Opinião

Desafios da expansão das competências pelo TCU

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6 de março de 2023, 18h21

Uma notória característica da Constituição de 1988 é a expansão dos mecanismos de controle da administração pública. A literatura atribui esse "fenômeno" a dois principais aspectos observados ao tempo da Assembleia Nacional Constituinte: (1) o contexto político e social ligado à redemocratização, em que se observou considerável aumento de informações públicas disponíveis e o desprestígio do Poder Executivo naquele momento (ROSILHO, 2019) [1] e (2) o grau com que controladores, que possuem pautas de afirmação institucional próprias, conseguiram agir politicamente (VIEGAS, 2022) para alcançar suas demandas e atender aos seus interesses (ARANTES e MOREIRA, 2019).

Como identificado por André Rosilho (2016), os Tribunais de Contas, liderados pelo TCU, aproveitaram o momento que lhes era propício para "[…] advogar em prol da ampliação de suas próprias competências e do seu escopo de atuação", movimento também percebido de forma geral aos demais controladores que tiveram seu papel reforçado na nova Constituição Federal (a exemplo dos Ministérios Públicos), o que denota "a existência de razões comuns para a ocorrência desse fenômeno" (MALUF, 2022).

Nesse contexto, o desenho institucional do TCU [2] foi profundamente alterado a partir da Constituição Federal de 1988.

Ao longo de quase um século, até a Constituição Federal de 1988, ainda que ocorressem mudanças pontuais em suas competências, estas sempre estiveram centradas na tríplice fiscalização "contábil, financeira e orçamentária", a exemplo do julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos; a legalidade das aposentadorias, reformas e pensões; a realização de inspeções ou auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária etc.

A grande inovação trazida pela Constituição Federal de 1988 às competências do TCU foi a instituição das chamadas auditorias operacionais dos órgãos e entidades públicas quanto à "legalidade, legitimidade e economicidade". Permitiu-se, portanto, que o TCU não só mantivesse atribuições históricas e típicas do controle de contas, mas, também, adquirisse novas atribuições, que, na leitura de alguns autores [3], permitiriam o controle do resultado da administração.

Fato é que a recente expansão do exercício de competências pelo TCU não decorre somente de um fenômeno social e político atrelado ao expansionismo do controle como um todo pós 1988, mas também em virtude da ausência de um debate amplo na Assembleia Nacional Constituinte sobre os fundamentos, limites e conteúdo de sua competência (ROSILHO, 2016).

Aproveitando-se dessa vagueza normativa, o TCU tem construído as suas próprias competências por meio de decisões proferidas em casos concretos, o que tem sido visto por alguns autores como parte de uma estratégia para maximizar ainda mais seu poder de atuação (MENDONÇA, 2012).

Inúmeros exemplos indicam esse movimento:

  • A apreciação de atos de regulação das agências reguladoras (competência finalística das agências);
  • O exame prévio de editais de licitação, competência que foi expressamente suprimida na Constituição Federal de 1967;
  • A intervenção na gestão de contratos de concessão;
  • O julgamento de particulares fornecedores de bens e serviços da administração pública na qualidade de responsáveis por dinheiros públicos;
  • A desconsideração da personalidade jurídica de empresas privadas para atingir controladoras (holdings) quando considera existir omissão na fiscalização de seus atos sociais;
  • A imposição de medidas constritivas contra particulares fornecedores de bens e serviços da administração pública;
  • A apreciação de operações financeiras e empréstimos bancários realizados por bancos públicos;
  • A interferência na capacidade decisória discricionária da administração pública de prorrogar ou não contratos administrativos;
  • A instalação de instância revisora, que autodenomina como "recall", aos acordos de leniência;
  • A instituição de uma agenda de instrumentos conciliatórios, a exemplo do Acordo de Cooperação Técnica (ACT), que estabelece ritos e mecanismos de compartilhamento de informações entre as instituições envolvidas nos acordos de leniência previstos na Lei Anticorrupção, e da Solicitação de Solução Consensual (SSC), a ser instaurada para a solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública federal.

Esse complexo movimento não passou despercebido e tem sido objeto de análise por diversos autores, especialmente no que tange aos cenários que extrapolam ao âmbito "micro" das partes arroladas nos processos de controle de contas.

Floriano de Azevedo Neto (2009), ao traçar o diagnóstico sobre o que chama de vertente estrutural do controle administrativo, afirma que há em curso um processo de "autonomização do controle" com as seguintes consequências: 1. sobreposição de competências entre controladores; 2. captura de políticas públicas pelo controlador; 3. deslocamento da discricionariedade.

O exercício desmesurado do controle ainda é criticável porque pode acarretar: 1. perda de eficiência administrativa, com consequente custo de oportunidade e de recursos públicos (o exercício do controle também demanda recursos do erário), 2. insegurança jurídica a agente públicos e privados, com consequências já sentidas no que se denomina "apagão das canetas"; 3. a substituição do gestor público sem a mesma expertise de áreas afetas à sua atuação impede a visão dos possíveis efeitos sistêmicos de suas determinações; e, muito importante, 4. a ausência legitimidade democrática impede a responsabilização política pelo insucesso de suas determinações (accountability vertical).

Esse cenário ainda pouco conhecido, complexo e desafiador, em que o Tribunal de Contas da União se insere como personagem indispensável aos mais diversos temas ligados à administração pública, e cujas decisões podem culminar até mesmo na imposição de graves sanções, exigirá de agentes públicos e particulares detida atenção e notória expertise para compreender seus aspectos processuais e materiais, e, eventualmente, até mesmo questioná-las perante o Poder Judiciário.

 


REFERÊNCIAS

ARANTES, Rogério; MOREIRA, Thiago. Democracia, instituições de controle e justiça sob a ótica do pluralismo estatal. Opinião Pública, v. 25, nº 1, p. 97-135, 2019

MALUF, Roberto. Como se controla o fomento à cultura? Um estudo jurisprudencial da Lei Rouanet no TCU. Dissertação de Mestrado defendida na FGV em 2022.

ROSILHO, André J. Tribunal de Contas da União – Competências, Jurisdição e Instrumentos de Controle. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

ROSILHO, André J. Controle da Administração Pública pelo Tribunal de Contas da União. Tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da USP em 2016.

MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo e PALMA, Juliana Bonacorsi de. Os sete impasses do controle da administração pública no Brasil. Controle da administração pública. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 406

MENDONÇA, José Vicente Santos de. A propósito do controle feito pelos tribunais de contas sobre as agências reguladoras — em busca de alguns standards possíveis. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, n. 38, p. 147-164, Junho 2012, p. 153

SUNDFELD, Carlos Ari; ARRUDA CÂMARA, Jacintho. Competências de Controle dos Tribunais de Contas – Possibilidades e Limites. In: ORG. SUNDFELD, C. A.; ROSILHO, A. Tribunal de Contas da União no Direito e na Realidade. 1ª ed. São Paulo: Almedina, 2020. Cap. 1, p. 19-58

VIEGAS, Rafael Rodrigues. "A Face oculta do poder no Ministério Público Federal e o Poder de Agenda de suas Lideranças." Revista Brasileira de Ciência Política, 2022.

 


[1] Como também explicam Floriano de Azevedo Marques Neto e Juliana Palma Bonacorsi, "as competências controladoras se alargaram frente a um cenário de desconfiança no Poder Público, então a representação mais caricata do regime de exceção". (2020).

[2] Apesar de o artigo 170 da Constituição Imperial já idealizar que a receita e a despesa, bem como a administração, a arrecadação e a contabilidade das Tesourarias e Autoridades das Províncias do Império da Fazenda Nacional, ficariam a cargo de um Tribunal, a sua instituição somente ocorreu de forma efetiva por meio do Decreto nº 966-A/1890 de iniciativa do então Ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, após a Proclamação de República. Em sua exposição de motivos, Ruy Barbosa via o Tribunal de Contas como um "[…] corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional […]". Os Tribunais de Contas se fizeram presentes, a partir daí, em todas as Constituições Republicanas.

[3] No Brasil, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegurou ampla autonomia aos tribunais de contas e ao ministério público. Os primeiros passaram a atuar em áreas bem mais abrangentes do que o julgamento de contas stricto sensu. Tornaram-se órgãos com a finalidade precípua de evitar a desadministração, de melhorar a gestão e a governança pública. A Constituição reforçou os instrumentos de prevenção, estendendo a abrangência da atuação, que envolve a observância não apenas da legalidade, mas da legitimidade e da economicidade das ações públicas. Nessa linha, as auditorias não são apenas financeiras e de conformidade, mas alcançam a verificação da própria operação finalística das instituições. MOUTINHO, Donato Volkers e NASCIMENTO, Leandro Maciel do. Controle da administração pública no Brasil. São Paulo: Blucher, 2022

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