Opinião

Liberdade de expressão da mulher e seu direito de (não) vestir

Autores

  • Inês Virgínia Prado Soares

    é desembargadora federal no TRF-3 e mestre e doutora em Direito.

  • Arícia Fernandes Correia

    é procuradora do município do Rio de Janeiro professora da Uerj (Universo do Estado do Rio de Janeiro) pós-doutora em Direito pela Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne — doutora em Direito Público pela Uerj mestre em Direito da Cidade pela Uerj e autora de publicações na área de Direito Urbanístico e Municipal.

8 de março de 2023, 16h14

Dentre as lutas e debates por igualdade entre gêneros travados no mês de março, em torno das celebrações do dia da mulher, há pouca atenção ao direito feminino de usar a roupa que quiser, especialmente nos espaços públicos. Tampouco se explora a violência existente na imposição de estereótipos de gênero, raça e classe quando se aborda os corpos das mulheres e as roupas e adereços que os acompanham. O direito personalíssimo de vestir, expressão da liberdade de ser e estar no mundo, decorre da privacidade e do exercício do direito à autoimagem. No entanto, nas relações cotidianas, nota-se uma maior atenção à aparência e ao modo de ser e vestir das mulheres do que ao seu talento, personalidade ou êxito profissional.

Trey Ratcliff
Em 2022, numa reportagem sobre a aplicação, pelas magistradas e magistrados brasileiros, do Protocolo para Julgamento sob a Perspectiva de Gênero, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021, foi citado o caso julgado pela juíza Katarina Mousinho de Matos Brandão, da 4ª Vara do Trabalho de Brasília, no qual houve condenação por danos morais do empregador que obrigava a empregada a usar batom e cobrir as tatuagens durante a jornada de trabalho, sob pena de demissão. Não raro, são noticiadas situações de mulheres barradas em fóruns e tribunais pela inadequação da vestimenta. Há casos de proibição de usar saias curtas, de advogada grávida cujo vestido foi considerado curto por uma atendente do fórum e pelo policial militar ou de impedimento de entrar no fórum por usar "roupa não composta".

O reverso da moeda, para falar de mulheres magistradas, tem um raro exemplo que merece ser lembrado: os colares e gravatas-borboleta estilizadas usadas como gola da toga, juntamente com seus óculos emoldurados por aros escuros, foram marcas inconfundíveis de Ruth Ginsburg, juíza da Suprema Corte Americana. Segundo reportagem do Universa: "o colar escolhido para adornar o figurino de Ruth era um prenúncio sobre seu posicionamento em determinada discussão, alçando a escolha estética a um mergulho de significados e apostas. Ela mesma dava apelido aos acessórios e gostava de usar o que chamava de 'colar da divergência', metálico, semelhante a uma armadura com espinhos, da marca Stella & Dot". Ainda no campo das práticas inspiradoras, pode-se citar o uso de calças pela ministra Carmen Lucia, do STF, em março de 2007. Até então, apenas saias eram usadas nas sessões de julgamento do Supremo, tanto pelas magistradas como também pelo corpo de mulheres servidoras do Judiciário, advogadas e outras frequentadoras do local de julgamento.

Mas a vigilância sobre o modo de vestir da mulher não é violência praticada apenas no mundo jurídico. Um estudo sobre o comportamento de profissionais da saúde nas redes sociais, publicado em dezembro de 2019 no Journal of Vascular Surgery, respeitado periódico de medicina, considerou as mulheres da área médica que postavam fotos de biquíni em suas redes sociais "apresentavam um comportamento antiprofissional". Esse estudo provocou uma reação mundial em 2020, com o compartilhamento, por mulheres profissionais da saúde de todo mundo, de fotos de biquíni com a hashtag #MedBikini.

Em 2015, a Representation Project lançou a campanha #askhermore (pergunte mais a ela), com um apelo para que os jornalistas perguntassem mais às atrizes de Hollywood sobre seus papéis e menos sobre seus vestidos e penteados. Nesse mesmo ano, a campanha #DistractinglySexy (#distraidamente sexy), com fotos de cientistas trabalhando com seus uniformes nada sensuais, viralizou nas redes sociais depois que Tim Hunt, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina, disse, numa conferência mundial, que mulheres eram um fator de "distração" no trabalho.

O que parece uma pergunta fútil, sobre a marca da roupa que a atriz usa, ou um comentário infeliz, como o de que as mulheres distraem os homens nos escritórios ou laboratórios são um indicativo da necessidade de mudanças urgentes e profundas na postura coletiva em espaços públicos, como forma de se garantir a equidade de gênero, de proteger a integridade física e psíquica da mulher, bem como de lhe assegurar a liberdade de expressão e locomoção. Essas posturas, falas e expectativas sobre a desenvoltura feminina, desde o modo de vestir, podem se caracterizar, em algumas situações, como estágios gradativos de violência.

Em 2019, em meio às manifestações no Chile que trouxeram profundas mudanças na democracia do país, viralizou a performance "un violador en tu camino", realizada por mulheres de olhos vendados, que entoavam que a culpa é de quem estupra. Essa coreografia foi encenada em diversas cidades brasileiras, com o refrão "E a culpa não era minha, nem de onde estava, nem de como me vestia. O estuprador era você". No ano anterior, 2018, na Bélgica, a exposição "A Culpa é Minha?" exibiu roupas usadas por vítimas na hora do estupro. A mostra teve bastante repercussão, porque ao apresentar trajes absolutamente triviais, refutou-se o óbvio: que não são as escolhas das mulheres sobre suas vestimentas que induzem a violência ou transformam alguém em assediador, importunador e estuprador. As matérias jornalísticas brasileiras sobre a exposição belga traziam dados de uma pesquisa do Datafolha de 2016, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que diziam que, para mais de um terço dos brasileiros, "mulheres que se dão ao respeito não são estupradas" e "mulher que usa roupas provocantes não pode reclamar se for estuprada".

A atenção para os trajes das mulheres tem contornos jurídicos relevantes não apenas vinculados à sua vida e segurança, mas também ligados ao direito humano e fundamental ao exercício da liberdade de expressão. Por essa razão, o assunto precisa ser apreciado com maior ênfase, devendo ser considerado inclusive no desenho de políticas públicas, na reformulação normativa e no julgamento sob a perspectiva de gênero.

Claudina Isabel Velásquez era uma jovem de 19 anos, estudante de Ciências Sociais, que veio a ser encontrada morta e com indícios de ter sido estuprada, poucas horas depois de a família ter recorrido à polícia, diante de indícios de que sua filha estaria em perigo, tendo o Estado determinado que se aguardassem as 24 horas protocolares para o registro do desaparecimento, antes das quais a vítima veio a ser encontrada morta. Claudina foi apontada no processo como "XX", mesmo depois de sua identidade ter sido obtida, o que já demonstra que se lhe negavam direitos personalíssimos post mortem, a começar pelo nome. Além disso, houve falhas na investigação do crime em razão de estereótipos de gênero, prejudicando, assim, a observância do devido processo legal pelo simples fato de ser a vítima uma mulher, cujas vestimentas, "gargantilha no pescoço, piercing no umbigo e sandálias", levariam à ilação de se tratar de uma "bandida" ou "uma qualquer".

No julgamento do Caso Velásquez Paiz versus Guatemala pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, reconheceu-se a violação, pelo Estado da Guatemala, ao exercício do direito à vida e à integridade física da jovem, mas se determinou também que seria desnecessário emitir um pronunciamento a respeito das alegadas violações do direito à vida privada, à liberdade de expressão e ao direito de circulação.

Em voto com divergência parcial, um dos juízes consignou que também deveria ser declarada a "violação à liberdade de expressão pela vestimenta, particularmente feminina, em situações como no presente caso, em que o uso de roupas se transforma em elemento de identificação da vítima a camada social especialmente vulnerável e seguida de estigmatização, reconhecendo a negligência do Estado em levar a fundo as investigações de um assassinato. O argumento do voto é que essa negligência e a violação ao devido processo legal também foram fundadas no fato de o cadáver da mulher ter sido encontrado em um 'bairro de classe média baixa'". A aparofobia se confundira com a negação ao direito à liberdade de se expressar por meio de adereços e vestes de uma jovem de dezenove anos que talvez, se morta num bairro nobre, fossem tolerados como fashionistas.

O caso Claudina Velásquez aconteceu na Guatemala, mas estampou violência institucional a uma liberdade de expressão (re)conhecida pelas mulheres brasileiras em seu cotidiano, mas ainda pouco estudada ou combatida em nosso país: a de aparelhar as instituições públicas e privadas, com instrumentos, institutos, normas e outros meios — inclusive a omissão estatal —, que servem para frustrar a liberdade das mulheres em seu direito de não seguirem dress codes e de adotarem a "moda", os cabelos, os corpos, as indumentárias, os acessórios, as marcas corporais ou os gestos que quiserem.

Nesse voto, é constatado que a negação da liberdade de expressão de Claudina, pelo seu modo de vestir, foi uma violação "perpetrada pela ação do Estado, que denota que não será garantida a segurança de mulher que simplesmente parece exteriorizar, por meio de suas vestimentas, uma determinada identidade sexual ou cultural, bem como seu pertencimento a determinadas coletividades femininas". É também destacado que a liberdade de expressão de vestir tem "conteúdo político relevante", já que "a escolha individual na vestimenta e adereços que modificam a aparência física serve para exteriorizar a adesão a determinado grupo ou cultura".

A repressão cultural e religiosa por meio da exigência de vestimentas e acessórios veio à tona em 2022, em decorrência da onda de protestos após a morte de Mahsa Amini, de 22 anos, que fora vista viva pela última vez quanto detida pela polícia da moralidade em Teerã, capital do Irã, por violar as regras do país, que exigem que as mulheres cubram os cabelos com um hijab, ou um lenço de cabeça. As mulheres iranianas superaram o pavor que lhes é imposto cotidianamente e desafiaram as regras sobre cobrir a cabeça. Imagens divulgadas mostram várias delas subindo em lixeiras e carros, enquanto agitavam os véus e lenços no ar, o queimavam e muitas cortavam o cabelo, gritando "zan, zendegi, azadi", ("mulher, vida, liberdade").

As redes sociais também estão repletas de reações de mulheres contra a violência imposta institucionalmente, incluindo personalidades conhecidas, como a atriz iraniana Fatemeh Motamed-Arya, que deu uma declaração emocionada, na qual afirma que a morte de Mahsa é a morte de uma filha: "eu sou a mãe de Mahsa, sou a mãe de todas as iranianas e não sou uma mulher numa terra de assassinos". A onda de protestos em favor das mulheres iranianas chegou a outros países. Em Istambul, na Turquia, milhares de pessoas foram para a ruas segurando cartazes com fotos de Mahsa.

Na internet, também foi bastante simbólica a divulgação de vídeo com mais de cinquenta artistas, entre elas Juliette Binoche, Marion Cotillard, Isabelle Adjani e Isabelle Huppert, no qual, ao som da música Bella Ciao, Binoche usa o termo "por liberdade" como palavra de ordem para dar início ao corte de mechas de seu cabelo, imagem repetida por dezenas de celebridades e lideranças francesas.

O uso do véu em espaços públicos é um debate recorrente na França, um Estado oficialmente laico. Na Europa, desde 2010, a Bélgica e a França promulgaram leis que proíbem o uso de véus islâmicos que escondem o rosto, punindo com multas o seu descumprimento. Apesar do combate dos grupos de direitos humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou essas leis válidas. A mesma proibição legal existe na Dinamarca (lei de 2018), Áustria (lei de 2017) e Alemanha (2017). Em 2021, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que empresas privadas podem proibir que os seus funcionários usem véu islâmico durante o horário de trabalho.

Em sentido oposto, mas igualmente violador da liberdade de expressão feminina, o governo da Indonésia passou a exigir que meninas e mulheres usem o jilbab, vestuário muçulmano que cobre a cabeça, o pescoço e o peito. A exigência teve impacto psicológico e causou sofrimento às meninas, estudantes que passaram a sofrer bullying se não usassem o véu e até a serem expulsas da escola, quando não desistiram de frequentar as aulas; enquanto as mulheres, funcionárias públicas, perderam seus empregos ou pediram demissão para escapar das constantes exigências de conformidade. Essa situação foi denunciada pela Human Rights Watch no relatório "I Wanted to Run Away': Abusive Dress Codes for Women and Girls in Indonesia".

O estabelecimento de códigos de vestimenta para oprimir as mulheres assume contornos mais perversos quando afeta aquelas já vulneráveis em razão da desigualdade social da realidade brasileira, marcada pela pobreza, restrição de acesso ao emprego, além dos fatores raciais e de gênero. Os trajes escolhidos pelas mulheres para irem ao trabalho, foi o mote do livro Mulher, roupa, trabalho, lançado em 2021, escrito por Mayra Cotta e Thais Farage, no qual as autoras debatem padrões e estruturas que, ao enquadrarem determinados estilos e roupas às profissionais das mais diversas áreas e classes sociais, limitam a liberdade feminina e desigualam os gêneros.

A única vez que o Código Civil menciona a expressão "roupas" é quando trata dos codicilos: "escrito particular seu, datado e assinado" através do qual o indivíduo faz "disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, ou, indeterminadamente, aos pobres de certo lugar", assim como através do qual pode "legar móveis, roupas ou jóias, de pouco valor, de seu uso pessoal" (artigo 1.882), mas é em vida que elas lhes tecem a trama das negociações e das ocasiões. Dentre tantos exemplos, pode-se lembrar da detenção, em 2022, da artista plástica Beatriz Coelho, porque ela fazia topless em uma praia. A ausência do sutiã do biquíni foi considerada ato obsceno pelo policial que a levou para a delegacia. Algemada nos pés, Beatriz Coelho contou que ao seu lado, na delegacia, "tinha um homem aguardando sem camisa".

Tratada no campo da autonomia da vontade, da liberdade de expressão, sem qualquer tipo de discriminação, o vestir-se não precisa ser judicializado, mas nem por isso deixa de ser um ato de liberdade e afirmação política da mulher passíveis de oposição ao Estado.

Mulheres livres arrancam mechas em praça pública; queimam calcinhas; rasgam espartilhos; expõem mamilos que dizem "agora não" ou estampas que conclamam: "vem ni mim que eu to facinha". Podem se vestir de forma recatada e serem doidivanas ou viverem dressed to kill, sem fazer mal a ninguém. Expõem assim quem são e, em se expondo, se desnudam, mesmo vestidas, em meio a uma sociedade ainda preconceituosa, de olhos ubíquos e compreensões tardias. Não pedem aplauso ou gracejo, senão respeito: por suas escolhas e pelo direito de ser e se apresentar nos espaços públicos como quiser.

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