Direito Civil Atual

O repasse do sobrepreço na Lei 14.470

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6 de março de 2023, 12h13

A Lei 14.470/2022 trouxe uma inovação muito importante para as ações reparatórias por dano concorrencial (ARDCs): a inclusão de um quarto parágrafo ao artigo 47 da LDC, estabelecendo que "não se presume o repasse de sobrepreço nos casos das infrações à ordem econômica previstas nos incisos I e II do § 3º do artigo 36 desta Lei, cabendo a prova ao réu que o alegar".

ConJur
As infrações contempladas no suporte fático da regra são aquelas envolvendo condutas concertadas (cartel e práticas coordenadas entre concorrentes), que usualmente produzem, como efeito econômico, elevação de preços na venda de bens e serviços — justamente o sobrepreço a que se refere a primeira parte do enunciado.

Explica-se: a subida no preço de determinado insumo tende a gerar, como consequência econômica, o repasse desse custo extra na cadeia produtiva. Como exemplo, "C", consumidor final, compra de "D" um produto que havia sido produzido pela empresa "B" a partir dos insumos vendidos pela empresa "A". Suponha-se que "A" era integrante de um cartel e vendeu o insumo a "B" com sobrepreço embutido.

O comprador direto "B", diante desse cenário, pode ter absorvido totalmente o sobrepreço, sem tê-lo repassado ao distribuidor "D"; pode tê-lo repassado parcialmente ao distribuidor "D"; e pode tê-lo repassado integralmente ao distribuidor "D".

O distribuidor "D", por sua vez, nos cenários em que o sobrepreço lhe é integral ou parcialmente repassado, também pode ter absorvido totalmente o sobrepreço, sem tê-lo repassado ao consumidor final "C"; pode tê-lo repassado parcialmente ao consumidor final "C"; e pode tê-lo repassado integralmente ao consumidor final "C".

O consumidor final "C", por sua vez, pode ter adquirido o produto sem sobrepreço ou, ainda, ter absorvido integral ou parcialmente esse custo extra.

Essa ilustração serve para demonstrar que o sobrepreço — ora tomado como equivalente do dano[1] — pode ter sido absorvido por um único agente na cadeia produtiva ou estar diluído entre mais de um prejudicado, o que gera problemas na seara da responsabilidade civil. Afinal, de quem é o direito de pleitear a indenização?

A resposta simples e consonante aos artigos 927 e 944 do CC seria dizer: "aquele que sofreu o dano". Mas isso pode criar entraves decorrentes da assimetria informacional presente na cadeia produtiva: o comprador direto, além de ser o sujeito mais próximo do causador do dano, é também o detentor da informação sobre o repasse ou não desse custo extra. O distribuidor e o consumidor, regra geral, terão conhecimento do preço pago, mas não da composição desse preço.

Valendo-se dessa dificuldade, era comum que o demandado em ARDC invocasse como defesa a ocorrência desse repasse na cadeia produtiva (a chamada passing-on defence), visando afastar a configuração do dano[2]. Decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, anteriores à vigência da Lei Nova, inclusive acolheram a exceção, deduzindo, por exemplo, que: "a composição dos custos fixos e variáveis figura-se como um dos elementos imprescindíveis da precificação dos produtos para o alcance do resultado econômico, motivo pelo qual se pode concluir que a requerente não assumiu danos no tocante à aquisição do cimento, mas pelo contrário, repassa-os através dos procedimentos de formação de preço aos consumidores finais".[3]

Nos Estados Unidos, endereçando essa questão, a Suprema Corte, ao julgar o caso Hanover Shoe, Inc. v. United Shoe Machinery Corp., 392 U.S. 481 (1968), negou a possibilidade de o demandado arguir a passing-on defense, sendo eventual repasse fator irrelevante na quantificação da indenização pecuniária. Na Europa, a Comissão Europeia seguiu caminho diverso: estabeleceu que os titulares do direito à indenização são aqueles que sofreram o dano (que arcaram com o sobrepreço). O ônus da prova, todavia, fica a cargo demandado, cabendo a este demostrar que o repasse efetivamente aconteceu[4].

A solução elegida pela Lei 14.470/2022 está em linha com a normativa europeia, e tende a evitar que o agente que efetivamente repassou o sobrepreço ingresse com ARDC. Contudo, nos casos em que houve, total ou parcialmente, repasse de sobrepreço, a tendência é que os efetivos lesados — agentes mais à frente na cadeia produtiva — tenham dificuldades em tomar conhecimento de que sofreram um dano e de mensurá-la, já que a composição do preço — informação comercial detida pelo comprador direto — não é dado facilmente disponível, muito pelo contrário[5].

De qualquer modo, a nova lei tem o mérito de afastar a presunção contrária, de que o prejudicado autor de ARDC necessariamente repassou o custo extra associado ao sobrepreço à cadeia produtiva, o que, por si só, é um grande avanço.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] Para fins didáticos. O dano pode ser mais abrangente.

[2] MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: responsabilidade civil concorrencial: São Paulo: RT, 2021.

[3] TJSP, Apelação Cível 1077205-89.2017.8.26.0100, rel. Des. Carlos Russo, 30ª Câmara de Direito Privado, j. 27/11/2019, DJe 11/12/2019.

[4] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECNONÔMICO (OCDE). Report on International Experiences with Class Actions and Private Enforcement. Paris: OCDE, 2017. Disponível em: https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP/WP3(2017)33&docLanguage=En.

[5] DOMINGUES, Juliana Oliveira; NICOLETTI, Lorenzo Bittencourt; NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de. Reflexões sobre a Lei 14470/2022 e seus impactos sobre o regime das Ações Reparatórias de Dano Concorrencial (ARDCs). No prelo.

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