilhão de usuários, o YouTube é talvez um dos mais poderosos instrumentos de radicalização do século 21" [10].

O estatuto — Seção 230 da Lei de Decência das Comunicações [11] — protege as empresas de Internet de serem responsabilizadas pelo conteúdo postado por terceiros em suas plataformas, com o seguinte dispositivo: "no provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider".

Adotada em 1996, a Seção 230 isenta as grandes plataformas de responsabilidade quando hospedam conteúdos produzidos por usuários da Internet e contrários à lei, a menos que este conteúdo lhes tenha sido denunciado como ilegal. O Artigo 230 é um compromisso jurídico e político que inspirou a legislação em vigor na maioria dos países ocidentais, incluindo a França.

Freedom of speech não deve significar immunity or irresponsibility for the speech
Os precedentes Brandenburg v. Ohio (1969), R.A.V. v. City of St. Paul, 505 U.S. 377 (1992), Texas v. Johnson, 491 U.S. 397 [12] (1989) e United States v. Eichman, 496 U.S. 310 (1990) e Virginia v. Black, 538 U.S. 343 (2003), registram que a Suprema Corte dos Estados Unidos concede maior força normativa à liberdade de expressão do que ao combate ao discurso de ódio, ainda que em casos extremos.

Na jurisprudência estadunidense se verifica a permissão de discursos extremistas, "desde que não incite à violência" ("The constitutional guarantees of free speech and free press do not permit a state to forbid or proscribe advocacy of the use of force, or of law violation except where such advocacy is directed to inciting imminent lawless action and is likely to incite or produce such action" — Brandenburg v. Ohio — 1969).

No entanto, a complexidade da questão se refere ao fato de que o The Communications Decency Act serviu como instrumento não apenas de liberdade de expressão, mas também de liberdade econômica, por praticamente consagrar a imunidade das plataformas digitais no âmbito da responsabilização civil e penal decorrente de atos derivados do compartilhamento de conteúdos pela inteligência artificial, os algoritmos. Inclusive, na Conferência da Unesco, Christopher Wylie, whistleblower da Cambridge Analytica, destacou "as plataformas não são imparciais e os algoritmos são os arquitetos dessa engenharia".

Os denominados Gafam Google (Alphabet), Apple, Facebook (Meta), Amazon e Microsoft — instrumentalizam o "soft power" estadunidense com fins culturais, econômicos e até mesmo de espionagem. Neste sentido, segundo a análise da jurisprudência da Suprema Corte estadunidense, lamentavelmente, será extremamente difícil que seja reconhecida a responsabilidade do YouTube na difusão dos vídeos segundo recomendações dos algoritmos.

Em contrariedade ao cenário europeu — composto pelo Digital Services Act (DSA) e pelo Digital Markets Act (DMA) — a Seção 230 classifica as plataformas digitais como simples difusoras de conteúdo, responsabilizadas de forma excepcional. Neste contexto, o caso Gonzalez vs. Google mostrará se efetivamente o sistema jurídico estadunidense caminha no progresso do sopesamento e respeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (teste tripartite), conforme um direcionamento universalista dos direitos humanos (e não relativista).

Neste sentido, se espera que a Suprema Corte estadunidense adote uma interpretação conglobante da norma disposta na Section 230 (47 U.S.C. § 230) c/c os artigos 19 e 20 do PIDCP, pois se constata um notório distinguishing no presente caso: não se trata da realização de uma passeata ou de incendiar uma bandeira (precedentes de permissão pela Suprema Corte), mas do combate global ao discurso de ódio no contexto transfronteiriço de soft power das plataformas digitais.

Assim, se espera, doravante, que as guidelines resultantes da iniciativa realizada pela Unesco no âmbito da Conferência de Paris (i4T [13]) não se tornem apenas uma "folha de papel" e que esbocem nos Estados Unidos a aplicação do teste tripartite segundo a hermenêutica dos artigos 19 e 20 do PIDCP — ICCPR, assinado em 1977 e ratificado em 1992 pelos EUA[14] —, além do respeito ao The Rabat Plan of Action.

 


[2] Conteúdo disponível em: https://www.unesco.org/fr/legal-affairs/constitution. Acesso em 26.02.2023.

[3] Conteúdo disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/Rabat_draft_outcome.pdf. Acesso em 27.02.2023.

[4] Article 20, paragraph 2 of the International Covenant on Civil and Political Rights states that "any advocacy of national, racial or religious hatred that constitutes incitement to discrimination, hostility or violence shall be prohibited by law". Throughout this document, such incitement will be referred to as "incitement to hatred"

[5] Conteúdo disponível em: https://www.unesco.org/fr/internet-universality-indicators. Acesso em 27.02.2023.

[6] Artigo 19 1. Ninguém deve ser molestado por suas opiniões. 2. Todo indivíduo tem direito à liberdade de expressão; este direito inclui a liberdade de buscar, receber e transmitir informações e idéias de todo tipo, independentemente de fronteiras, seja oralmente, por escrito ou impresso, na forma de arte, ou através de qualquer outra mídia de sua escolha. 3. O exercício das liberdades estabelecidas no parágrafo 2 deste artigo traz consigo deveres e responsabilidades especiais. Assim, pode estar sujeito a certas restrições, que serão, no entanto, expressamente estabelecidas por lei e que são necessárias. (a) Pelo respeito aos direitos ou reputações dos outros ; (b) Para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou da saúde pública ou moral.

[7] Fiscalização digital.

[8] Tradução livre.

[12] The majority of the Court, according to Justice William Brennan, agreed with Johnson and held that flag burning constitutes a form of "symbolic speech" that is protected by the First Amendment. The majority noted that freedom of speech protects actions that society may find very offensive, but society's outrage alone is not justification for suppressing free speech.

[14] Conteúdo disponível em: https://indicators.ohchr.org/. Os Estados Unidos assinaram o PIDCP em 1977 e o ratificaram em 1992, deixando de assinar os protocolos respectivos. Acesso em 28.02.2023.

Autores

  • é advogada do escritório Zanin Martins Advogados, especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional, mestre em Direito Internacional na Universidade Paris 1 Panthéon—Sorbonne e secretária-geral do Lawfare Institute.

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