Fábrica de Leis

O retorno da apreciação das medidas provisórias por comissão mista

Autor

  • Shana Schlottfeldt

    é analista legislativo da Câmara dos Deputados professora colaboradora do mestrado profissional em Poder Legislativo do Cefor-CD (Centro de Formação Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados) doutora pela UnB (Universidade de Brasília) visiting PhD student at University of York mestre pela Universidad Carlos 3º de Madri especialista em Direito Parlamentar e Poder Legislativo pelo ILB (Instituto Legislativo Brasileiro) do Senado bacharela em Direito pela UnB LLB exchange student at Australian National University pesquisadora do Observatório da LGPD-UnB pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações (Getel/UnB/CNPq) autora do livro "All Eyes on Me: riscos e desafios da Tecnologia de Reconhecimento Facial à luz da Lei Geral de Proteção de Dados".

7 de março de 2023, 8h00

As análises e discussões acerca das medidas provisórias (MPVs) apresentam diversas facetas e desdobramentos que merecem não só atenção, como definitivamente mais do que um artigo. Na coluna de hoje, faremos um recorte material e temporal de uma dessas facetas para apresentar ao leitor a discussão da apreciação das MPVs por comissão mista formada por deputados e senadores, em seus desdobramentos mais atuais. Mas antes de avançar, é preciso dar um passo atrás…

ConJur
Nos pouco mais de 30 anos de existência das MPVs, pode-se dizer que elas passaram por "duas gerações" — a primeira, representado a redação original do artigo 62 da Constituição Federal (CF) e, a segunda, a redação resultante da Emenda Constitucional (EC) nº 32/2001 —contando, nesse ínterim, com interpretações tanto do Legislativo quanto do Judiciário, que contribuíram na delimitação dos contornos desse instituto, definindo-o de maneira mais precisa.

Na esteira da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.029, de relatoria do ministro Luiz Fux, julgada pelo Plenário em 2012, o STF firmou entendimento que, em obediência ao artigo 62, §9º, da CF, seguindo o devido processo legislativo, todas as MPVs deveriam ser obrigatoriamente instruídas por comissão mista antes da apreciação em plenário de cada uma das Casas do Congresso. Neste sentido, o Supremo decidiu pela inconstitucionalidade dos artigo 5º, caput, art. 6º, caput e §§ 1º e 2º, da Resolução nº 1/2002 do Congresso Nacional (CN).

No Acórdão, é apontado que a importância das comissões mistas no processo de conversão de MPVs é decorrência da exigência constitucional de "uma reflexão mais detida sobre o ato normativo primário emanado pelo Executivo, evitando que a apreciação pelo Plenário seja feita de maneira inopinada, [] o parecer desse colegiado representa, em vez de formalidade desimportante, uma garantia de que o Legislativo fiscalize o exercício atípico da função legiferante pelo Executivo". Afirma, ainda, que "com o esvaziamento da Comissão Mista, instaura-se um verdadeiro 'império' do relator, que detém amplo domínio sobre o texto a ser votado em Plenário".

Diante disso, o STF sustentou a inconstitucionalidade das MPVs convertidas em lei que não foram examinadas por comissão mista, dado que o pronunciamento do relator não teria a capacidade de suprir o parecer exigido pelo constituinte[1].

Mas pasmem: todas as 561 MPVs editadas desde a promulgação da EC nº 32/2001 até o julgamento da ADI nº 4.029 foram instruídas por "relatores de plenário", designados pelos presidentes das Casas do Congresso, conforme prática prevista na Resolução nº 1/2002-CN, i.e., nenhuma comissão mista havia aprovado um parecer instrutivo sequer, antes do envio da matéria aos plenários!

Diante da possível insegurança jurídica advinda de sua decisão — com o potencial de invalidar todas as leis de conversão de MPVs promulgadas desde a EC nº 32/2001 e instaurar o caos no arcabouço legal nacional , o STF apoiou-se no artigo 27 da Lei nº 9.868/1999 para modular os efeitos da nulidade, na forma pure prospectivity, segundo a qual o novo entendimento se aplicaria exclusivamente aos casos futuros (excluindo, inclusive, o caso que levou à superação da tese). Assim, em nome da segurança jurídica, a decisão manteve todas as leis derivadas, até então, de conversão de MPV que não tivessem observado o art. 62, §9º, da CF, desde a edição a EC nº 32/2001.

Foram apontados como benefícios colhidos da decisão, a instrução mais capacitada/especializada, com ganho informacional real; maior transparência; fortalecimento do bicameralismo, não só pelo maior equilíbrio da participação de ambas as Casas nas discussões e negociações no âmbito da comissão, mas na medida em que se institucionalizou a alternância de deputados e senadores na relatoria das MPVs[2].

Entretanto, como nem tudo são flores, foi identificado o aumento no custo de aprovação das MPVs para o Executivo devido a fatores como[3]:

  1. O aumento no número de instâncias decisórias: como as comissões mistas correspondem a tantas quantas forem as MPVs editadas pelo presidente da República, tem-se um maior esforço de mobilização da base parlamentar do governo, mas também da assessoria técnica para monitoramento desses colegiados;
  2. O acréscimo no número de pontos de veto: aos atores anteriormente existentes — presidente da Casa, relator e líderes partidários —, acresceram-se outros atores pela atuação mais participativa dos parlamentares; ademais, se antes havia uma assimetria pela maior permanência da MPV na Câmara dos Deputados, com as comissões mistas, tem-se maior discussão da matéria, inclusive em audiências públicas; surgiram também novos instrumentos, como a "obstrução cruzada", i.e., os líderes poderiam obstruir várias comissões de MPV, ainda que seu interesse fosse apenas uma MPV específica, aumentando seu poder de barganha e de negociação;
  3. A baixa institucionalização do processo decisório: que não se encontraria clara e adequadamente regulado pela Resolução nº 1/2002-CN, ao que se somaria a possibilidade de utilização, subsidiaria e em sequência, de outros três diplomas normativos — o Regimento Comum do CN, o Regimento Interno do Senado e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados —, o que a contrário senso do que se possa imaginar, contribui para a complexidade do processo decisório e não para a clareza das regras; some-se a este cenário a possibilidade de interpretações distintas pelos diferentes presidentes de comissão, o que dificulta a uniformização das normas. Apesar disso, é possível falar-se em uma "jurisprudência mínima", ainda que constituída eminentemente de regras informais, criada ao longo do tempo de funcionamento das comissões de MPVs, mas apta a atribuir estabilidade aos seus processos decisórios.

Em que pese todo o exposto, segundo Bedritichuk[4], a edição elevada de MPVs — mesmo após a decisão do STF em 2012 —, bem como o alto índice de aprovação sugeririam que o aumento do custo político nos termos acima colocados, não teria embaraçado o emprego de MPVs pelo Executivo (cujo crescente volume merece ser discutido em outro artigo). O que teria mudado seria o aumento considerável na "média de dispositivos vetados das MPVs aprovadas", uma espécie de índice da "deterioração da relação Executivo-Legislativo": os parlamentares se viram com mais instrumentos de intervenção no processo decisório, aumentando a pressão distributiva na forma de emendas; o Executivo, por sua vez, se viu obrigado a "barrar" com mais frequência dispositivos aprovados pelo Congresso em desacordo com sua vontade (isso sem mencionar os tantos itens que o Executivo teve que ceder pela sanção, que não são captados pelo instrumento do veto).

Mas a questão das comissões mistas para apreciação das MPVs sofre uma reviravolta em 2020 — juntamente com todo o Processo Legislativo, diga-se de passagem. Isso como consequência da pandemia de Covid-19, que trouxe enormes desafios ao Congresso.

Como mencionado em artigo que tratou da instituição do Sistema de Deliberação Remota (SDR) no Legislativo federal, o Congresso reagiu com celeridade à séria crise de proporções globais: diante da premissa de que não podia parar, teve que se adaptar. Em 17/3/2020, menos de uma semana após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a Covid-19 pandêmica, foram publicados os normativos instituindo o SDR em cada Casa do Congresso[5],[6]. Três dias depois, em 20/3/2020, o Senado realizava a primeira sessão totalmente remota de um parlamento no mundo, experiência pioneira que mereceu destaque internacional. Importa salientar que no mesmo 20/3/2020, o presidente da República havia insinuado pedir ao Congresso o estado de sítio, hipótese imediatamente afastada pela presidência das duas Casas do Congresso, evidenciando que o SDR, ao permitir a continuidade do funcionamento legislativo, evitou a um só tempo, soluções autocráticas e a omissão estatal.

Nesse diapasão, também em março de 2020, a Advocacia-Geral da União ingressou no STF com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 663 na qual pediu a suspensão dos prazos das matérias da MPVs. Câmara e Senado posicionaram-se contrários à suspensão dos prazos, propondo, em vez disso, rito especial de tramitação: durante a situação emergencial provocada pela pandemia de Covid-19, as MPVs seriam instruídas por sessão remota no Plenário da Câmara e do Senado mediante a emissão de parecer por parlamentar previamente designado, em substituição à comissão mista (cf. Ato Conjunto da CD e do SF nº 1, de 2020). A ADPF nº 663 foi decidida em conjunto com a ADPF nº 661 (proposta pelo Diretório Nacional do Partido Progressistas).

O ministro relator, Alexandre de Moraes, destacou a impossibilidade de se aguardar o fim da situação de pandemia e a retomada das reuniões das comissões mistas para que as MPVs fossem devidamente analisadas. Destacou que a CF permite a suspensão do prazo para análise das MPVs apenas durante o recesso parlamentar, não subsistindo qualquer outra hipótese, sequer em estado de defesa ou estado de sítio. Neste sentido, em decisão monocrática, proferida em 27/3/2020, concedeu medida cautelar para, excepcionalmente, autorizar a emissão de parecer, em substituição à comissão mista, por parlamentar de cada uma das Casas designado na forma regimental. Salientou que tal alternativa permitiria tanto a participação paritária de ambas as Casas, quanto a manutenção da discussão de MPVs pelo Legislativo, viabilizando a apresentação de emendas, ao tempo em que representaria um modo possível de ser realizado por meio de teleconferência[7].

Ainda que tal decisão tenha permitido o prosseguimento da apreciação das MPVs no contexto da pandemia, em termos práticos, foi um salvo-conduto temporário para o descumprimento da previsão constitucional inscrita no artigo 62, §9º, no que diz respeito à exigência de parecer de comissão mista, conforme manifestação do próprio STF na ADI nº 4.029. Assim, a necessidade de as MPVs passarem pelas comissões mistas foi suspensa em 2020, por causa da pandemia, mas segue interrompida.

A efetividade (ou não) da comissão mista é assunto para outra conversa, mas é fato que a tramitação de antes da pandemia fazia com que os deputados e senadores mantivessem um poder mais equilibrado durante a análise das MPVs uma vez que cada MPV tinha sua própria comissão. Além disso, havia alternância regimental na composição: se um senador ocupava a presidência de um colegiado, caberia a um deputado ser relator. Na MPV seguinte, os papéis se invertiam.

Uma vez que toda MPV começa a ser votada na Câmara, o rito adotado na pandemia aumenta o poder e a influência do presidente da Casa tanto no texto, quanto em seu andamento. Ademais, uma reclamação constante do Senado (antes mesmo da pandemia) é que algumas MPVs chegam àquela Casa no limite do prazo de vigência o que, de certa forma, limita os senadores a aprovar o texto vindo da Câmara para evitar que a MPV perca a validade. Outra vindicação diz respeito à escolha dos relatores, que vem sendo feita diretamente pelos presidentes da Câmara e do Senado. Retomando-se o funcionamento das comissões mistas, as escolhas voltariam a ser coordenadas pela liderança do governo no Congresso.

Na Câmara as comissões permanentes foram instaladas presencialmente em março de 2022; no Senado, elas já estariam funcionando remotamente desde 2021, sendo que, atualmente, pode-se dizer que têm operado de maneira semipresencial. Assim, em princípio, a tramitação das MPVs diretamente no Plenário das Casas Legislativas não mais se justificaria, uma vez que não se verificariam os condicionantes estabelecidos pelo STF, de maneira que inexistiria impedimento técnico ou logístico para constituição de comissão mista para apreciação de MPV, atendendo ao artigo 62, § 9º, da CF.

Há pouco menos de um mês, em 7/2/2023, a Mesa Diretora do Senado entrou em acordo para o retorno das comissões mistas para análise das MPVs editadas na nova Legislatura[8], i.e., assinadas a partir de 1º de janeiro de 2023[9]. Sem embargo, a medida só vale se aprovada pela CD, uma vez que a retomada do rito normal de tramitação das MPVs dar-se-ia, simetricamente, por meio de Ato Conjunto das Casas[10].

Como dizem que o país só começa a funcionar realmente após o Carnaval, acompanhemos atentos as cenas do próximo capítulo desta novela a respeito da reinstalação das comissões mistas das MPVs, cujo desfecho deve estar próximo (ou não…).


[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4.029/DF. Relator: Luiz Fux, Tribunal Pleno, julg. 08/03/2012, public. 27/06/2012, RTJ vol-00223-01 pp-00203. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur211240/false . Acesso em: 14 fev. 2023.

[2] BEDRITICHUK, Rodrigo Ribeiro. Medida Provisória uma moeda inflacionada: a inclusão das comissões no rito de tramitação das medidas provisórias e o aumento dos custos de aprovação. 2015. (Especialista em Ciência Política). ILB, Brasília. p. 42-43.

[3] Idem, p. 44-50.

[4] Ibidem, p. 50-52.

[5] BRASIL, Câmara dos Deputados. Resolução nº 14, de 2020. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/2020/resolucaodacamaradosdeputados-14-17-marco-2020-789854-publicacaooriginal-160143-pl.html. Acesso em: 12 fev. 2023.

[6] BRASIL, Senado Federal. Ato da Comissão Diretora nº 7, de 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/arquivos/2020/03/17/ato-da-comissao-diretora-no-7-de-2020. Acesso em: 12 fev. 2023.

[7] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 661, Relator(a): Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julg. 08/09/2021, public. 15/09/2021, Processo Eletrônico Dje-183. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur452359/false. Acesso em: 18 fev. 2022.

[8] BRASIL, Agência Senado. Comissões mistas devem retomar análise de medidas provisórias. 7 fev. 2023. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/02/07/comissoes-mistas-devem-retomar-analise-de-medidas-provisorias. Acesso em: 18 fev. 2023.

[9] Entre as quais estão a MPV que criou e reorganizou ministérios; a que transferiu a estrutura do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Banco Central para o Ministério da Fazenda; a que mudou a regra de desempate de decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf); e a que extinguiu a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

[10] Haveria uma corrente minoritária que aponta ser desnecessária a aquiescência da CD para o retorno da tramitação normal das MPVs, uma vez que o Presidente do SF é também o Presidente do CN, entretanto, em nome da harmonia e bom relacionamento entre as Casas, esse posicionamento teria sido afastado.

Autores

  • é analista legislativo da Câmara dos Deputados, doutora pela Universidade de Brasília (UnB), visiting PhD student at University of York, mestre pela Universidad Carlos 3º de Madrid, Especialista em Direito Parlamentar e Poder Legislativo pelo Instituto Legislativo Brasileiro (ILB/Senado Federal), bacharela em Direito pela UnB, LLB exchange student at Australian National University, coordenadora de pesquisa do Observatório da LGPD-UnB, pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações (Getel/UnB/CNPq), autora do livro "All Eyes on Me: riscos e desafios da Tecnologia de Reconhecimento Facial à luz da Lei Geral de Proteção de Dados".

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