Senso Incomum

A morte da minha sogra, a ficha de vacinação de Bolsonaro e a LGPD

Autor

9 de março de 2023, 8h00

Abstract: Por que as leis não devem ser lidas no seu contrário

  1. O espanto do professor

Spacca
"Mas a lei serve para proteger maus cidadãos?", perguntou-me um professor europeu com quem tomei um café recentemente. Ele me dizia que estava surpreso com a interpretação à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil). Tudo ficou proibido. Nada mais pode ser divulgado. Ora, se democracia é transparência… então, por que cada vez mais escondemos coisas?

"É pior", respondi. "A LGPD é usada para subverter a cidadania."

  1. A morte da minha sogra e a LGPD

Minha sogra estava morrendo (de fato, faleceu horas depois). Minha esposa ligou para o hospital. Queria saber do estado de saúde da… mãe dela. Deu até o número do plano de saúde. Resposta do hospital: com base na LGPD, não podemos dar nenhuma informação. E seguiram-se outras pérolas. Pronto.

Minutos depois, Dona Lúcia faleceu.

Sigo. Participei de uma chapa para concorrer à eleição para o conselho de clube. Minha chapa pediu a lista de e-mails ou contatos dos eleitores (sócios). Resposta: impossível. Quantos eleitores são, afinal? "Não podemos responder." Nenhuma informação pode ser dada. Fundamento: LGPD.

Afinal, essa lei veio para proteger a quem e de quem? O Google tem todas nossas informações e dados. Porém, a nossa LGPD não dá nem informação da mãe moribunda.

  1. O sigilo de cem anos e os segredos da República

Agora, recentemente, a grande polêmica: a mistura do sigilo em documentos com a LGPD.

Carolina Antunes/PR
Carolina Antunes/PR

Pode-se ou não retirar o sigilo de cem anos da ficha de vacinação do ex-presidente Bolsonaro? E o que isso teria a ver com a LGPD?

Uma coisa nada tem a ver com a outra. Mas já está misturada. Sem chance de desmisturar. O caso dos "sigilos" do governo Bolsonaro: não fosse um dado de interesse público, o ex-presidente é suspeito de ter faltado com a verdade sobre o assunto. Consequências: a (des)confiança da população em plena pandemia. Sabem o que é isto — uma pandemia?

Aí entra a LGPD para proteger dados. Quais dados? Deve proteger inclusive se o deputado ou governador ou autoridade foram às três da tarde em um motel? Isso pode ferir a privacidade do gajo? Logo vão dizer que a declaração de bens de candidatos antes da eleição fere a intimidade. Só falta isso.

Afinal, essa lei protege a quem?

A divulgação do cartão de vacinação de Bolsonaro constituiria uma violação à lei? Por quê?

Bom, não sei o que o governo fará. O que estou dizendo aqui tem o condão de fazer uma crítica geral a algumas interpretações da LGPD. E fugir da vinculação "sigilos governamentais e proteção da LGPD".

Melhor dizendo, aliás: o assunto é a ilegalidade legal(izada). O assunto é o que queremos do direito — e de como ele pode servir para tudo nas mãos de uma má dogmática.

  1. Um habeas data preventivo? Interessante: temos o habeas data e veio a LGPD que vai na contramão da própria Constituição

A coluna de hoje, pois, é uma convocação ao debate à comunidade jurídica — e é também uma espécie de habeas data preventivo da cidadania, digamos assim.

Ao trabalho.

Ao que vejo das notícias, o Ministério da Saúde recuou em posicionamento usado para vetar o acesso ao cartão de vacinação de Jair Bolsonaro. A Folha de S.Paulo revelou alegação da pasta, em resposta a pedido via Lei de Acesso à Informação feito pela reportagem, que a liberação da ficha de vacinação poderia violar a Lei Geral de Proteção de Dados, um argumento já rejeitado pela CGU (que bom!). Claro que pipocaram os argumentos do garantismo-bolsonarista — que paradoxo, pois não? — "puxando" a LGPD para dizer que não se poderia ter o acesso.

Um parêntesis: a ausência de comprovação de vacinação — ou seja, a exposição do comprovante de vacinação — foi, durante a pandemia, reconhecido como motivo de demissão por justa causa, chancelado pro vários tribunais do Brasil. Isso é pouco? O trabalhador foi obrigado a comprovar a vacinação, e a LGPD não foi invocada. Bingo! Agora, cá entre nós, descobrimos que um agora-ex-chefe de Estado não pode ter seu "dado sensível" exposto?

Eis que o debate é importante, portanto: para desmistificar interpretações equivocadas que surgem do próprio governo atual — que, ainda que haja o reposicionamento posterior, chegou a ventilar esse argumento (anti)jurídico para vetar acesso. Só por pensar assim já me preocupou.

  1. A LGPD deve proteger a transparência e não os segredos

Uma lei como a LGPD é uma lei da cidadania, para e pelo cidadão. É para se proteger das autoridades e não para as proteger em assuntos digamos assim, delicados e sensíveis.

Minha tese, aqui, é uma ideia liberal no melhor dos sentidos da palavra: uma proteção dos dados e da privacidade do indivíduo em face do Leviatã. Um antídoto contra a bota do Grande Irmão. Salutar. Necessário. Precisamos de um país onde os liberais sejam liberais, mesmo.

Como sempre, porém… surgem problemas. Trata-se de "problemas de epistemologia jurídica". Também isso é estrutural, para usar a palavra da moda, se me permitem.

Pergunta de um século: a Lei serve para que o (ex-)presidente da República — que, até segunda ordem, é para ser uma… República — dê a ela o sentido que quer e coloque sigilo de cem anos naquilo que quer?

Qual é o paradoxo elementar? Uma lei cujo princípio é a cidadania não pode ser uma trambicagem com a cidadania. Eis o busílis. Reivindicar uma lei cidadã para atos antirrepublicanos é fazer como o juiz que, diante de uma proibição de cães na plataforma, proíbe o cão-guia e libera o urso.

Dworkin já mostrou isso na sua discussão do já tão repetido, famoso, Riggs v. Palmer. O neto mata o avô para ficar com a herança porque não havia nenhum texto de lei que o deserdasse. O que foi sacralizado na decisão da Corte de Apelações? Que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. E isso não era um juízo moral à parte e ad hoc: era uma leitura da moralidade institucionalizada que é o direito.

Institucionalidade. Esse é o ponto. Usar a lei para contrariar interesse público do cidadão é institucionalizar um literalismo suicida, que usa o direito contra o próprio direito.

Veja-se: o fato de o ex-presidente ter se vacinado ou não é menos importante do que o segredo do seu cartão de vacina. Tenho o direito fundamental de saber se o presidente da República de um país de 220 milhões de habitantes negou ou não negou a ciência. Esse é o busílis.

  1. A crise da dogmática e a dogmática da crise

Esse é o problema do criterialismo[1] da dogmática jurídica — assunto que a própria dogmática jurídica evita (ou não domina) — que se empresta a esse tipo de interpretação. O criterialismo alça a dogmática a um patamar acima da lei. Um parêntesis: um dos modos de escamotear a lei é criar "critérios" como "fraco, regular ou forte". Tão artificial e discricionário quanto dizer “dou às palavras da lei o sentido que quero”. E quando vem acompanhada da communis opinio doctorum, então, quem vai duvidar? Arbitrariamente, criam os próprios critérios ab ovo para justificar qualquer coisa, exatamente porque não se tem um padrão principiológico que fique claro. A regra pela regra. Que pode assim atentar contra a natureza da própria regra. Exemplo interessante de criterialismo é o conceito de precedente no Brasil. Talvez o mais contundente.[2]

E sigo. Vendo algumas invocações da LGPD, fico com a nítida impressão de que se institucionalizou o hermeneuticum venire contra factum proprium. Ora, não é a própria dogmática que tanto falou em coisas como "princípio da boa-fé"? E do princípio da transparência? E o da publicidade? Pois é. Estou invocando, aqui, de boa-fé, a boa-fé do cidadão contra a presumível má-fé do mais forte, o Estado (história já contada na Oresteia, de Ésquilo).

Faço aqui um chamado aos garantistas. Que a legalidade seja uma legalidade constitucional, como deve ser e não uma legalidade ad hoc. O criterialismo serve para isso.

Que a lei seja interpretada no espírito (no sentido hermenêutico) que tem a lei. Ora, quando peço que alguém ensine jogos a meus netinhos (o exemplo é Lon Fuller comentando Wittgenstein), não preciso colocar um letreiro luminoso na Dacha dizendo que "não se pode ensinar jogos inapropriados para crianças". A intersubjetividade constrange. Ou deveria constranger.

Mas a dogmática frágil — no interior da qual precedentes são o que cada um diz que é e onde a lei tem os sentidos criteriais atribuídos ad hoc — consegue, a partir da lei, construir a sua própria ilegalidade.

Post scriptum. Ainda posso trazer uma outra inquietação à mesa. Dizem que há "cautela" na divulgação dos dados para checar a veracidade. Não discordo disso! Por óbvio.

Pergunto, todavia: também não é direito do cidadão, desde sempre, saber se Bolsonaro adulterou o cartão de vacinação? Ou, que, sem adulteração, tenha se vacinado enquanto dizia não ter se vacinado? Isso é pouco?

O cidadão não tem apenas direito de acesso à informação: tem também o direito fundamental de saber por que esse acesso é restringido quando é. Precisamos de explicações e de meta explicações, se me permitem.

Explicação da explicação. Porque não é possível isso. Não numa república.


[1] Tenho a impressão — e posso estar equivocado — que levará anos até que parcela expressiva da dogmática jurídica brasileira descubra o seu próprio calcanhar de Aquiles. Até lá gastaremos muito tempo, papel e dinheiro instrumentalizando o Direito em teses e dissertações que apenas agravam o problema.

[2] O criterialismo domina a dogmática. É, assim, um (ou o principal) problema do positivismo pós-hartiano. Porque o positivismo — e aqui está o busílis — ainda que não se saiba (ou se reconheça) positivismo, trata todos os conceitos jurídicos como se fossem criteriais, isto é, como se tivessem seus significados previamente fixados por critérios de convenção semântica. Com todo o respeito acadêmico, permito-me dizer que, sem compreender esse fenômeno, o Direito andará em círculos. Inclusive a autodenominada crítica jurídica anda em círculos e, nos momentos de "teses limites", não se entende. Dworkin critica veementemente o semantic sting (o ferrão semântico). Desse modo é que a dogmática jurídica trata um fenômeno interpretativo: como se fosse criterial. Isso é convencionalismo hardcore, diria Dworkin. Respostas antes das perguntas.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!