Território Aduaneiro

A denúncia espontânea no Direito Aduaneiro: confissão e perdão

Autores

  • Arnaldo Diefenthaeler Dornelles

    é auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil (em mandato de conselheiro titular) representante da Fazenda Nacional na 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais graduado em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em mercado de capitais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

7 de março de 2023, 8h00

É bastante comum que os pais, na formação do caráter de seus filhos, busquem educá-los sob um manto de honestidade e de integridade, incentivando-os a sempre dizer a verdade e a assumir as consequências frente às traquinices. Por isso, certo ou errado, não é incomum que os pais "perdoem" os filhos e os dispensem do castigo diante da "confissão" do ocorrido, especialmente se o objeto quebrado não for assim tão estimado.

Spacca
A Bíblia, por sua vez, em diversas passagens, faz uma clara associação entre a confissão e o perdão. Mas aqui temos um ingrediente a mais: o arrependimento. Arrependidos, confessamos nossos pecados e alcançamos o perdão de Deus.

Bem distante dessas questões morais, o Direito, por razões absolutamente práticas e pragmáticas, também costuma associar o "perdão" à "confissão", a exemplo do que vemos no instituto da denúncia espontânea, presente tanto no Direito Tributário quanto no Direito Aduaneiro, este último objeto maior de nossa atenção no presente texto.

O instituto da denúncia espontânea, já de longa data, encontra-se consagrado no artigo 138 do Código Tributário Nacional (CTN) e traz embutida a ideia de que aquele que descumprir uma obrigação pode ter sua responsabilidade (pela infração) excluída caso vá até o Fisco, espontaneamente, "regularizar" sua situação. Na prática estamos falando da não aplicação de sanção contra uma pessoa que efetivamente incorreu em uma infração.

Contudo, por que o Fisco deixaria de aplicar uma multa contra uma pessoa que admite ter cometido uma infração? A resposta a essa questão não passa necessariamente pelo caráter magnânimo dessa entidade conhecida como "Fisco". As razões do legislador trazem em si uma praticidade e um pragmatismo evidentes: arrecadar mais com um menor esforço.

Não tendo o Fisco condições e nem estrutura para fiscalizar a tudo e a todos, e considerando que a infração tributária, geralmente está relacionada com a falta de recolhimento de tributos, o legislador ponderou as opções e resolveu estabelecer um "prêmio" para aqueles que autodenunciarem a infração cometida e, ao mesmo tempo, repararem os danos causados (pagando os tributos devidos). Nesse sentido, as explicações de Rosenice Deslandes [1] de que o instituto da Denúncia Espontânea "é medida tendente a conciliar certa comodidade para o Fisco e o incremento da arrecadação" e que "o produto financeiro das sanções, dispensado pelo Fisco, é recuperado através da economia deste que poupará diligência, empenho e vigilância".

Esse é o fio condutor que está por trás do instituto da denúncia espontânea, mas, para que o resultado que se deseja (a exclusão da responsabilidade pela infração e o consequente afastamento da sanção) possa ser obtido, é preciso que se observem os requisitos e condições que permeiam esse instituto, conforme preceitua o próprio artigo 138 do CTN.

Em primeiro lugar, é evidente que o tipo legal exige um ato voluntário do interessado, que deve "confessar" para o Fisco a infração cometida. O próprio nome do instituto diz isso: denúncia espontânea.

Em segundo lugar, é preciso observar que essa "confissão" deve levar para o Fisco algo que não seja do seu conhecimento (ou, pelo menos, que o Fisco não tenha ainda manifestamente sabido) ou cujo conhecimento não esteja em vias de ser revelado para ele. Essa é a motivação que está imbricada no parágrafo único do artigo 138 do CTN, segundo o qual "não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração".

Por fim, é pressuposto para a aplicação desse instituto que a obrigação inadimplida seja cumprida e que os danos provenientes da infração cometida sejam reparados. É isso que se extrai do caput do artigo 138 do CTN, o qual determina que a denúncia espontânea da infração deve estar acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora. Assim, fica claro que se o descumprimento concerne à obrigação principal, a responsabilidade será excluída quando e se o infrator voluntariamente reparar o dano por meio do pagamento do tributo.

Daí tiramos os três requisitos/condições para a aplicação do instituto da denúncia espontânea: voluntariedade, antecipação ao Fisco e cumprimento da obrigação com reparação do dano.

Visto dessa forma, chama atenção a proximidade que esse instituto alcança com o conceito de "arrependimento posterior", constante no artigo 16 do Código Penal, que prevê a redução de um a dois terços da pena nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa em que o agente, por ato voluntário e antes do recebimento da denúncia ou da queixa, repara o dano ou restitui a coisa. A diferença é que a denúncia espontânea afasta por completo a sanção [2].

Uma última questão relativa ao instituto da denúncia espontânea aplicada no Direito Tributário diz respeito ao alcance do instituto. Seria aplicado apenas em relação ao descumprimento das obrigações principais ou alcançaria também o descumprimento das obrigações acessórias?

A doutrina vê na expressão "se for o caso", utilizada no caput do artigo 138 do CTN, uma clara referência às obrigações acessórias, uma vez que o descumprimento da obrigação principal estaria sempre associado à falta de pagamento de tributo. Mas isso pode ser questionado. Podemos imaginar situações em que se poderia cogitar a utilização do instituto da denúncia espontânea não para o pagamento de um tributo devido, mas sim para a redução do tributo a ser restituído, como é o caso, por exemplo, de uma retificação da declaração anual do imposto de renda da pessoa física.

Não obstante, não deixamos de reconhecer a força do argumento, principalmente porque o senso comum, que, inclusive, pode ter motivado o legislador, nos impele a associar o descumprimento da obrigação principal com a falta de pagamento de tributo.

Mas há outras razões que nos convencem que o instituto da denúncia espontânea, desde a sua criação, estava direcionado, também, para o descumprimento de obrigações acessórias. Primeiro, porque não há nada na legislação que diga o contrário. Segundo, e mais importante, porque o anteprojeto do CTN trazia, no artigo 289, a expressa vedação de aplicação do instituto às obrigações tributárias acessórias, o que foi retirado do texto final [3].

O instituto da denúncia espontânea aplicado no Direito Aduaneiro, apesar de ser um reflexo daquele aplicado no Direito Tributário, possui disciplina própria no Decreto-Lei nº 37, de 1966, mais especificamente em seu art. 102.

O curioso é que, em sua redação original, esse artigo 102 tratava apenas da denúncia espontânea relativa à pena de perdimento, hipótese esta que está expressamente excepcionada pela redação vigente.

Mas os elementos da voluntariedade, da antecipação ao Fisco e, de certa forma, da reparação do dano (melhor seria falar em prevenção do dano), já estavam lá. Observe-se que o artigo 102 falava em "declaração voluntária feita pelo infrator a autoridade aduaneira, capaz de evitar a efetivação de ato punível com a pena de perdimento, (…), desde que a declaração anteceda ao comprovado conhecimento do ilícito, pela fiscalização, ou a atos de busca, exame ou conferência aduaneira".

O Decreto-Lei nº 2.472, de 1988, por sua vez, alterou a redação desse artigo 102 e trouxe para o Direito Aduaneiro um regramento muito parecido, para não dizer idêntico, àquele previsto no artigo 138 de CTN, fazendo constar, em seu § 2º, que a denúncia espontânea se aplicaria apenas e tão somente às penalidades de natureza tributária.

Mas não foi exatamente isso que o legislador quis fazer. A intenção não era disciplinar a aplicação do instituto da denúncia espontânea apenas em relação às penalidades de natureza tributária, mas sim em relação às penalidades pecuniárias, excluindo desse universo a penalidade do perdimento. Isso fica muito claro na leitura da Exposição de Motivos nº 296, de 1º de setembro de 1988, que esclarece ao final da alínea "i" do item 5, que "nos casos em que se prevê a aplicação da pena de perdimento, não há que se cogitar de denúncia espontânea, visto que esta só beneficia o infrator passível de pena pecuniária".

Essa redação utilizada pelo legislador gerava dúvidas e divergências na aplicação do instituto. Ao mesmo tempo em que o Fisco não aplicava a denúncia espontânea para qualquer hipótese de pena de perdimento, inclusive para aquela decorrente da falta de pagamento de tributos (com dolo), também não a aplicava quando a penalidade era claramente de cunho aduaneiro, com é o caso da multa de 1% pelo erro de classificação, pelo erro na quantificação na unidade de medida estatística ou pela omissão ou prestação inexata ou incompleta de "informação de natureza administrativo-tributária, cambial ou comercial necessária à determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado".

Na expectativa de tornar mais clara a aplicação do instituto da Denúncia Espontânea para todas as penalidades pecuniárias, inclusive para aquelas aplicáveis pelo descumprimento de obrigações acessórias (especialmente a multa de 1%), o legislador atendeu a um pedido das empresas habilitadas ao programa de Despacho Aduaneiro Expresso — Linha Azul e ao regime aduaneiro especial de Entreposto Industrial sob Controle Informatizado — Recof e promoveu, por meio da Lei nº 12.350, de 2010, uma alteração no § 2º do artigo 102 do Decreto-Lei nº 37, e 1966, que passou a determinar que a "denúncia espontânea exclui a aplicação de penalidades de natureza tributária ou administrativa, com exceção das penalidades aplicáveis na hipótese de mercadoria sujeita a pena de perdimento".

Mas essa nova redação, especialmente a utilização do termo "penalidades de natureza administrativa", acabou gerando outras dúvidas:

1. Como não há uma exclusão expressa, poderia a denúncia espontânea ser aplicada para as sanções administrativas de advertência, suspensão e cancelamento/cassação?

2. Poderia a denúncia espontânea ser aplicada para qualquer infração administrativa que não resulte na pena de perdimento, especialmente aquelas relacionadas com o descumprimento de prazo e com a falta de entrega de documentos?

O Regulamento Aduaneiro, cumprindo seu papel de regulamentar e interpretar a lei, afastou o primeiro questionamento com a alteração do § 2º do artigo 683, o qual expressamente delimitou a aplicação do instituto da Denúncia Espontânea às penalidades pecuniárias, ao prever que a denúncia espontânea "exclui a aplicação de multas de natureza tributária ou administrativa…".

Quanto ao segundo questionamento, a polêmica persiste até hoje, embora mitigada, ao menos na esfera administrativa, pela edição da Súmula Carf nº 126, que não admite a aplicação do instituto da denúncia espontânea em relação à penalidade prevista pela não prestação de informações aduaneiras, na forma e no prazo previstos pela Receita Federal.

De nossa parte, não vemos essa questão como tão polêmica assim. Os requisitos ou condições para a aplicação do instituto da Denúncia Espontânea estão muito bem postos e definidos, seja no âmbito do Direito Tributário, seja no âmbito do Direito Aduaneiro, sendo inafastável a necessidade de que haja a voluntariedade, a antecipação ao Fisco e, especialmente, o cumprimento da obrigação com a reparação do dano.

Sobre a voluntariedade e a antecipação ao Fisco, não parecer haver discussão. O foco, nos parece, está no terceiro fundamento, que muitos parecem ignorar.

Quando estamos diante de uma determinação legal para a prestação de informação, na qual, o prazo é um aspecto fundamental para a determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado, e, por isso mesmo, faz parte da própria obrigação, a intempestividade priva, ou, ao menos, dificulta a ação do Fisco no momento em que deveria agir, de tal forma que a prestação da informação a destempo não permite o refazimento do controle aduaneiro. Neste caso, portanto, não é reparado o dano (ao controle aduaneiro) causado.

Por outro lado, seria um contrassenso permitir, nos casos em que a lei estabelece a obrigação a ser cumprida a determinado tempo e penaliza o infrator justamente pelo descumprimento desse prazo, que o instituto da denúncia espontânea viesse e anulasse esses efeitos. Seria como assumir que o prazo não é importante e o seu cumprimento é despiciendo.

Assim, voltamos a reforçar a importância de que se verifiquem os requisitos/condições do instituto da denúncia espontânea, o qual não pode ser aplicado caso não parta de um movimento voluntário do interessado, iniciado antes de qualquer ação do Fisco, e, principalmente, se esse movimento não estiver acompanhado do cumprimento da obrigação inadimplida ou não for capaz de reparar o dano causado pelo cometimento da infração denunciada [4]

Por fim, cabe anotar que esse artigo é fruto de um diálogo de longa data entre os autores. Fica, como sugestão de aprofundamento, a indicação de artigo dos autores: Denúncia Espontânea em Matéria Aduaneira [5], de Liziane Meira, e Arrependimento e Reparação de Dano – Uma Abordagem da Denúncia Espontânea no Direito Aduaneiro, de Arnaldo Dornelles [6].

 


[1] DESLANDES, Rosenice. Denúncia Espontânea: alcance e efeitos no direito tributário. 1ª ed. 2ª tir. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 13.

[2] Não só no Direito Penal Brasileiro, mas também no Direito Aduaneiro Internacional, a tendência externada é pela redução e não pela supressão da penalidade, em caso de denúncia espontânea. O Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC/OMC) prevê expressamente, em seu art. 6.3.6: "Quando uma pessoa espontaneamente revelar à administração aduaneira de um Membro as circunstâncias de uma violação de suas leis, regulamentos ou atos normativos procedimentais de caráter aduaneiro antes da descoberta dessa violação pela administração aduaneira, o Membro é incentivado a considerar, quando for o caso, este fato como potencial circunstância atenuante ao estabelecer uma penalidade para essa pessoa" (grifo nosso)

[3] "Art. 289. Excluem a punibilidade: I – a denúncia espontânea da infração pelo respectivo autor ou seu representante, antes de qualquer ação fiscal, acompanhada do pagamento, no próprio ato, do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa competente, se o montante do tributo depender de apuração; II – o erro de direito ou sua ignorância, quando escusáveis. § 1º Sem prejuízo das hipóteses em que, em face das circunstâncias do caso, seja escusável o erro de direito para os efeitos previstos na alínea II deste artigo, considera-se tal erro, a que seja induzido o infrator leigo por advogado, contador, economista, despachante ou pessoa que se ocupe profissionalmente de questões tributárias. § 2º As causas de exclusão da punibilidade previstas neste artigo não se aplicam: I – às infrações de dispositivos da legislação tributária referente a obrigações tributárias acessórias; II – aos casos de reincidência específica".

[4] Nesse sentido deve ser vislumbrada a Súmula Carf nº 126 e a Solução de Consulta Cosit nº 08, de 30 de maio de 2016,

[5] MEIRA, Liziane Angelotti. Denúncia Espontânea em Matéria Aduaneira. In: Mary Elbe Queiroz. (Org.). Tributação em Foco: a opinião de quem pensa, faz e aplica o direito tributário (XIV Congresso Internacional de Direito Tributário de Pernambuco). 1ed.São Paulo: FocoFiscal, 2015, v. 1, p. 79-107.

[6] DORNELLES, A. D.. Arrependimento e Reparação de Dano — Uma Abordagem da Denúncia Espontânea no Direito Aduaneiro. Revista de Direito Internacional Econômico e Tributário, v. 9, p. 19-49, 2014.

Autores

  • é auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil (em mandato de conselheiro titular), representante da Fazenda Nacional na 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, graduado em Direito e em engenharia elétrica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em mercado de capitais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

  • é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!